domingo, 20 de setembro de 2020

O personagem trotsquista em os subterrâneos da liberdade: uma polêmica

 

O PERSONAGEM TROTSQUISTA EM OS SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE: uma polêmica

 

 

Cássio Caetano Braga [1]

RA: 2265541

Sálua Bueno Almeida[2]

RA: 2257301

 

RESUMO

 

 

Esse artigo trata da polêmica desencadeada, por ocasião da passagem do centenário de Jorge Amado, a respeito do personagem Abelardo Saquila em seu romance Subterrâneos da Liberdade. Críticos como Celso Lungaretti e a filha de Sachetta afirmam que o personagem Abelardo Saquila representa, de forma injusta e deturpada, o ex-militante comunista Hermínio Sachetta. Nossa hipótese é que o personagem de Saquila é apresentado de forma que mantém laços com o real, ou senão, sob um prisma que mantém relações com os fatos históricos reais. A própria polêmica, que leva pouco em questão o fato de que o livro é uma obra de ficção, deixa a entender que o fato do romance ser inspirado em personagens reais provoca ainda, tantos anos passados, relações passionais nas pessoas reais.

 

 

Palavras-chave: Jorge Amado, literatura, polêmica, Trotsky, Sachetta, PCB, militância

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

 

 

Nos anos 30, Jorge Amado dedicou-se a escrever um romance bastante extenso a respeito de sua militância comunista em meio à Era Vargas. Mais do que um romance de um escritor engajado, ou seja, que adere a alguns dos interesses da esquerda, Jorge Amado escreveu literatura partidária, ou seja, escreveu sobre o contexto nacional de um ponto de vista militante, com claras intenções didáticas. Esse tipo de proposta é bem o que Lênin propunha para os escritores que desejassem aderir à causa proletária. Pode-se dizer, a favor dessa vertente, inclusive, que toda produção literária também é, direta ou indiretamente, envolvida por um sentido político. Assim, pode-se dizer que nos anos 30 Jorge Amado foi militante, ou seja, organizou sua literatura numa proposta política, mais do que simplesmente um literato engajado. Antes, porém, Jorge Amado percorreu uma determinada trajetória que vamos sumarizar aqui.

Inicialmente, simpatizou com o Modernismo de 22, mas não foi propriamente um modernista como Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Jorge Amado foi um autor muito atento à cultura popular baiana, foi muito ligado ao Candomblé e à cultura afro de sua região, trazendo-a para sua literatura de uma forma muito orgânica, o que não era comum na literatura brasileira. Sua literatura tem, portanto, uma forte cor local, um diálogo com o modernismo e também um engajamento político que, bastante claro inicialmente, diminuiu depois do impacto do Relatório Kruschev em 1956.

No início dos anos 30, quando seus livros fizeram sucesso, Jorge Amado foi classificado como autor “regionalista”. Juntamente com Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, era considerado da “geração de 30”. Como tal, foi hostilizado por Oswald de Andrade em artigo em que chamou a esses escritores de “búfalos do nordeste”. E ainda escreveu, sempre muito irônico, que se tratava do “Ciclo da Bagaceira”, deixando claro um duplo sentido: os romances eram vistos como ruins, grosseiros.

Pode-se supor que, embora tivessem elementos modernistas em comum, esses não eram suficientes para dirimir as diferenças que existiam entre os modernistas paulistas e a chamada geração de 30. Os romancistas nordestinos acima citados obtiveram aceitação muito grande devido à temática social que despontava nos anos 30. A realidade da fome no Nordeste não despertava tanto interesse do público, nem tivera ampla aceitação como tema desde que Euclides da Cunha escreveu Os Sertões. No entanto, agora não era um intelectual do Sudeste que escrevia a respeito, mas sim escritores nordestinos que aspiravam à grandeza literária. E em boa parte a conquistaram. Antonio Candido, para grande irritação de Oswald, proclamou, sobre os romances de 30, que “agora começa a literatura brasileira”.

