terça-feira, 1 de setembro de 2020

Ficção e História em 1984 de George Orwell

 

FICÇÃO E HISTÓRIA EM 1984 DE GEORGE ORWELL

 

 

Frank Bruno Cardoso Silva [1]

RA: 2738813

Elaine Cristina da Cruz [2]

RA: 2730031

 

RESUMO

 

 

Esse artigo analisa o romance 1984 de George Orwell e investiga a narrativa histórica do debate entre Trotsky e Stálin que foi base para a estruturação do romance entre os polos Grande Irmão e Goldstein. Ao investigar a narrativa histórica, nota-se o pano de fundo histórico do romance e pode-se notar o quanto George Orwell devia ao trotsquismo que inspirou a sua juventude. Esse texto foi ao mesmo tempo uma ficção científica futurista, uma alegoria política e um drama de horror.  A recepção crítica do romance notou, na época, os elementos que referiam-se à União Soviética, mas esse texto agregou, a alguns fatos e elementos históricos como o texto A Revolução Traída e os grandes expurgos, toda uma crítica das sociedades ocidentais, antecipando o papel de dominação das massas que teriam a televisão e a pornografia. Orwell, pode-se dizer, captou alguns elementos da Inglaterra do tempo em que vivia e projetou junto a uma fantasia sombria do que seria a vida na União Soviética de Stálin, localizando a narrativa em Pista de Pouso Número 1, lugar que seria a coisificada Inglaterra do futuro.

 

 

Palavras-chave: ficção científica, horror, romance, 1984, George Orwell, socialismo, Stálin

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

 

A influência do romance 1984 é tão grande na cultura popular que o programa de verão de grande audiência na TV brasileira chama-se Big Brother, em clara homenagem ao personagem do grande líder que, na narrativa de Orwell, pode facilmente ser associado a Josef Stálin, assim como o personagem de Goldstein, o dissidente a quem eram dedicados “dois minutos de ódio” pode ser associado ao líder político dissidente Leon Trotsky.

O  texto 1984 de Orwell passa a ser lido como um romance cuja terminologia e simbolismos podem ser utilizados para qualquer situação política do mundo moderno, sem preocupação alguma com o contexto político a que se referia originalmente. Sua grande popularidade foi aumentada recentemente graças aos escândalos internacionais de espionagem e que fazem aumentar o temor de ser espionado e monitorado na internet, dando ideia de que o “Grande Irmão” existe hoje em dia e que estamos todos sendo controlados o tempo todo.

Nossa hipótese é que o romance 1984 referia-se a uma determinada narrativa histórica: a União Soviética ao tempo em que era dirigida pelo partido comunista soviético. Essa narrativa histórica é projetada para outro momento histórico e outro país, a Inglaterra. Assim, a narrativa refere-se à narrativa da União Soviética repetindo-se na Inglaterra dos anos 80, então transformada num país onde o estado domina totalmente a sociedade e que planeja até mesmo os mínimos gestos dos cidadãos. A ideia de planejamento estatal da economia é estendida, pela narrativa, à vida privada dos cidadãos, trazendo uma sensação enorme de opressão. A narrativa pontua aqui e ali eventos históricos que realmente existiram: os grandes expurgos, o texto A Revolução Traída, de Leon Trotsky que é citado indiretamente. O texto serve, então, de alerta para o que pode gerar uma revolução socialista: uma opressão ainda maior do que a opressão vivida no sistema imperialista. Trata-se de uma forma singular de romance distópico: é o contrário das utopias fundamentais do pensamento ocidental, que falavam da fé no progresso humano e na capacidade do homem de criar um mundo de justiça e paz. O livro de Orwell é importante justamente porque exprimiu o novo sentimento de desesperança que agora é característico de nossa época, mas foi pioneiro ao apresentá-lo. Há outros romances distópicos, tais como Nós, de Eugene Zamiátin e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Nesse artigo, serão feitas algumas ponderações a respeito da narrativa histórica que permeia 1984, transformada pelo autor em ficção.

 

1 TROTSKY X STÁLIN EM 1984

 

A estrutura de 1984 é composta em torno de dois personagens: os líderes políticos Grande Irmão e Goldstein, cuja oposição estrutura o grande conflito da narrativa entre liberdade e opressão que até o fim tensiona o romance. O Grande Irmão é o oponente, Goldstein é aliado indireto de Winston: ele, como Winston, combate a opressão reinante no país. Sentindo a opressão vigente, Winston passa a escrever um diário e a bradar, num gesto de rebeldia individual: “abaixo o grande irmão!” Winston Smith é um habitante do que no passado era a Inglaterra. A descrição do Grande Irmão coincide com a de Stálin, que também usava bigode e cuja imagem era reproduzida em muitos lugares na União Soviética:

 

O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano trançado. Numa das extremidades, um pôster colorido, grande demais para ambientes fechados, estava pregado na parede. Mostrava simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis (ORWELL, 2009, p. 12).

