Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior[1]
RA: 2322919
RESUMO
Esse
artigo busca debater o romance O Zero e o
Infinito, de Arthur Koestler. O texto ficcionaliza um episódio marcante do
século XX, os chamados Processos de Moscou. Koestler apresenta uma versão dos
acontecimentos considerada, em linhas gerais, tida como historicamente correta
pelo historiador Tony Judt em Koestler, um intelectual exemplar, artigo de um
dos últimos livros de Judt, Reflexões sobre um século esquecido. Aqui
problematiza-se essa relação entre história e ficção elaborada por Koestler:
Merleau-Ponty criticou-a, dizendo-a uma visão liberal, humanista abstrata, que
não levava em conta o fato de que estamos condenados à violência, o necessário
seria escolher a que tipo de violência, se uma retrógrada ou progressista..
Merleau-Ponty aceita a violência revolucionária, mas também julgava que os
Processos de Moscou julgavam opositores políticos, não pessoas realmente
culpadas. Orwell julgou que Koestler estava próximo de uma visão conservadora
pessimista, generalizando que toda revolução está fadada a terminar mal. Mesmo
Orwell criticou Koestler por essa generalização. Não é, no entanto, consensual
entre os historiadores a versão adotada por Koestler a respeito dos Processos
de Moscou: existem, também, os que acreditam que eles foram justos. A versão
histórica que embasou a ficção de Koestler seria, então, falsa.
Palavras-chave: ficção, história, Processos de
Moscou, O Zero e o Infinito, marxismo
1 INTRODUÇÃO
Arthur Koestler
(1905-1983) foi, juntamente com o filósofo Merleau-Ponty e o também George
Orwell, um dos principais autores do século XX a tratar do que eles chamavam de
“problema comunista”. Koestler celebrizou-se principalmente devido ao sucesso
de seu livro O Zero e o Infinito (Darkness
at Noon) tematizando os famosos Processos de Moscou na Rússia, entre 1937 e
39. É considerado um libelo contra Joseph Stálin.
Recentemente, Koestler foi
objeto de análise de um ensaio do prestigiado historiador inglês Tony Judt
(1948-2010), em seu livro Reflexões sobre
um Século Esquecido. Judt considerou-o um intelectual exemplar do século XX
por seus múltiplos trabalhos sobre vários assuntos, mistura de várias culturas
e inúmeras viagens pelo mundo. Ao mesmo tempo, essa abordagem é polêmica, pois
recentemente Koestler foi bastante criticado numa biografia de Casarani. O
intento de Judt foi defender Koestler, com quem aparentemente se identifica e
sente admiração, diante das críticas de Casarani: Koestler seria egoísta,
alcóolatra, obcecado por sexo ao ponto de ter sofrido acusações de assédio
sexual e violação.
Nosso
ponto aqui é ir mais além da crítica do biógrafo Casarani e do debate de Judt,
é fazer uma crítica à versão dos fatos históricos apresentada no texto Zero e
Infinito, texto publicado em 1940, introduzindo para tanto uma nova
historiografia. O texto se vale da ficção para entrar na mente de um comunista
preso ao tempo dos processos de moscou, Rubachov, acompanhando sua prisão, sua forma
de pensar e sua condenação. Ao acompanhar a mente de um comunista, o narrador
assumiu uma posição de onisciência, apresentando de forma altamente crítica a
posição de Rubachov. Koestler não menciona diretamente a Rússia, mas os
personagens têm nomes russos. O texto ficou famoso por apresentar uma visão
interna dos processos, revelando, supostamente, os seus meandros: Rubachov,
comunista ortodoxo, confessa tudo em nome do partido e é condenado, mesmo sendo
inocente. É, portanto, um texto que se baseia numa determinada visão histórica
de um evento histórico polêmico: os Processos de Moscou.
Koestler, sem mencionar
diretamente sua referência à União Soviética (a não ser na dedicatória), fez um
livro que afastou muitas pessoas de Marx, Lênin e Stálin. Mostrou o marxismo
como um tipo de pensamento mecanicista que sacrifica as pessoas a ideais e
desumaniza, tendendo a analisá-lo como um problema psíquico, uma neurose. O
texto foi intensamente criticado em sua época –e não só por comunistas, mas
também pela esquerda em geral, uma vez que o ano em que foi publicado (1940) o
nazismo estava muito forte, prestes a invadir a França e a Inglaterra. Koestler
escreveu esse livro em inglês, embora ele fosse de origem húngara e tivesse
também vivido na Áustria e em Paris. O título em inglês, Darkness at Noon, refere-se ao momento em que Cristo morreu e disse
a famosa frase: “Senhor, por que me abandonaste?” Assim, o condenado no
Processo de Moscou é associado a Cristo.