Um fator que influenciou foi o interesse que a esquerda em geral, e em especial o partido comunista brasileiro, teve em tal temática, que atendia bastante ao gosto da esquerda, em seu interesse em temas nacionais e populares que representassem denúncia da realidade social. Outro fator que atraiu foi seu pouco experimentalismo com a forma, sua linguagem naturalista e realista, o que tornava os romances muito mais didáticos e aceitáveis, mas alienava, de cara, a simpatia de Oswald de Andrade, autor de romances bem mais experimentais e que demonstravam preocupação em subverter o enredo e a forma tradicionais. Quando surgiram os romances de 30, incorporando a língua mais solta e mais coloquial do modernismo e “redescobrindo o Brasil”, sob a forma de vivências nordestinas ainda pouco tematizadas, avançava em temáticas ainda pouco conhecidas, mas que dentro em pouco passaram a ser debatidas em todo o país.

Inicialmente, Jorge Amado escreveu O País do Carnaval, onde o personagem principal, Paulo Rigger, faz o contrário do protagonista de João Miramar, romance de Oswald de Andrade: o retorno depois de um período morando na Europa. Rigger demonstra ceticismo e elitismo em relação ao país, falando em chicotear o povo, além de pouca simpatia em relação aos comunistas e fascistas, aos quais chegava a igualar, repudiando ambos. A relação com o modernismo é clara, mas Amado, ao verificar que esse romance destoava dos demais, afirmou que esse era único que teve um protagonista que não refletia suas posições, não tinha a ver com ele.

Nos romances posteriores, Cacau, Jubiabá e Suor, a literatura de Amado evoluiu num sentido sociológico e terminou por suplantar os dois escritores paulistas em aceitação por parte do público e da crítica. Obteve, inclusive, consagração internacional, algo até então incomum entre os escritores brasileiros. Boa parte de seu sucesso internacional se deu em função da difusão de seus textos por parte dos partidos comunistas de todo o mundo. Os romances acima citados, junto com outros, como Capitães de Areia e Subterrâneos da Liberdade, encaixavam-se muito bem às premissas do realismo socialista então em voga na União Soviética. A idéia era criar romances em que o povo, as massas, eram os principais heróis, desmontando a narrativa individualista burguesa e transmitindo um conteúdo aproveitável aos socialistas. Pode-se dizer que mesmo Oswald de Andrade, que chegou a chamar Jubiabá de “Ilíada Negra”, foi influenciado por Jorge Amado em seu romance cíclico Marco Zero, texto onde buscou conciliar experimentalismo formal com engajamento político comunista. Sendo assim, não procede a acusação trotsquista de que Jorge Amado e o realismo socialista não lidavam com as questões formais.

No início da carreira, Jorge Amado, frequentou um ambiente onde havia antipatia ao coronelismo nordestino e às antigas oligarquias atrasadas. O primeiro livro de Jorge Amado, O País do Carnaval, relaciona-se claramente com a problemática modernista, ao narrar a volta do rapaz Paulo Rigger, depois de uma temporada de vários anos na Europa, em sua volta ao Brasil. O livro lembra um pouco as Memórias Sentimentais de Miramar, mas no sentido contrário: ao invés de ser o brasileiro que sai para a Europa, o tema de Amado é o retorno e a readaptação ao ambiente local. Esse livro celebrizou-se pela famosa frase de Rigger, que comentou que só se sentiu brasileiro quando dançou o carnaval e bateu em sua mulher, Julie. No entanto, vale a pena registrar que a geração de 30 atritou com os modernistas paulistas. Em determinados momentos, Oswald de Andrade referiu-se a eles sarcasticamente como os "búfalos do Nordeste". Igualmente, Jorge Amado também chegou a afirmar que o modernismo de 22 era um movimento que compreendia pouco a vida do povo, não reconhecendo seus laços com ele.