 

Aparentemente, o cenário em que vive Winston é o cenário opressivo da Inglaterra onde triunfou o socialismo à moda de Stálin, quarenta anos depois da Segunda Guerra Mundial. Não se trata tanto de um país invadido pela União Soviética quanto um país onde venceu uma versão do socialismo de Stálin, chamado então de socialismo inglês (aparece no romance sob a sigla “Socing”). No romance, a Inglaterra mudou de nome para “Pista de Pouso Um”, um nome estranhamente coisificado.

Se fosse outra versão de socialismo, Orwell talvez não tivesse escrito narrativa tão sombria projetando conteúdos negativos a respeito, pois se dizia a favor do socialismo. O conteúdo de 1984 parece ser de uma projeção de um futuro sombrio onde o socialismo de Stálin triunfou na Inglaterra, fato político que teve consequências extremamente opressivas. A narrativa mostra que, depois de divergir do pensamento do Grande Irmão em seu diário pessoal e viver um romance clandestino com Júlia, Winston aderiu ao sistema: aprendeu a amar o Grande Irmão. O romance não afirma o gesto libertário como importante. Ele cai no vazio. Ele funciona mais como um alerta: “se vocês não agirem no presente para combater Stálin enquanto é tempo, este será o futuro”.

Hoje em dia a crítica comenta que George Orwell era simpatizante do pensamento de Leon Trotsky e até mesmo participou da guerra civil espanhola ao lado de um pequeno grupo de trotsquistas, o POUM, o que gerou seu livro Lutando na Espanha (“Homenagem à Catalunha”). A teoria de Trotsky sobre a revolução russa ajuda a estruturar seus textos – e devemos recorrer a ela para entendê-los. A descrição do dissidente Goldstein em 1984 faz lembrar Trostky:

 

O diafragma de Winston estava contraído. Ele era incapaz de olhar para o rosto de Goldstein sem ser invadido por uma dolorosa combinação de emoções. Era um rosto judaico chupado, envolto por uma vasta lanugem de cabelo branco e munido de um pequeno cavanhaque –um rosto inteligente e apesar disso, por alguma razão, inerentemente desprezível, onde se equilibrava um par de óculos já perto da ponta. Parecia a cara de uma ovelha, e a voz, também, tinha uma qualidade algo ovina. Goldstein bradava seu discurso envenenado de sempre sobre as doutrinas do Partido –um discurso tão exagerado e perverso que não servia nem para enganar uma criança, e ao mesmo tempo suficientemente plausível para fazer com que o ouvinte fosse tomado pela sensação alarmada de que outras pessoas menos equilibradas do que ele próprio poderiam ser iludidas pelo que estava sendo afirmado. Goldstein atacava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do partido, exigia a imediata celebração da paz com a Eurásia, defendia a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava histericamente que a revolução fora traída (ORWELL, 2009, p. 23).

 

Essas informações procedem a respeito da imagem de Trotsky: ele de fato era de origem judaica, usava cavanhaque, óculos, era reconhecidamente inteligente. Observe-se a descrição de Trotsky que foi feita por Michael Sayers e Albert E. Kahn:

 

Em 1919-1920, a imprensa mundial apelidou Trotsky de "Napoleão Vermelho" Trotsky era comissário de Guerra. Trajado num longo sobretudo espalhafatosamente militar; de altas botas luzentes, pistola automática à cintura, percorria as frentes de batalha fazendo inflamadas alocuções aos soldados do Exército Vermelho. Converteu um trem blindado em seu Q. G. privado e protegeu-se pessoalmente com uma guarda armada especialmente uniformizada. Ele possuía a sua própria facção no comando do Exército, no Partido Bolchevique e no governo soviético. O trem de Trotsky, a guarda de Trotsky, os discursos de Trotsky, as atitudes de Trotsky — seu vasto cabelo preto e sua barbicha em ponta, seus olhos penetrantes atrás do pince-nez fulgurante — ficaram mundialmente famosos. Na Europa e nos E.U.A. as vitórias do Exército Vermelho eram todas creditadas ao "comando de Trotsky (SAYERS, KAHN, 2013).