A narrativa se embasa
nesse fato histórico dando a entender que existe uma verdade evidente sobre
ele, o que até hoje não é verdade. Trata-se de uma discussão histórica que
ainda está em aberto, portanto, a narrativa pode ser repensada a partir de
outro ponto de vista: como postulam alguns historiadores norte-americanos como
Grover Furr e Arch Getty, não surgiram provas mostrando que os Processos de
Moscou são falsos, ao contrário do que postula O Zero e o Infinito. Essa hipótese será, portanto, aqui
problematizada, juntamente da hipótese levantada pelo texto.
1
INTERPRETAÇÃO DO MARXISMO EM O ZERO E O INFINITO
A visão de Koestler sobre
o marxismo é que ele era um “salto de fé”, um instrumento para decodificar a
experiência social conforme a grade de suspeita: as coisas não são o que
parecem ser, mas só quem pode interpretá-las seriam os iniciados. Koestler
aproximou-se do marxismo durante um período, através do partido comunista
alemão, mas deixou o partido em 1938 e logo a seguir escreveu O Zero e o Infinito.
Koestler
também publicou o texto O Deus que Fracassou
(1949) já em plena Guerra Fria, falando sobre fé e desilusão comunista. Depois
de desiludido com o comunismo, Koestler passou para a parapsicologia, assim
como fez especulações sem muitas preocupações científicas e escreveu
reportagens, sendo basicamente um jornalista.
Nas palavras de David
Cesarani: “Pela força de seus argumentos e do exemplo pessoal, Koestler
emancipou milhares de pessoas da servidão a Marx, Lenin e Stalin” (CESARANI, apud: JUDT, 2008, p. 59). Para ele,
nenhum ideal abstrato pode justificar o sacrifício individual. Depois de preso
na Espanha durante a guerra civil espanhola, Koestler fez críticas
racionalistas ao marxismo-leninismo, ambicionando desmontar o materialismo
dialético. Para Cesarani, biógrafo de Koestler, usar a crítica materialista
contra um pensamento materialista é uma gafe.
Simone de Beauvoir dá uma
opinião contraditória sobre Koestler ao tempo em que a Tchecoslováquia
tornou-se comunista: “Ele sente remorso por não ser mais comunista, pois agora
eles vão ganhar, e ele queria estar do lado vencedor (...). Koestler teve uma
educação marxista medíocre” (BEAUVOIR, apud:
JUDT, 2008, p. 65).
A versão adotada por
Koestler dos Processos de Moscou era a corrente na imprensa do Ocidente na
época e até hoje é citada até mesmo por historiadores prestigiados como
Hobsbawn: os processos seriam forjados e encenados para reforçar o poder do
ditador Stálin. Eles prendiam comunistas sinceros e fiéis ao partido.
Como atualmente a
tendência é revisar a história da II Guerra Mundial contra a URSS, o biógrafo
Cesarani impacienta-se com a demora de Koestler em abandonar o comunismo. Mesmo
Judt pondera que 1938 não era a hora de sair criticando o partido, pois os
nazifascistas estavam em alta. No entanto, esse livro de Koestler, O Zero e o Infinito, teve certamente um
papel em municiar a propaganda antissoviética, e isso em pleno ano de 1940,
quando os nazistas e fascistas estavam conquistando toda a Europa, invadiram a
França e bombardeavam intensamente a Inglaterra. Cesarani, seu biógrafo, o protege
dizendo que ele prometeu não “abandonar a fidelidade” à União Soviética. Mas o
livro Zero e o Infinito é justamente
o contrário. E, conforme um intelectual marxista dissidente como Lukács, a
melhor forma de combater o nazismo, no período, era no partido comunista. A
linha da política internacional da Inglaterra e da França era de jogar Hitler
contra a União Soviética. Essa reflexão está presente até mesmo em Gorbachev.
O
Zero e o Infinito foi
o livro mais duradouro de Koestler, foi muito influente e vendeu, só na França,
420 mil exemplares nos anos 50, impulsionado, claro, pela polarização da Guerra
Fria, pois o livro servia muito bem aos interesses das potências ocidentais de
combater a União Soviética e, em especial, destruir “o mito soviético”. Esse
livro tornou Koestler rico e famoso. Se não fosse por ele, não estaríamos lendo
sua biografia.