Depois de sua ruptura com o partido comunista, Jorge Amado desenvolveu, em seus romances posteriores, uma linguagem mais carnavalesca e personagens tais como Quincas Berro D´ Água e Gabriela, sendo ambos, respectivamente, um senhor já idoso que volta ao universo da prostituição e da boemia e uma mulher que rompe com o que é esperado para o comportamento de uma mulher em sua sociedade. Assim, Jorge Amado passa a elaborar personagem que questionam a moral, que são boêmios ou fanfarrões.

Ele alegava que, enquanto uma vez ligado ao partido, se sentia tolhido em sua arte e que precisou romper com o partido para ser mais livre enquanto escritor. Amado dizia que não foi o relato dos supostos crimes de Stálin (hoje duramente questionado pelo professor norte-americano Grover Furr em seu livro Kruschev Lied, ainda sem tradução no Brasil) que o fez afastar-se do partido comunista brasileiro, e sim a necessidade de ser menos militante e adquirir maior liberdade artística. Gabriela, Cravo e Canela, romance com grande aceitação nos Estados Unidos quando foi publicado, obtendo crítica favorável no New York Times e elogiado por escritores como Mario Vargas Lhosa, foi considerado o primeiro romance de uma nova fase de Jorge Amado. Sobre Stálin, Amado afirmava não ter sido surpreendido pelo relatório de 1956, mas dizia já saber de tudo desde 1954, quando discussões a respeito estavam em curso na União Soviética. Ele falou que lá havia um “degelo”.

Curiosamente, esse é o título de um romance publicado na época por Ilya Erehmburg, também um romancista na linha do realismo socialista que fez a crônica da revolução de outubro de 1917 e dos tempos subsequentes.

 

 

2 JORGE AMADO E O ROMANCE PROLETÁRIO SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE

 

 

O romance focaliza a atividade clandestina do partido comunista, em meio a greves, atos e manifestações operárias e populares. O partido vivia um dos piores momentos de sua história, amargando a dura derrota após a tentativa de tomar o poder em 1935. Seu maior líder, Prestes, estava preso, assim como boa parte de sua militância. Posteriormente, com as denúncias de Kruschev contra Stálin, Jorge Amado afastou-se do partido e publicou Gabriela, Cravo e Canela, obtendo grande repercussão nos Estados Unidos. Hoje a crítica considera que esse romance marcou uma nova fase, distinta da literatura partidária. O que estamos chamando de "literatura partidária" poderia ser chamado de realismo socialista. Esse termo em geral é muito pejorativo. No entanto, não para um cineasta de vanguarda como Glauber Rocha, que elogiou Jorge Amado nos seguintes termos:

 

Nenhum crítico lukacsiano, tipo Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, que são os representantes aqui do pensamento aqui do pensamento de Lukács, Gramsci, escreveu um ensaio sobre Jorge Amado. A crítica de esquerda só escreve sobre Graciliano Ramos, que é um velho artigo do Antonio Candido que é repetido, mas sobre Jorge Amado ninguém escreve, não têm coragem de entrar no assunto. Escrevem sobre a literatura soviética. Literatura e humanismo, livro do Nelson Coutinho, é o maior absurdo. Um cara, no Brasil, escreve um livro sobre o romance realista socialista e não escreve sobre Jorge Amado que é o maior romancista realista socialista do mundo. Jorge Amado é tão importante quanto Brecht, é o romanceiro popular, fez o que o Brecht fez no teatro. Reverteu as operações dramáticas, colocou o proletariado como personagem principal, subverteu a língua e subverteu a estrutura do romance. Criou uma coisa popular e revolucionária (ROCHA, 1980, p. 32).

 

            Assim, pode-se dizer que Jorge Amado, mesmo fazendo romance militante, inova tão radicalmente como Brecht, como comenta acima Glauber Rocha, ou seja, experimenta não só novos temas, mas também em termos formais. O grande argumento dos formalistas e surrealistas, usado até mesmo pelos concretistas para condenar o realismo socialista seria que ele não pensa uma forma revolucionária para um conteúdo revolucionário. O romance de Jorge Amado é polifônico no sentido em que rompe com o ponto de vista de um herói somente. Os heróis são as massas. Mesmo os personagens do povo, mais simples e humildes, participam da narrativa, ou seja, fazem a história.