 

Trotsky, inclusive, escreveu um livro chamado A Revolução Traída, ou seja, também “gritava histericamente que a revolução tinha sido traída. Trotsky não deixou de ser parte da história da União Soviética. Ele não foi apagado da história, mas passou a ser apresentado, a partir de 1929, como alguém que quis liquidar o país. Nessa passagem há uma questão importante: então Goldstein tinha suas críticas apresentadas às massas num momento em que todos estão assistindo, ou seja, o regime apresentava publicamente críticas a ele mesmo, ainda que para promover o ódio? Então, isso não deixaria de ser liberdade de expressão: se as críticas fossem reais e fundamentadas, então alguns cidadãos as reconheceriam como verdadeiras. Essa passagem depõe contra a construção de um estado que, além do planejamento econômico, extrapola planejando também a vida privada dos cidadãos, ponto fundamental que permeia a narrativa de 1984. De fato, a crítica de Trotsky a partir de sua saída da União Soviética passou a ser exagerada: ele passou a comparar Stálin a Hitler, ao Rei-Sol, etc. Será que um regime totalitário resistiria a críticas feitas em pleno horário nobre, no horário em que todos estão vendo televisão? Harpal Bar cita algumas das críticas que fazia Trotsky à União Soviética:

 

'A política da direção atual, o pequeno grupo de Stalin, está levando o país a toda a velocidade a crises perigosas e ao colapso' (Letter to Members of the Communist Party of the Soviet Union, Março de 1930). 'A crise iminente da economia soviética virá inevitavelmente no futuro muito próximo, fará ruir a lenda açucarada [de que o socialismo pode ser construído em um único país], e não temos nenhuma razão para duvidar de que ela deixará muitos mortos... A economia [soviética] funciona sem reservas materiais e sem cálculo. A burocracia descontrolada vinculou seu prestígio com a acumulação subsequente de erros ... é iminente uma crise [na União Soviética] com seu cortejo de conseqüências tais como a falência de empresas e o desemprego' - Soviet Economy in Danger, 1932. 'Os operários famintos [na União Soviética] estão insatisfeitos com as políticas do Partido. O Partido está insatisfeito com a direção. O camponês está insatisfeito com a industrialização, com a coletivização, com a cidade.' - artigo em 'Militant(EUA), 4 de fevereiro de 1933. 'O primeiro choque social, externo ou interno, levará a sociedade soviética atomizada à guerra civil' (The Soviet Union and the Fourth International, 1933. 'Seria infantilidade pensar que a burocracia de Stalin pode ser removida por meio de um Partido ou Congresso Soviético. Os meios normais, constitucionais, não são capazes de remover a elite dirigente... Eles só podem ser compelidos a ceder o poder à vanguarda proletária pela FORÇA' (Bulletin of Opposition, outubro de 1933). 'A crise política converge para a crise geral que está avançando gradualmente' (The Kirov Assassination, 1935) (BRAR, 2013).

 

Assim, sendo, se Stálin era o Grande Irmão, imagine uma crítica pública ao Grande Irmão, na voz de Goldstein, pregando abertamente o assassinato e remoção violenta do grande líder da Oceânia. Seria viável que um estado totalitário transmitisse mensagens como a abaixo às massas? Leia-se o teor violento das críticas:

                                                                                     

'Dentro do Partido, Stalin tem se colocado acima de toda a crítica e do Estado. É impossível removê-lo exceto pelo assassinato. Todo oposicionista se torna ipso facto um terrorista' (Declaração na entrevista ao 'New York Evening Journal', de William Randolph Hearst, 26 de janeiro de 1937). 'Podemos esperar que a União Soviética saia da grande guerra vindoura sem derrota? A esta questão, colocada francamente, responderemos com a mesma franqueza: se a guerra continuasse sendo apenas uma guerra, a derrota da União Soviética seria inevitável. No sentido técnico, econômico e militar, o imperialismo é incomparavelmente mais forte. Se ele não for paralisado por uma revolução no Ocidente, o imperialismo liquidará o regime atual' (Artigo no 'American Mercury', Março, 1937). 'A derrota da União Soviética é inevitável caso a nova guerra não provoque uma revolução ... Se nós teoricamente admitimos guerra sem revolução, então a derrota da União Soviética é inevitável" (Testemunho em Depoimentos no México, abril de 1937." (pp. 224-227, Red Star Press) (BRAR, 2013).