Koestler baseou o livro em
sua experiência de prisão na Espanha e em seu conhecimento pessoal de Bukharin
e Radek. O personagem Nicholas Salmonovitch Rubachov, um velho bolchevique que
acaba vitimado pelos expurgos de Moscou, é inspirado neles. Rubachov se opôs à
linha do partido, tendo então abandonado suas ideias e pensamentos individuais
em prol do que ele supõe que é a grande narrativa da história. Assim, o texto
de Koestler tem um pressuposto: Bukharin e Radek teriam sido presos apenas por
estarem fazendo oposição política. Essa informação que se pode depreender é
fundamental, porque hoje em dia a historiografia tende a esquecer esse fato e
supor somente que “Stálin fuzilou a velha guarda para aumentar seu poder”. O
historiador Grover Furr diz a respeito disso em seu texto Evidências da Colaboração de Trotsky com os Nazis e os Japoneses:
O
depoimento dos réus nos Julgamentos de Moscou é rotineiramente descartado como
falsa. Os acusados dizem ter sido ameaçados, ou torturados, ou de alguma outra
forma induzidos a confessar crimes absurdos que eles não poderiam ter cometido.
Isto está tudo errado.
Não
há nenhuma evidência digna do nome de que os réus foram ameaçados, torturados
ou mesmo induzidos a dar confissões falsas por promessas de algum tipo. Em
Kruschev, novamente sob Gorbachev e, de fato, até hoje a posição oficial a
respeito da parte de ambos os regimes, tanto o soviético como o russo, tem sido
que as confissões dos acusados são falsas. Os materiais de investigação, todos,
mas uma pequena fração dos que são ainda classificados na Rússia hoje, estão
ausentes de qualquer prova que possa desacreditar os processos e provar que as
confissões dos réus eram falsas. Mas nenhuma evidência tenha sido descoberta. É
esta a razão pela qual podemos estar razoavelmente confiantes de que não existe
tal evidência (FURR, 2013).
No
texto, bastante longo, de onde foi retirada a passagem acima, Furr ainda
detalha evidências de que Trotsky, um dos supostos inspiradores da narrativa de
Koestler, junto a Bukharin, Trotsky e Radek, teria de fato feito parte de uma
conspiração para derrubar o governo da União Soviética. Em 1992, durante o
curto período de “transparência” no governo de Yeltsin, os apelos ao Tribunal
do Soviete Supremo de dez dos réus dos Julgamentos de Moscou foram publicados
no Jornal Izvestiia. Todos os réus em
questão haviam sido condenados à morte com base nas suas próprias confissões e
nas acusações de outros réus. Se eles nunca tentaram retirar suas confissões e
proclamar inocência esta seria a sua última chance de fazê-lo. Nenhum deles o
fez. Cada um deles confirmou a sua própria culpa.
Dr. D.D. Pletnev, um réu
de menor importância no Julgamento de Março de Moscou de 1938, foi tema de
inúmeros artigos que o declaravam uma vítima inocente de torturas, alegando que
ele proclamou a sua inocência na prisão após o julgamento. Mas um estudo de
todos estes artigos e dos fragmentos de correspondência de Pletnev que eles
publicaram mostra que isso era falso. Pletnev nunca alegou inocência do crime
ele foi condenado por no julgamento. Os artigos estão cheios de contradições e
declarações desonestas. Não há nenhuma base para reivindicar que Pletnev foi
torturado. No caso de alguns dos réus
mais proeminentes, Zinoviev e Bukharin, há boas evidências de que eles não
foram ameaçados ou mal tratados.
A maioria das pessoas que
desconsidera as confissões dos réus nos Processos de Moscou nunca estudou as
transcrições destes ensaios. Eles os desprezam porque eles foram informados de
que as confissões dos réus foram fabricadas. Na realidade, não há evidência de
que isso foi assim.
Grande parte dos réus nos
Julgamentos de Moscou declarou que Trotsky estava colaborando com a Alemanha ou
o Japão. A maioria destas testemunhas disse que tinha sido informado da
colaboração de Trotsky por outros. Mas alguns dos acusados testemunharam que
eles tinham sido informados da colaboração pessoalmente por Trotsky,
pessoalmente pelo filho de Trotsky, Leon Sedov, ou em notas ou cartas de
Trotsky ou Sedov.