 

 

3 SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE X PORÕES DA DECÊNCIA

 

 

            No ano de 2012 se deu o ano de centenário de Jorge Amado. Essa data comemorativa ativou uma polêmica dos trotsquistas com relação à obra de Jorge Amado. Sobressaiu uma questão polêmica, objeto de vários artigos: a narrativa de Subterrâneos da Liberdade teria sido injusta com um personagem histórico real, o trotsquista Hermínio Sachetta, transformado, no romance, em Abelardo Saquila. Quando o romance foi publicado, Hermínio Sachetta publicou um artigo chamado Porões da Decência, onde busca desqualificar e diminuir em geral o romance, mas não aborda diretamente o fato de ter sido retratado como Abelardo Saquila.

Em artigos recentes, o jornalista e militante do PSOL Celso Lungaretti e a filha de Sachetta (Paula Sachetta) exigiram, em artigos, afirmaram que Subterrâneos tem um retrato falso de um comunista por parte de Jorge Amado. O máximo que Amado fez foi afirmar que no tempo de Subterrâneos da Liberdade ele via tudo muito em preto e branco. Nesse ponto vou abordar algumas das aparições do personagem Saquila no romance e debater as posições apresentadas, que associam o personagem a um personagem histórico real e pedem uma autocrítica, não ficcional, mas sim real. Lungaretti e os outros se esquecem que Subterrâneos da Liberdade é um texto ficcional, não pretende ser um relato real, histórico. Nossa hipótese é não que existe, então, sentido em cobrar uma autocrítica de Jorge Amado. Outro fato é que têm surgido evidências da colaboração de Trotsky com os nazistas e os japoneses. Esse fato histórico é muito importante para debater a obra Subterrâneos da Liberdade, pois o principal argumento dos críticos de Jorge Amado é que a narrativa histórica à qual se refere o romance, ou seja, os fatos reais, estariam sendo deturpados.

            Primeiro argumento dos adeptos do trotsquismo é que Hermínio Sachetta foi acusado de fracionismo trotsquista. Ora, o Sachetta histórico era de fato um trotsquista, tanto que foi expulso do partido comunista brasileiro em 1937 e participou, a seguir, da IV Internacional e escreveu, posteriormente, textos teóricos trotsquistas. Assim, não existe uma "acusação" de trotsquismo - e sim uma evidência. Nossa hipótese nesse trabalho é que Saquila é realmente apresentado de forma negativa no romance, mas existem, dentro do romance, algumas nuances, como quando se debate arte moderna - o debate tende a dar razão a Saquila. Isso possivelmente não foi levado em conta. O que de fato irrita é a acusação de que Saquila foi um informante da polícia. Essa acusação possivelmente pode ser atribuída ao Sachetta histórico. Abordaremos essa e outras questões ligadas ao personagem do trotsquista Abelardo Saquila em Subterrâneos da Liberdade, buscando trazer luz a esse debate que parece continuar até mesmo depois da morte de Jorge Amado, prosseguindo em seu centenário.

 

 

4 ENTRE ABELARDO E HERMÍNIO: um personagem se rebela contra o seu autor

 

 

Atualmente, é praticamente um consenso que os comunistas ao tempo de Stálin era conservadores em termos de arte, desejavam arte acadêmica e os trotsquistas eram a favor da experimentação e da liberdade artística. Essa é a posição predominante que tem a crítica a respeito de Subterrâneos da Liberdade, considerado seu romance mais "stalinista", ou seja, mais politicamente dirigido.