 

Sendo as críticas de Trotsky semelhantes a essas, é bem difícil supor que pudessem ser apresentadas em circunstâncias tais como os “dois minutos de ódio” citados em 1984, pois um estado totalitário não as toleraria. Mas de onde falaria Goldstein até o país onde vive Winston? O narrador onisciente dessa narrativa faz o mesmo que o aparato estatal que combate Winston: investiga seus pensamentos, vigia-o, descreve suas atividades, por isso o texto transmite essa forte sensação de opressão. O leitor da época deve ter saído da leitura decidido a combater o comunismo para evitar algo assim no futuro da própria Inglaterra. O próprio narrador onisciente assume, também, esse papel de invadir a intimidade do personagem e devassá-la para o leitor. Como se pode ler a respeito de George Orwell:

 

Como de costume, o rosto de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgira na tela. Ouviram-se assobios em vários pontos da plateia. A mulher ruiva e franzina soltou um guincho em que medo e repugnância se fundiam. Goldstein era o renegado e apóstata que um dia, muito tempo antes (quanto tempo, exatamente, era coisa de que ninguém se lembrava), fora uma das figuras destacadas do Partido, quase tão importante quanto o próprio Grande Irmão, e que depois se entregara a atividades contrarrevolucionárias, fora condenado à morte e em seguida fugira misteriosamente e sumira do mapa. A programação de Dois Minutos de Ódio variava todos os dias, mas o principal personagem era sempre Goldstein. Ele era o traidor original, o primeiro conspurcador da pureza do partido. Todos os crimes subsequentes contra o Partido, todas as perfídias, sabotagens, heresias, todos os desvios eram resultado direto de sua pregação. Desta ou daquela maneira ele continuava vivo e maquinando seus conluios: talvez em algum lugar do outro lado do mar, talvez até sob proteção de seus benfeitores estrangeiros –era o que se dizia ocasionalmente –em algum esconderijo na própria Oceânia (ORWELL, 2009, p. 22).

 

Assim, a narrativa sobre Goldstein coincide com a de Trotsky: ele foi uma figura destacada no partido bolchevique, mas tinha origem em outro partido, o partido menchevique. Ele rompeu com os bolcheviques em 1905, ficando junto aos mencheviques e só uniu-se ao partido bolchevique em julho de 1917, quando a revolução já era iminente. Trotsky participou da revolução de outubro com reservas: ele não acreditava na revolução em um só país. Quando a revolução alemã fracassou, Trotsky insistiu nessas reservas. Passou a formar uma fração (um grupo organizado dentro do partido, com regras próprias) e entrou em choque cada vez mais intenso com o poder soviético no decorrer dos anos 20. Trotsky apresentou nos seguintes termos a suas reservas quanto à revolução de outubro de 17:

 

Sem esperar os outros, começamos a luta e prosseguimo-la no nosso país, convencidos de que a nossa iniciativa sacudirá outros países. Mas se isto não acontecer, seria insensato acreditar— a experiência histórica e as considerações teóricas provam-no — que a Rússia revolucionária, por exemplo, possa resistir à Europa conservadora... Considerar as perspectivas da revolução social nos quadros nacionais significaria tornar-se vítima da mesma estreiteza nacional que é a própria essência do social-patriotismo (TROTSKY, apud: BRAR, 2013)

 

Trotsky, aí acima, polemizou com o próprio Lênin a respeito da possibilidade de construir o socialismo em um só país: Lênin não foi representado em 1984, como também já foi notado que ele foi omitido em A Revolução dos Bichos. A posição do narrador de 1984 a respeito de alguns episódios têm ressonância em episódios reais que também envolveram Trotsky, tais com os grandes expurgos:

 

Os grandes expurgos, que envolveram milhares de pessoas com julgamentos públicos dos traidores, e criminosos do pensamento que faziam confissões abjetas e em seguida eram executados, serviam como punições excepcionalmente exemplares e só aconteciam a cada dois ou três anos (ORWELL, 2012, p. 59).

 

Os grandes expurgos históricos são uma passagem muito controversa da história da União Soviética. A hipótese dos partidos comunistas da época referia-se aos Processos de Moscou como parte de uma série de expulsões, prisões e julgamentos públicos onde algumas altas autoridades da União Soviética foram acusadas de colaboração com a Alemanha e o Japão, tendo formado um bloco zinovievista e trotsquista, cometendo sabotagens, atentados e espionagem. Na opinião de boa parte da imprensa oficial, assim como na opinião de Trotsky, que negou envolvimento e montou a Comissão Dewey para fazer um julgamento paralelo, eram expurgos injustos e processos encenados, montados por Stálin para fortalecer sua ditadura e sua posição pessoal em um mundo em que a agressão da Alemanha e do Japão à União Soviética era cada vez mais iminente. A hipótese trotsquista, portanto, assemelha-se mais à descrição apresentada no texto de Orwell. Harpal Brar comentou a respeito dos grandes expurgos:

 