O estado deste testemunho,
portanto, é mais direto. N nos concentrar no testemunho em primeira mão da
colaboração de Trotsky. Nós não iremos rever todas as evidências indiretas ou
de segunda mão em detalhe. Vamos, no entanto, dizer algo sobre esta prova no
final do artigo, observar como ela corrobora a evidência em primeira mão. Sobre
Bukharin, Furr comenta em um texto que se chama Uma Evidência a Mais da Culpabilidade de Bukharin, trazendo a fala
de Humbert Droz a respeito do caso:
Antes de partir fui a
ver a Bukharin por última vez, sem saber se voltaria a vê-lo em meu regresso.
Tivemos uma conversação longa e franca. Ele me colocou em dia a respeito dos
contatos realizados por seu grupo com a fração de Zinoviev-Kamenev a fim de
coordenar a luta contra o poder de Stalin. No lhe ocultei que eu não estava de
acordo com este vínculo entre as oposições. A lucha contra Stalin não é um
programa político. Combatemos com razão o programa dos trotskistas sobre as
questões essenciais, o perigo dos kulaks na Rússia, a luta contra a frente
única com os socialdemocratas, os problemas chineses, a míope perspectiva
revolucionária, etc. No dia seguinte de la vitória comum contra Stalin, os
problemas políticos nos dividirão. Este bloque é um bloco sem princípios que
será derrubado antes de atingir algum resultado.
“Bukharin também me
disse que haviam decidido utilizar o terror individual a fim de livrar-se de
Stalin. Sobre este ponto, também lhe expressei minhas reservas: a inserção do
terror individual nas lutas políticas nascidas da Revolução Russa correm
fortemente o risco de voltar-se contra aqueles que os empregam. Nunca foi uma
arma revolucionária. “Minha opinião é que devemos continuar a luta ideológica e
política contra Stalin. Sua linha levará em um futuro próximo a uma catástrofe
que abrirá os olhos dos comunistas e dará lugar a um câmbio de orientação. O
fascismo ameaça a Alemanha e nosso grupo de charlatães será incapaz de resistir
a ela. Diante da queda do Partido Comunista de Alemanha e a expansão do
fascismo a Polônia e França, a Internacional deve mudar sua política. Esse
momento será então nossa hora. É necessário, pois, seguir sendo disciplinados,
aplicar as decisões sectárias depois de haver lutado e nos ter oposto aos erros
e medidas de esquerda, mas seguir lutando no terreno estritamente político.
Bukharin, sem dúvida,
havia compreendido que eu não me uniria cegamente à sua fração cujo único
programa era fazer desaparecer o Stalin. Esta foi nossa última reunião. Era
evidente que ele não tinha confiança na tática que lhe propus. Também sem
dúvida sabia melhor que eu os crimes de que era capaz Stalin. Em poucas
palavras, aqueles que, depois da morte de Lenin e com a base em seu testamento,
podiam destruir politicamente Stalin, buscavam, ao contrário, eliminá-lo
fisicamente, quando este tinha firmemente em suas mãos o Partido e o aparato
policial do Estado (FURR,
2013).
O
Zero e o Infinito se
valeu do grande evento midiático que foram os Processos de Moscou. Koestler
escreveu um romance que baseia-se naquilo que saía nos jornais a respeito dos
julgamentos, fazendo, é claro, um texto em sintonia com a mídia ocidental, que
então propagandeava, devido à sua hostilidade à União Soviética, que os
julgamentos eram falsos e encenados. No entanto, alguns na época estiveram
convencidos de que os processos eram convincentes, alguns norte-americanos,
inclusive. Rubachov, no romance, confessa porque “o partido quer”. Ivanov e
depois Gletkin buscam convencer Rubashov a confessar pelo bem do partido. O
romance captura a visão da mídia de como funciona o comunismo e a confirma por
dentro, a partir dos pensamentos de um personagem. O Zero e o Infinito ao mesmo tempo mostrava os julgamentos como
adulterados pelo regime ditatorial como dava uma face humana ao indivíduo que
supostamente “caiu na armadilha do comunismo”.