No entanto, pode-se contra-argumentar que Jorge Amado também inova: ele cria um romance polifônico, com várias vozes e posições ideológicas diferentes, sem um narrador que didatize tudo e produza, a todo momento, juízos de valor que facilitem o entendimento do romance. Diante de Subterrâneos, o leitor também precisa sair da passividade, precisa ser ativo e buscar o sentido dos diálogos e situações políticas. Pessoas comuns, gente do povo, distantes das classes dominantes, ganham o primeiro plano do romance, seguindo o ensinamento de que são as massas que fazem a história.

Curiosamente, no artigo chamado Jorge Amado e os Porões da Decência, publicado em 1954, o jornalista Sachetta, curiosamente, assume ter sido retratado - ou melhor, detratado, no romance Subterrâneos da Liberdade. Assim, Sachetta julga ter sido o modelo do personagem e se rebela violentamente contra o retrato que foi feito:

 

O semianalfabeto ilustre, hoje traduzido em várias línguas da órbita russa e, por força do aparelho kominformista, mesmo no ocidente, se me apresenta sob pseudônimo - Saquila - preocupa-se em fazer com que o leitor me identifique, referindo-se, de passagem, a meu nome partidário da época (SACHETTA, 2012).

 

O leitor, no entanto, dificilmente teria como identificá-lo apenas por um nome partidário, a não ser que fosse ligado ao partido na época. De fato, pode-se notar que as opiniões do autor sobre o personagem Abelardo Saquila em Subterrâneos confirmam são posições trotsquistas (portanto, próximas, em algum grau, daquelas professadas por Sachetta na vida real):

 

O jornalista achava que nos países semicoloniais o movimento comunista se encontra ante um impasse: não podia nem vencer nem mesmo progredir, dependia por inteiro do fim do capitalismo nos países imperialistas, naqueles que os dominavam política e economicamente. Dizia tudo aquilo tirando baforadas de fumo de um cachimbo, numa voz doutoral que não admitia discussões (AMADO, 1982, P. 86).

 

            Ora, como não ver nas palavras acima, de Abelardo Saquila, a teoria da revolução permanente de Trotsky, que colocava a vitória da revolução russa na dependência da revolução na Europa? A solução, para Trotsky, era disseminar a revolução para o resto da Europa ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917.

            Não é o narrador de Subterrâneos e sim um personagem, Rui, quem acusa Saquila de uma posição não comunista em política, ou seja, de preferir a aliança com o político paulista Armando de Salles Oliveira e sua proposta de golpe contra Getúlio ao movimento organizado das massas. A acusação, portanto, não é exatamente de trotsquismo, mas sim do seguinte:

 

Acusou Saquila de atividades divisionistas, de agir de forma antipartidária, levantando uma campanha contra a direção no seio das bases, criando dificuldades para o bom cumprimento das tarefas, sabotando-as em última instância, já que criava a confusão entre os companheiros. A linha política tinha sido amplamente discutida antes de ser aprovada pela direção nacional do Partido. Aprovada que fora, cumpria aos militantes leva-la à execução. E se tinha algum ainda o que discutir, devia fazê-lo nos organismos próprios e não sair numa atividade grupista a recrutar opositores, em cochichos, em reuniõezinhas privadas, onde até a vida particular dos camaradas era objeto de intrigas e infâmias. E agora, nesse primeiros dias após o golpe, sentia-se um recrudescimento da atividade desse grupo. Em vez de ajudarem os companheiros a levantar a luta necessária contra o Estado Novo, estavam apontando o golpe como o resultado de uma linha política falsa do Partido, dificultando a pesada tarefa dos companheiros da direção, alastrando um pessimismo perigoso entre certas bases do Partido. E tudo indicava que Saquila era o centro de todo esse grupo, sua figura dirigente (AMADO, 1982, p. 198).