Numa grosseira violação da verdade histórica, falseando e distorcendo esta verdade, estas pessoas afirmam que os Julgamentos de Moscou foram um expurgo conduzido pela 'burocracia stalinista' contra os 'verdadeiros bolcheviques', os acusados nos Julgamentos. A burguesia e seus lacaios no movimento proletário, ao repetirem incessantemente essas categóricas mentiras, são assim capazes de induzir ceticismo nas mentes dos operários a respeito da prática do socialismo. Seria de fato fútil lutar pela vitória do socialismo, se tal vitória significasse apenas a eliminação dos revolucionários verdadeiros. A verdade, entretanto, é justamente o oposto. Os Julgamentos de Moscou foram de fato um expurgo - um expurgo revolucionário - pelo qual o movimento da classe operária revolucionária na União Soviética, sob a direção do PCUS(B), dirigido por Stalin, adotou ação contra os desertores do campo do comunismo que, incapazes de enfrentar os problemas da construção do socialismo em um país atrasado, adotaram a linha da rendição ao capitalismo internacional e nacional, fizeram alianças com os poderes imperialistas (BRAR, 2013).

 

Sendo assim, o ponto de vista de Trotsky parece ter sido considerado pela narrativa do romance de Orwell. A hipótese dos partidos comunistas foi silenciada. Na narrativa de 1984, o paradeiro de Goldstein não era conhecido. Ele poderia estar até mesmo dentro da própria Oceânia ou apoiado por estrangeiros. De fato, o fato de que o inimigo do estado tivesse apoio de benfeitores estrangeiros ou estivesse dentro do próprio estado talvez explique a sensação de paranoia presente no estado. Com um inimigo declarado conspirando internamente ou em algum lugar no exterior, com apoio de estrangeiros, a tendência natural era a tensão interna na Oceânia aumentar. Algo semelhante ocorreu na União Soviética: a acusação e o julgamento de altas autoridades envolvidas em conspirações não deixou, inclusive, de aumentar a tensão interna. Alguns intelectuais ocidentais romperam com o partido comunista nessa época, em função da péssima repercussão dos julgamentos, supondo ser uma repressão especificamente contra os intelectuais em geral.

 

2 A RECEPÇÃO CRÍTICA DO ROMANCE 1984 DE GEORGE ORWELL

 

O romance 1984 não é lido constantemente, na atualidade, como uma referência à União Soviética de Stálin. Ele é, em geral, visto como profecia pessimista sobre o futuro, assim como crítica às políticas tanto das democracias ocidentais quanto do “totalitarismo” nazista e soviético. Ele serve, então, a variadas interpretações, desde a ficção científica quanto a abordagens políticas. Ben Pinlott comentou a respeito em um posfácio:

 

Há aspectos do romance que certamente levam o crítico moderno a ser condescendente. Não apenas a suposta advertência contida no livro estava completamente equivocada no seu intervalo de tempo (não houve, até aqui, uma terceira guerra mundial ou uma revolução ocidental e os sistemas totalitaristas são hoje menos, e não mais, comuns do que há quarenta anos), mas as fraquezas literárias do romance podem ser vistas com mais clareza agora. Se 1984 é um romance acessível, isso se deve em parte à lucidez da escrita de Orwell. Mas isso também se deve à falta de sutileza de sua caracterização e a uma trama muito simples (ORWELL, 2009, P. 382).

 

Pode-se, além disso, aludir a uma outra questão: o uso de 1984 e da outra obra de Orwell, Revolução dos Bichos, como propaganda anticomunista durante a Guerra Fria. Ou seja: os textos foram recebidos efetivamente como propaganda ficcional anticomunista. E 1984 tinha semelhanças com o romance Nós, do escritor Eugene Zamiatin, exilado em Paris depois da revolução de outubro. Tudo indica que 1984 tem bem mais do que relações intertextuais com Nós. Parece que Orwell fez um plágio consciente, já que Orwell mesmo admitiu essa semelhança em outro de seus trabalhos. A trama dos argumentos, os principais personagens, os símbolos e o clima de sua narração, pertenciam ao romance esquecido de Zamiatin. O russo, desiludido com o fracasso da revolução de 1905, dedicou seus esforços a atacar o partido social-democrata operário criado por Plekanov. Ele escreveu sua obra anticomunista depois da revolução de outubro, quando se exilou em Paris. Mesmo Isaac Deutscher, em seu livro O Misticismo da Crueldade, afirmou que Orwell tomou emprestada a ideia de 1984, o argumento, os principais personagens, os símbolos e toda a situação do argumento da obra Nós, de Eugene Zamiatin. No entanto, se o estilo de Zamiátin era prosa poética, em Orwell predominam descrições naturalistas (PIMLOTT, 2009, p. 396).