Apesar de inspirado na
caça às bruxas e na inquisição, o romance não reforça a hipótese hoje tão comum
de que os condenados de Moscou confessaram sob tortura. No romance não há
tortura, praticamente não se encontra violência. Os comunistas não usariam a
tortura física para extrair suas curiosas confissões. Eles convenceriam os
processados de sua culpa. Koestler tenta criar diálogos supostamente
dialéticos, mas mesmo Gletkin usa ameaças e a força quando necessário. Tony
Judt espanta-se com isso que lhe parece concessão de Koestler ao comunismo,
reafirmando a versão de hoje em dia que os regimes comunistas recorriam à
tortura e à violência. Pode-se supor que Koestler dialogava com a opinião
pública de seu tempo, em que a falsidade dos processos de Moscou não era,
ainda, de aceitação universal. Judt se pergunta se Koestler sabia que a versão
histórica em que Koestler se baseava era falsa nesse ponto. E, logo a seguir, responde
à sua própria pergunta: Koestler não escreveu um texto sobre os Processos, mas
sim sobre os comunistas. Em O Deus que
Fracassou, ele afirma a respeito do período:
Como nossas vozes
estrondeavam de justa indignação, denunciando falhas nos procedimentos da
justiça em nossas confortáveis democracias; e, como permanecíamos em silêncio
quando nossos camaradas, sem julgamento nem provas concretas, eram liquidados
no sexto socialista do planeta. Cada um de nós mantém um esqueleto no armário
de sua consciência; reunidos, formariam galerias de ossos mais labirínticas que
as catacumbas de Paris (KOESTLER,
apud: JUDT, 2008, p. 33).
Koestler,
então, é um intelectual ex-comunista que busca trazer outros intelectuais para
o anticomunismo através de sua própria linguagem: o objetivo dele é mostrar que
o comunismo persegue os intelectuais e eles conspiram para sua própria
humilhação. Ele apresenta os supostos crimes do comunismo como frutos de uma
deformação intelectual essencial. O ponto principal dele é: a lógica de
determinados pontos de vista foi fatal, uma vez que não considerou o indivíduo
e sua capacidade de julgamento independente. Assim, homens inteligentes podem
ser atropelados por grandes ideais. Koestler afirma, dando crédito aos
interrogadores como pessoas que agiam de boa fé:
O Partido promete
apenas uma coisa: após a vitória, no dia em que não puder causar mais nenhum
dano, o material dos arquivos secretos será publicado. Então o mundo saberá o
que havia nos bastidores deste programa de Punch & Judy,* * Tradicional
apresentação cômica de marionetes na Inglaterra, com comportamento violento e
anárquico. (N. da E.) como você o chamou, no qual tivemos de agir conforme os
livros didáticos de história [...]. E depois você, e alguns de seus amigos da
geração mais jovem, receberão a solidariedade e a compaixão que lhes negamos
hoje (KOESTLER, apud: JUDT, 2008, p. 32).
Em
termos históricos, os Processos de Moscou nunca tiveram seus arquivos abertos.
Alguma coisa vazou depois do fim da União Soviética, num curto período de
transparência sob Yeltsin, mas apenas isso. Não surgiram, no entanto, provas de
que sejam falsos, embora a intelectualidade ocidental presuma sua falsidade e
encenação. O historiador Tony Judt, pelo contrário, julga que Koestler é, do
ponto de vista de hoje em dia, muito moderado, fazendo muitas concessões aos
comunistas. Para Judt, Koestler agora é objeto histórico.
O
que se pode dizer, conforme Judt, é que o comunismo, para Koestler, era bem
mais interessante do que os demais regimes autoritários. Para esse historiador,
o gênio de Koestler não está em sua análise do comunismo e sim em seu brilho
como polemista contra os comunistas. Depois da II Guerra, Koestler participou
do chamado “Congresso para a Liberdade Cultural”, hoje tido como financiado
pela CIA para cooptar os intelectuais de centro-esquerda. Koestler, no entanto,
é bastante admirado por Judt por ser corajoso e dizer verdades impopulares.
Ele, em 1950, estava bastante obcecado com a luta contra o comunismo, era
intenso e previa táticas truculentas.
2
MERLEAU PONTY E KOESTLER
O filósofo Merleau-Ponty
escreveu, em 1947, um texto crítico a Zero e Infinito de Koestler: Humanismo e Terror. Para Merleau-Ponty,
ao contrário de Koestler, a questão não é escolher entre violência e pureza,
mas sim entre espécies de violência, ou seja, Merleau-Ponty aceita a hipótese
da violência revolucionária (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 121).
Merleau-Ponty considera
que O Zero e o Infinito é um texto
que faz uma crítica feroz ao governo de Stalin, que teria julgado e executado
seus executores políticos. Segundo Merleau Ponty, no romance de Koestler, a
estrutura social é tudo, a consciência não representa nada, não se podendo
falar em humanismo na sociedade comunista. O
Zero e o Infinito propõe, portanto, trocar o modelo comunista pelo
liberalismo político, pois somente o liberalismo implementaria o homem como um
ser infinito.
Merleau-Ponty pondera,
contra Koestler, que o liberalismo ocidental está assentado sobre os trabalhos
forçados das colônias e uma série de guerras com intuitos dominadores. A
questão não seria optar ou não pela violência e sim optar por uma violência
progressista.