 

            No entanto, diante dessas palavras, mesmo assim Saquila negou com veemência a acusação de trotsquista. Sachetta, em seu artigo Porões da Decência, ataca com virulência Jorge Amado, não negando totalmente as posições defendidas pelo personagem Saquila. No romance de Jorge Amado, Saquila defendia, contra a linha adotada pelo partido, o golpe de estado dos paulistas, ou seja, o putsch ao invés do movimento de massas. Depois de afirmar intempestivamente que Jorge Amado não mantinha contato com o PC e sim com o jornal Meio Dia dos nazistas, Sachetta afirma que era, na verdade, contra os dois candidatos que disputavam o cargo de presidente:

 

Não cabe ora recapitular as teses que, àquele tempo, constituíram linhas de cristalização das duas alas dos comunistas do Brasil em divergência. Limitamo-nos a lembrar que nós e nossos amigos políticos preconizávamos, então, equidistância pelo PC dos dois candidatos que disputavam o Catete (Armando de Salles Oliveira e José Américo de Almeida) e frente única das forças democráticas para evitar o golpe de Estado que Getúlio preparava e, ao cabo, desfechou. A ala que seria apoiada por Moscou encarniçava-se para que simplesmente fosse dado apoio a José Américo, rojando-se-lhe, em pânico, aos pés. Confirme o Sr. J. A. - refutando, à luz de provas documentais, o que acabamos de dizer - a despudorada série de invencionices que contrabandeia em seu Rocambole zdanovista de mais de mil páginas (SACHETTA, 2012).

 

De qualquer forma, é certo que Sachetta está contra o candidato José Américo, que a linha do partido tinha consensualmente apoiado. Ele não estava numa posição diametralmente oposta à do personagem retratado em Subterrâneos; há pontos de contato entre a ficção e a história. A crítica a Saquila em Subterrâneos foi feita nos seguintes termos pelo militante João:

Compreende, Ruivo. Putsch e não luta de massas, direção de burguesia e não de proletariado...Não há diferença entre o que ele pensa em política e o que ele pensa em arte. Ao contrário, há uma perfeita harmonia: trotsquismo e surrealismo são formas de luta da burguesia em planos diferentes (AMADO, 1982, p. 202).

 

            O próprio romance apresenta, também, a defesa que Sachetta faz do surrealismo e afirma que as críticas de Ruivo à arte surrealista, que ele acusa de possuírem sentimentos sujos, são chamadas de primárias, o que demonstra tolerância à diversidade de opiniões:

 

O Ruivo interrompia a longa resposta que Saquila iniciava com um gesto onde revelava todo o desprezo que lhe mereciam as considerações de João:

--Essas são afirmações primárias... (AMADO, p. 197).

 

Curiosamente, esse romance não é, portanto, um romance que excluiu os debates e as posições contrárias a ele mesmo (pois é evidente que esse romance é favorável a Stálin e é um romance tido como realista socialista). Isso depõe a favor de Jorge Amado, que, mais do que mero militante, é um grande artista, produz um texto literário que tem múltiplas interpretações.

Quanto ao realismo socialista, o fato dessa linha ter sido escolhido é o fato de que o estado socialista precisava fazer um trabalho ideológico junto às massas. Noutro plano, a política cultural foi de valorizar as minorias. Toda etnia tinha direito a seu território, seus jornais e meios para poder preservar sua cultura. O programa de Trotsky e Breton para a cultura, que prevê anarquismo, direção alguma, não pode ser adotado nem por uma secretaria de cultura. Ele denuncia um elemento já há muito comentado: o trotsquismo guarda elementos de anarquismo, ou seja, individualismo exacerbado.

A hipótese de Sachetta e Lungaretti, assim, não procede. Cobrar de uma ficção que apresenta um mundo possível uma atitude diversa em relação à personalidade histórica de Abelardo Saquila é ignorar que o livro não é história e sim ficção. O que Lungaretti está fazendo é justamente querer tolher a liberdade do artista. Já a manifestação de Sachetta e de sua filha denunciam justamente que o personagem ainda provoca e inquieta, provocando debates e discussões, o que provavelmente foi o objetivo do texto que, embora didático, de fato é construído de uma forma dialógica, ou seja, ao se construir em meio a diálogos, quer possivelmente promover novos diálogos, ou seja, o debate, a discussão, a polêmica.