Vemos, então, que por trás da imagem do grande escritor, há alguém que copia histórias. E o mais curioso é a recepção dos textos de Orwell, que serviram para elaborar modelos teóricos para o funcionamento da União Soviética, com ampla aceitação acadêmica no mundo ocidental. O que o romance 1984 postula é muito bem ajustado àquilo que precisava o imperialismo na Guerra Fria contra o comunismo. O impacto de 1984 foi enorme em sua época. A população de fato acreditou que viver na União Soviética era daquele jeito. O romance ajudou a criar um ambiente de paranoia anticomunista e antissoviética muito palpável entre as massas. O depoimento de Isaac Deutscher (biógrafo de Trotsky) é claro a respeito:

 

Você leu esse livro? Você precisa lê-lo, senhor. Então saberá porque temos que jogar a bomba atômica nos bolcheviques! Com essas palavras, um miserável cego e vendedor de periódicos recomendou-me em New York [a novela] 1984, poucas semanas antes da morte de Orwell (ESCUSA, 2012).

 

O romance funciona, então, como entretenimento, ao mesmo tempo em que efetivamente pode ser usado – e foi —como propaganda anticomunista. O texto tem limitações enquanto arte. A narrativa e os diálogos poderiam ser melhor desenvolvidos. Talvez o repúdio ao “duplipensar”, ao pensamento que lida com a luta dos contrários, ou seja, a dialética, parece fazer com que os personagens não sejam, também, contraditórios. Cada personagem tende a caricaturar uma posição política. Assim, Parsons é um bobo alegre, Syme é um fanático, características que são atribuídas aos ativistas políticos. Os proletas parecem tirados de revistas de humor britânicas e Sr. Charrington, antiquário que aluga um quarto para o ninho de amor de Winston, e que se revela um Policial do Pensamento disfarçado, parece ter sido extraído de um romance de suspense barato.

Outro personagem que é totalmente caricatural é O´Brien. Não é alguém humano, é apenas a imagem sombria e definitiva do totalitarismo. Mesmo Winston, personagem com quem o leitor é levado a se identificar, não é um personagem totalmente simpático. É apresentado, desde o princípio, como um perdedor. Não é fácil para o leitor sentir a queda de Winston como uma tragédia.

O romance 1984 foi um sucesso instantâneo ao ser publicado em junho de 1949, apenas sete meses antes da morte do autor por tuberculose, o que levou à hipótese de que o texto fosse um delírio provocado pela doença. A narrativa é em alguns momentos lembra uma fantasia adolescente: reúne elementos de sexo furtivo, rebeldia solitária e terror implacável, levando todos esses elementos a um extremo. O romance foi interpretado como comentário social ou mesmo como profecia. Thomas Pynchon escreveu a respeito do fato de 1984 ter sido escrito na esteira do sucesso de A Revolução dos Bichos, utilizando-se de um fundo político e alegorias semelhantes, utilizando mais ou menos a mesma fórmula:

 

De certa forma, esse romance foi uma vítima do sucesso de A revolução dos bichos, lido por muitas pessoas como uma franca alegoria do destino melancólico da Revolução Russa. Desde o minuto em que o bigode do Grande Irmão surge no segundo parágrafo de 1984, muitos leitores, lembrando imediatamente de Stálin, mantiveram o hábito de tecer analogias ponto a ponto, como haviam feito na obra anterior. Embora o rosto do Grande Irmão certamente seja o de Stálin, do mesmo modo que o rosto de Emannuel Goldstein, o desprezado herege do Partido, é o de Trotski, os dois não se alinham a seus modelos de maneira tão elegante quanto Napoleão e Bola de Neve em A revolução dos bichos. Isso não impediu que o livro fosse vendido nos Estados Unidos como uma espécie de tratado anticomunista. O romance foi publicado no auge da era McCarthy, quando o “comunismo” era oficialmente condenado como uma ameaça mundial, monolítica, e não havia motivo até mesmo para distinguir Stalin de Trotski, assim como não haveria motivo para que pastores ensinassem as ovelhas sobre as nuances do reconhecimento de lobos (PYNCHON, 2009, p. 396).

 

Orwell parece, em 1984, desenvolvido as alegorias no sentido de ser crítico, também, ao mundo ocidental e aos métodos de controle que, num futuro próximo, ele via que as democracias capitalistas desenvolveriam. Ele passou a não desejar associar tão diretamente seu texto à revolução russa, colocando várias referências mais especificamente inglesas. Ele parece ter intuído formas de dominação ainda pouco aceitas ou desenvolvidas em seu tempo, como a televisão e a pornografia, jogariam um importante papel nas sociedades do futuro. Nesse sentido é que seu texto foi admirável e profético. Esses elementos estão ausentes de A Revolução dos Bichos, que parece uma fábula anticomunista utilizável desde o ensino fundamental para doutrinar contra o anticomunismo de uma forma indireta e facilmente compreensível. Assim, Orwell casou o argumento de A Revolução Traída de Trotsky ao estilo das fábulas de La Fontaine, transmitindo ao final um notável antídoto contra o comunismo: todo esforço de lutar contra a opressão produzirá fatalmente uma opressão ainda mais violenta, daí que todo esforço utópico é inútil, pois toda revolução degenera.