Merleau-Ponty adota uma
posição curiosamente intermediária: ele nem acredita na versão oficial
soviética, dizendo que existia de fato uma conspiração na União Soviética, nem
na versão liberal apresentada por Koestler, que ignoraria que os Processos de
Moscou seriam revolucionários. Para Merleau-Ponty, o que faziam os acusados dos
Processos de Moscou seria atividade oposicionista de caráter político. Ele
refuta, todavia, o fato de que Bukharin, Radek e outros também tivessem
cometido crimes sérios como sabotagem, traição em relação a potências estrangeiras
e espionagem, assim com fizessem parte de uma conspiração política. Para Merleau-Ponty,
ao contrário de Koestler: “O marxismo não é nem negação da subjetividade e da
atividade humana [...] – ele é sobretudo uma teoria da subjetividade concreta”
(MERLEAU-PONTY, 1968, p. 51).
Para Merleau-Ponty, mesmo
o fato de que a União Soviética precisou erradicar a quinta-coluna para vencer
a guerra –e ele deixa de lado o fato de que mesmo assim existiu uma
quinta-coluna na URSS, com desertores como o general Vlassov –não é suficiente
para que Merleau-Ponty reconsidere os Processos de Moscou como sendo jurídicos
e não políticos. No entanto, ele avança ao considerar, pelo menos, que o
problema tem que ser colocado não em termos de humanismo abstrato, como o faz
Koestler, mas que o marxismo é uma teoria concreta da subjetividade. Para
Koestler, a história é feita de fatos justapostos e decisões individuais, o que
Merleau-Ponty rejeita.
Mesmo assim, Merleau-Ponty
se posiciona a favor da violência como uma das formas de conquistar uma
sociedade mais humana e dá o exemplo dos resistentes franceses ao nazismo. Ao
mesmo tempo, Merleau-Ponty critica o regime soviético por não assumir
claramente que estava fazendo um tribunal revolucionário ao impedir a oposição
e sim querer apresentar os condenados como criminosos comuns. Aqui ele se
equivoca. Os condenados de Moscou eram apresentados como participantes de uma
conspiração que, dentro da URSS, cometia sabotagens e atentados.
Mas mesmo essa posição
moderada é hoje em dia vista como extremada pela maioria dos intelectuais, para
quem se deve combater como totalitários tanto o nazismo quanto o comunismo, em
nome da liberdade.
Tony Judt já valoriza
Arthur Koestler nem tanto por seu valor literário, mas por seu papel na
demolição do mito soviético. A avaliação de Koestler de Judt é baseada nesse
feito. O texto é hoje considerado um dos clássicos do século. Paulo Francis
disse a respeito desse livro:
A personagem central,
Rubashov, tem a aparência física de Trotski e, mais ou menos, um prontuário de
combate como o dele, e o pensamento e modos de Bukhárin. O marxismo de Rubashov
é um tanto mecanicista, para dizer o mínimo (FRANCIS, apud:
BELÉM, 2013).
Para
Francis, Koestler teria sido sempre de esquerda, mesmo quando publicou textos
anticomunistas. Judt apresenta Koestler como um homem que trocou a esquerda
pelo anticomunismo, mas teria continuado como um intelectual independente. Para
o trotsquista Irving Howe, em posição semelhante à de Francis, o romance era
uma descrição aterradora e incontestável dos mecanismos da mente comunista. No
entanto, Howe, que é tido por Judt como “neotrotsquista”, não concordou
totalmente com a visão de Koestler a respeito do stalinismo enquanto fenômeno
social.
Rubashov
é apontado como um retrato fiel, historicamente, a Bukharin. Rubachov/Bukharin
teriam sido convencidos a confessar acusações inventadas contra ele para evitar
despertar simpatia e pena na população em geral. O despertar desses sentimentos
seria perigoso para a causa comunista. Segundo Euler de França Belém, Bukharin
teria confessado para salvar a vida de seu filho e sua jovem mulher, Anna
Larina.
Em
relação ao relato de Koestler, Judt pensa que ele é falso ao não registrar
cenas de tortura física por parte dos comunistas e diz “há provas abundantes de
que os regimes comunistas foram tão brutais e sanguinolentos quanto as outras
tiranias modernas”. Mas se Koestler quer denunciar o comunismo, por que não
denunciou isso? Para Judt, o romance não é sobre as vítimas do comunismo e sim
sobre os comunistas. A confissão de Rubashov é muito associada àquela realizada
pelo personagem Winston Smith de George Orwell. A seguir será tratada a forma
como Orwell tratou desse seu romance de Koestler, esse seu contemporâneo que
tinha muito a ver com ele.