 

 

CONCLUSÃO

 

 

O romance Subterrâneos da Liberdade foi acusado, quando da passagem do centenário de Jorge Amado, de fazer um retrato deturpado de Hermínio Sachetta, jornalista que estaria retratado na figura de Abelardo Saquila. O que pudemos verificar é que o romance não tem um narrador didático, que dá opiniões definitivas sobre todos os assuntos. Em dados momentos, Saquila é apresentado como vaidoso, possível agente da polícia, mas por outros ele critica a opinião dos companheiros a respeito de obras de arte e chama suas opiniões de primárias, ou seja, a palavra lhe é dada. Mostramos também que as posições políticas do personagem têm pontos em comum com as do Hermínio Sachetta histórico, a partir de um artigo onde Sachetta discute, de forma ácida e hostil, o romance de Jorge Amado. Se existe, portanto, um retrato, essa hipótese passa a ter fundamento a partir das palavras do próprio possível retratado, que estabeleceu uma ligação com o personagem, vendo-se ali retratado e tendo sentido necessidade de fazer correções ao retrato pintado por Jorge Amado. Mas a questão era justamente o fato de que o personagem não era Sachetta. A ingenuidade de Sachetta e Lungaretti fazem com que eles deixem de lado o fato de que romance é uma obra de arte e se atenham somente aos aspectos históricos, como se Subterrâneos fosse uma obra do historiador Eric Hobsbawn, por exemplo, e não uma obra de arte, que trata de um mundo possível.

Nos anos 30, Jorge Amado ligou-se à chamada "geração de 30" e caminhou paulatinamente para uma literatura partidária, a partir da repercussão intensa dos temas sociais que abordava. Os Subterrâneos da Liberdade é a crônica da era Vargas do ponto de vista dos militantes do partido comunista. O romance foi publicado em três volumes: Os Ásperos Tempos, a Agonia da Noite e a Luz no Túnel. É um romance que não tem um protagonista somente, mas sim um romance constituído, em grande parte, de diálogos, incorporando, inclusive, a voz dos oligarcas, criando um painel social que funciona com finalidades didáticas. O romance fazendo a crônica do partido também foi experimentado na União Soviética e foi preconizado pelo leninista Andrei Jdanov, que afirmava que era preciso que essa estética estimulasse o entusiasmo revolucionário e fizesse, em favor do partido, um trabalho ideológico. Pode-se objetar inúmeros argumentos contra Jdanov, mas o fato é que em seu tempo (anos 20) uma estética marxista praticamente não existia. Hoje em dia pode-se dizer que a estética marxista são Brecht, Einsenstein e o Cinema Novo brasileiro, mas há muita controvérsia a respeito. O tema tem sido deixado de lado após a queda do Muro de Berlim em 1989 e ainda demanda maiores estudos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

AMADO, Jorge. Os Subterrâneos da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora Record, 1978.

 

 

LUNGARETTI, Celso. A lição de moral que Jorge Amado recebeu de Jacob Gorender. Disponível em: <http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2012/05/ devido-minha-proximidade-com-varios.html>. Acesso em 20 de dezembro de 2012.

 

 

PONTES, Mateus de Mesquita e. Jorge Amado e a literatura de combate. Da literatura engajada à literatura militante de partido. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas. ISSN 1984-6576 - v. 1, n. 2, outubro de 2009.

 

 

RUY, José Carlos. Debate: a Controvérsia de Jorge Amado e Hermínio Sachetta. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=168282&id_ secao=11>. Acesso em 20 de dezembro de 2012.

 

 

SACHETTA, Hermínio. Jorge Amado e os porões da decência. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/sachetta/1954/mes/poroes.htm>. Acesso em 20 de dezembro de 2012.



[1] Aluno do Curso de Letras, da FASF/UNISA, Polo Luz/MG.

[2] Aluna do Curso de Letras, da FASF/UNISA, Polo Luz/MG.

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