Em 1984, a referência à revolução russa e seus desdobramentos permanece, mas o romance funciona como um quebra-cabeça intelectual, onde todas as respostas e objeções fáceis são bloqueadas de uma forma esperta. Não se pode objetar que o texto é simples propaganda anticomunista, pois tal não é tão óbvio.

Ao mesmo tempo, algumas descrições do futuro foram associadas ao presente, ao momento em que Orwell escreveu o seu texto: a Grã-Bretanha do pós-guerra, onde havia monotonia, escassez material e burocracia governamental, é a base da inspiração do país no futuro. Uma personagem que dá mais alento é Júlia, mais agradável e simpática do que Winston. Em meio ao atoleiro de desalento de Oceânia, a política se mostra totalmente entediante para Júlia. Ela tem como objetivos na vida a despreocupação e um ideal adolescente de liberdade, não estando preocupada com a próxima geração, ao ponto de ser chamada por Winston de “rebelde da cintura para baixo”. Como um ideal como esse de Julia poderia sobreviver ao domínio do partido? Winston resiste à nova era como uma relíquia, lembrando-se de incoerências e desvendando o processo através do qual o partido reescrevia o passado. Julia parece indicar que os métodos novos de dominação do partido falharam. Contraditoriamente, um dos temas da narrativa é que os métodos totalitários do estado são inevitavelmente ineficazes, embora ele não aponte esperanças ao final.

Atualmente, muitas palavras e conceitos utilizados em 1984 passaram a ser usadas comumente por pessoas que nunca leram o livro. A maior parte desses termos é direcionada contra o poder do estado e, em especial sobre a capacidade do estado de distorcer a realidade. Pode-se objetar que atualmente a dominação não é realizada somente pelo estado, mas também pelas grandes corporações, ou seja, as grandes empresas e monopólios. Embora 1984 seja lido como uma crítica ao trabalhismo inglês e às democracias ocidentais, esse elemento fundamental das democracias capitalistas (sua economia é composta de grandes monopólios que efetivamente buscam vigiar o que seus trabalhadores fazem fora e dentro do serviço) há esse ponto cego, pois as corporações estão totalmente ausentes. O foco é no estado, o que dá argumentos aos privatistas e neoliberais que querem combater o estado.

A atitude do estado quanto ao sexo também é ambivalente. Ao mesmo tempo em que há “liga juvenil antissexo”, ou seja, o sexo é proibido pelo estado, há uma produção estatal de pornografia, o que é sinal de que ela é tolerada e consumida. Ora, a pornografia instiga ao sexo, ou pelo menos desperta os desejos sexuais. É pelo menos contraproducente por parte do estado instigar algo oficialmente com produtos para serem consumidos e ao mesmo tempo proibi-lo. Com certeza, esse método de controle seria ineficaz. Ben Pimlott define a respeito:

 

A provação da sociedade de Oceânia, na qual tudo é feito coletivamente e na qual, no entanto, todos permanecem sós, é a negação do erótico. É isso que conflagra os sentimentos dominantes de “medo, ódio, adução e triunfo orgiástico”. A histeria sexual é deliberadamente usada para fermentar uma aversão sádica aos inimigos imaginados e para estimular um amor masoquista e despersonalizado em relação ao Grande Irmão (PIMLOTT, 2009, p. 387).

 

A pornografia mostra-se uma forma de controle eficaz nas democracias capitalistas, uma vez que oficialmente, o poder permite alguma liberdade sexual. No entanto, a pornografia é uma produção artística de baixo nível, é degradação estética. Ela reproduz clichês e estereótipos. Ora, no estereótipo é que está a ideologia dominante. Quem consome pornografia estaria, ao mesmo tempo em que sentindo uma liberação imaginária, reforçando em sua mente os estereótipos desejados pelo poder dominante: o machismo, a coisificação das pessoas no sistema capitalista, em especial a situação submissa da mulher, assim como a homossexualidade masculina encontra-se segregada em filmes onde há somente esse tipo de homossexualidade. A homossexualidade feminina está presente na pornografia através de um olhar masculino que é tolerante com ela, mas mostra-se intolerante com a homossexualidade masculina. Outro ponto é que a pornografia sempre permaneceu proibida na sociedade soviética, mas passou a ser permitida nas democracias ocidentais, principalmente a partir de 1968. No entanto, não ocorre a produção estatal de pornografia como no romance de Orwell.