3
ORWELL E KOESTLER
A posição de George Orwell
sobre o romance O Zero e o Infinito
de Koestler foi altamente favorável – e não poderia ser diferente: tinha em
comum com o que Orwell escrevia. Orwell, inclusive, dizia que ser preso na
Inglaterra era estar nas mãos de amadores (Koestler chegou a ser preso nesse
país durante a guerra, por ser estrangeiro, mas foi liberado rapidamente). Na
União Soviética, afirmou Orwell, ao ser preso, Koestler seria obrigado a várias
outras confissões falsas. Ao comentar os diálogos entre Ivanov e Rubachov,
Orwell diz que Gletkin era um jovem interrogador já crescido na União Soviética
e que acreditava que somente pensar em cometer um atentado contra Stálin já era
cometê-lo. Ele admite, então, indiretamente, que ao menos um atentado contra
Stálin deve ter sido pensado.
Note-se como a questão
progride: o senso comum de hoje em dia reproduz a ideia de que Stálin matou
seus “amigos” apenas para obter maior poder. Os autores que viveram o período
já dizem algo diferente: quem foi morto ou preso, na realidade, estava fazendo
oposição política. E Orwell, por exemplo, admite que esses opositores políticos
tenham pensado num atentado. Orwell explica, no entanto, que Gletkin, ao
contrário do primeiro interrogador, Ivanov, que era um velho bolchevique da
mesma idade que Rubachov (que aparentemente foi expurgado de repente também), é
uma mente totalmente forjada no totalitarismo e a única forma de crítica que
ele consegue imaginar é o assassinato. Para Orwell, os novos bolcheviques
seriam uma “nova raça de monstros”.
Para Orwell, O Zero e o Infinito oferece uma compreensão
interior de métodos totalitários e é o melhor registro desses Processos. Orwell
impacienta-se e registra que houve aceitação, no ocidente, dos processos de
Moscou, que foram processos abertos e que tiveram correspondentes ocidentais.
Para Orwell, foram casos encobertos com ansiedade por intelectuais ocidentais
na imprensa de esquerda. Para ele, era óbvio que os acusados tinham sido
torturados ou ameaçados de tortura, mas ele acredita que a explicação é mais
complexa. Koestler, como Boris Souvarine, pensa que os acusados dos Processos
de Moscou confessaram pelo bem do partido. O
Zero e o Infinito é, portanto, segundo Orwell, pouco mais do que um
pesadelo que acontece na União Soviética.
Orwell entusiasmou-se com
Koestler, afirmando que não existia literatura de desilusão antissoviética na
Inglaterra e que os debates sobre os Processos de Moscou tinham provocado
polêmica sobre a culpabilidade dos acusados. Os ingleses, então, estavam muito
envolvidos com panfletos e literatura política. Por isso, ele louva O Zero e o Infinito, que seria um tipo
de texto aparentado aos textos de Malraux e Souvarine. Seu tema é a decadência
das revoluções, numa perspectiva antistalinista que o levou a uma posição de
conservador pessimista. Koestler, afirma Orwell, não escapa da atmosfera de
pesadelo em outros textos que escreveu (Testamento
Espanhol, Os Gladiadores, A Escória da Terra, etc). Dos cinco
livros, a ação de três ocorre totalmente ou quase inteiramente na prisão.
Orwell acredita que o texto de Koestler sobre a Espanha era falso e marcado
pela ortodoxia da frente popular dos anos 30. Ele não teria escrito com
honestidade sobre a luta interna dentro do governo. Para Orwell, um esquerdista
tem de ser ao mesmo tempo antifascista e antissoviético (que para ele é
sinônimo de totalitário). Koestler chegou perto disso, mas colocou uma máscara
para fazê-lo, por não se sentir à vontade para tanto (ainda segundo Orwell).
Orwell reprova bastante o
livro Os Gladiadores, em que Koestler
ficcionaliza a rebelião de Spartacus na Roma Antiga, projetando esse personagem
histórico como a versão primitiva do ditador proletário. O tema principal de
Koestler é: revoluções sempre dão errado. Orwell julgou, pois, essa suposição
bastante irreal.
Na prisão, o personagem
Rubachov debate com um czarista e também com seu interrogador, Gletkin, que
considera que tem uma mente totalmente totalitária. A mente de Rubachov seria,
então, uma mente burguesa.