Sendo assim, a estratégia de Orwell parece ser a de projetar os mecanismos de opressão sofisticados que pressente e observa na Inglaterra de seu tempo, já um capitalismo desenvolvido: televisão, pornografia, etc, e projetá-los para uma sociedade dominada pelo estado, inspirada na União Soviética dos anos 30, então presidida por Stálin.

Julia, embora mais jovem que Winston, parece ser também fora do tempo: o caso de amor que ela tem com Winston parece uma narrativa de um país invadido, não de um país onde há controle total da vida privada e individual.

O romance sustenta-se, ainda hoje em dia, não devido à profundidade psicológica, mas devido à textura extraordinária do pano de fundo. O texto é um ensaio de não ficção sobre o poder maligno, disfarçado de uma ficção de horror cômica. É difícil, no entanto, ver nesse romance uma sátira. Ele oscila entre uma ficção científica, uma alegoria política e um romance de horror.

Em relação à fábula anterior, Revolução dos Bichos, esse romance de Orwell elabora melhor alguns elementos do mundo ocidental, tais como a indústria da cultura presente no mundo do futuro, ao falar da televisão e da pornografia. Na realidade, a televisão e a pornografia nunca foram utilizadas como meios de controle na União Soviética. A pornografia nunca foi permitida oficialmente, embora possivelmente tenha circulado clandestina. Já a televisão dos países socialistas nunca buscou abertamente o lucro promovendo programas falando de sangue, de crimes e de escândalos sexuais como no caso dos países do Ocidente, concentrando-se no aspecto educativo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O romance 1984 foi o último texto publicado de George Orwell e, como Revolução dos Bichos, é um grande sucesso, sendo esses dois seus livros mais conhecidos. Ambos foram marcados pela posição trotsquista de Orwell em política e de sua decisão de que era preciso demolir o mito soviético para fazer nascer um verdadeiro socialismo. O que observou-se, em nossa época, com o fim da União Soviética, foi um período que não se mostrou promissor como o esperado –e nem nasceu o tal novo socialismo.

O romance 1984 apresentou, como Revolução dos Bichos, uma estrutura amparada na analogia entre o Grande Irmão (Stálin) e o dissidente político (Lev Davidovich Bronstein, ou Trotsky). A narrativa de 1984 se faz com base nessa oposição. Menciona-se A Revolução Traída, assim como são citados os grandes expurgos. A divergência entre Trotsky e Stálin, no entanto, não fica jamais clara. Comparou-se, então, nesse artigo, as posições históricas dos dois líderes e o desenrolar do conflito entre eles como uma reflexão que pode esclarecer a narrativa histórica que serve de fundo para 1984.

O romance é bastante simples enquanto arte, com descrições naturalistas e personagens que representam diferentes posições políticas. Os personagens não têm aprofundamento psicológico, o que de certa forma torna o pano de fundo da narrativa histórica propriamente dita bastante importante para entender o que se passa. Nessa narrativa, quem sabe para evitar aproximações demasiado explícitas com a revolução russa como Revolução dos Bichos permitia, Orwell introduziu elementos presentes nas sociedades ocidentais, mas que pouco haviam sido utilizados como formas de manipulação de massas, tais como a pornografia e a televisão. Ele descreveu o presente opressivo da Inglaterra depois da guerra em suas descrições de escassez, aproveitou alguns fatos históricos da União Soviética durante o período Stálin e projetou o conjunto como uma sociedade imaginária, a Oceânia, onde o estado oprimia a todos e até a vida íntima dos cidadãos era vigiada.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRAR, HARPAL. Leninismo X Trotsquismo. <http://comunidadestalin.blogspot.com/2011/03/trotskismo-x-leninismo-indice.html>>.

 

ESCUSA, Alberto. Quien fué realmente George Orwell? ¿Quién fue realmente George Orwell? Los mitos orwellianos: de la Guerra Civil española al holocausto soviético. Comunidadestalin.blogspot.com. <<acesso em 16 de outubro de 2012>>.

 

 

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

 

PYNCHON, Thomas. Posfácio. In: 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

 

PIMLOTT, Ben. Posfácio. In: 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

 

SAYERS Michel. KAHN, Albert E.   A Grande Conspiração contra a União Soviética. <http://comunidadestalin.blogspot.com.br/2011/12/grande-conspiracao-guerra-secreta_28.html>>.



[1] Aluno do Curso de Letras, da FASF/UNISA, Polo Luz/MG.

[2] Aluna do Curso de Letras, da FASF/UNISA, Polo Luz/MG.

Um comentário:

Paulo Falcão disse...

Excelente indicação. Muito obrigado.