O Zero e o Infinito, é, portanto, um
livro político, que oferece uma posição dos eventos em questão. Como, nos
Processos de Moscou, as confissões foram publicadas na imprensa e foram
altamente convincentes, Koestler respondeu que elas eram falsas, mas mesmo
assim produzidas por raciocínios e diálogos sofisticados. Orwell comenta que a
resposta de Koestler é muito próxima de imaginar que toda revolução é má por
natureza. Para ele, Lenin leva a Stalin e todas as formas de regenerar a
sociedade por meio da revolução levam aos porões da polícia política soviética.
Orwell comenta que Koestler abandonou o comunismo, mas não aderiu ao
trotsquismo. Ele busca, por outro lado, mostrar que crenças revolucionárias são
racionalizações dos impulsos neuróticos. Em outro de seus livros, Partida e Chegada, o impulso
revolucionário do protagonista é psicanalisado como tendo se originado no gesto
infantil de cegar o irmão bebê. O jovem nazista no livro de Koestler faz a
observação de que algo está errado no movimento socialista devido à feiúra de
suas mulheres. Isso é muito grosseira até para Orwell, que argumenta contra, afirmando
que nada isso não invalida as críticas de Marx e dos socialistas em geral.
Koestler
demonstra, segundo Orwell, uma tendência ao hedonismo em seus escritos,
principalmente depois de romper com os comunistas. Ele pensa que as revoluções
sempre levam aos expurgos. Busca, então, manter-se fora da política, cultivando
o hedonismo. Até mesmo Orwell não pode aceitar que todas as revoluções sejam
parte da mesma falha, ainda que ele também aceite que todas as revoluções
falham.
CONCLUSÃO
Esse
artigo buscou debater o romance O Zero e
o Infinito no contexto da atualidade. O ponto de partida foi Reflexões Sobre Um Século Esquecido, de
Tony Judt. O historiador revisita Koestler apenas para reforçar o ponto de
vista já presente na obra. Pode-se dizer, no entanto, que a narrativa histórica
que embasa o texto de Koestler tem de ser analisada sob um outro prisma, uma
vez que existem pesquisas recentes, como a do professor Grover Furr, que
mostram que a narrativa histórica não foi bem como Koestler aproveitou para
basear o romance. Ou que, pelo menos, há controvérsias.
Existe a hipótese de que
os Processos de Moscou foram justos. Essa hipótese é uma interessante
possibilidade de leitura de O Zero e o
Infinito que, embora não os considere justos, não os iguala aos fascistas,
talvez pela grande influência do partido comunista em sua época. Os comunistas
não teriam usado tortura e sim convencido suas vítimas a confessar em nome do
partido, essa é a explicação à qual Koestler se apegou quando escreveu o texto,
em 1940. Koestler foi bastante criticado por Merleau-Ponty em 1947: o filósofo
julgou que seu texto colocava as questões políticas em termos falsos e
abstratos: entre ser violento ou não-violento. Para ele, o dilema é escolher
entre diferentes tipos de violência, mas estamos condenados a ela.
Merleau-Ponty, que tinha vivido a experiência da resistência francesa, apoiou a
violência revolucionária e criticou o colonialismo dos liberais. Por fim,
Orwell também criticou as generalizações que fez Koestler, supondo que toda
revolução fracassa e aderindo ao conservadorismo pessimista. Por fim, pode-se
dizer que Koestler fez um romance sobre comunistas, não sobre os Processos de
Moscou.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BELÉM,
Euler de França. O escritor que revelou
como o comunismo entorpece a mente de seus militantes. Disponível em: . Acesso em 02 de abril de 2013.
FURR.
Grover. Evidências da Colaboração de
Trotsky com a Alemanha e o Japão. Disponível em:
. Acesso em 13 de março de 2013.
_______________.
Dobrov, Vladimir: Uma evidência mais
da culpa de Bukharin. Disponível em: .
Acesso em 13 de março de 2013.
JUDT,
Tony. Arthur Koestler, o intelectual exemplar. IN: Século XX, o século esquecido –Lugares e Memórias. São Paulo: Edições
70, 2008.
MERLEAU-PONTY.
Humanismo e Terror: ensaio sobre o
problema comunista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.
ORWELL,
George. Por que estou lutando. Disponível
em: . Acesso em 02 de abril de 2013.
Um comentário:
Parabéns, Lúcio. Foi o melhor texto seu que já li. Muita informação a ser deglutida. Voltarei a ele mais vezes.
Abraço de seu antagonista de plantão.
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