Fina Prosa Crítica: O Paulo Lins
de Hoje é o Tito Batini de Amanhã?
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Li atentamente,
no número de dezembro de 2006 da Revista piauí,
o ensaio de Roberto Schwarz a respeito do livro de Gilda Mello e Souza. Reconheço
que Schwarz é um grande crítico literário.
Para
comentar um artigo sobre um livro que, por sua vez, trata de outros filmes e
livros, fica-se numa situação complicada, afastado das fontes primárias. Meu
ponto não é nem se o comentário chegou a ser humilhante de tão bom. O fato que
me chamou a atenção foi o comentário sobre Exercícios
de Leitura, exercícios esses que diminuem determinados filmes do Cinema
Novo, ainda que a intenção não seja essa, explicitamente. Até esse momento do
artigo, eu estava gostando, pois não vejo problema que alguém trate de moda sem
falar em nada que esteja em moda na atualidade.
Não
concordo que no mesmo artigo fale-se mal de O
Desafio e se elogie Terra em Transe.
Existem amplas
relações de continuidade entre os dois filmes e que aparentemente não foram
estabelecidas por Gilda Mello e Souza em 1981.
Vendo ambos os
filmes, pode-se notar que o personagem de Paulo Martins de Terra em Transe está intimamente ligado ao Marcelo, o personagem de
Vianinha em O Desafio. Um continua
o outro, num contexto diferente; no quarto de Marcelo, em O
Desafio, aparece um cartaz do filme de Glauber Deus e o Diabo na Terra do Sol. Paulo é Marcelo radicalizado dois anos depois,
compreendendo um pouco melhor os acontecimentos que para Marcelo ainda eram
incompreensíveis, pois, de dentro da fossa aberta em 1964, Marcelo ainda via
tudo escuro. Pode-se dizer que ambos permaneceram ainda muito ligados ao mundo
burguês que verbalmente ambicionam destruir. Paulo Martins sofre e agoniza,
atormentado pela figura de Porfírio Diaz, o traiçoeiro líder político que acaba
de dar o golpe em Eldorado, e não pelo fraco Vieira, incapaz de decisões nos
momentos oportunos, e destinado, portanto, à lata de lixo da História. Isso num
momento em que o presidente Lula, um misto do operário Jerônimo e do pragmático
Vieira, proclama a quatro ventos estar aguardando o julgamento da História.
Mas
deixemos a política de hoje em dia e voltemos para a fina prosa crítica: Gilda
trabalha com a premissa de que em Terra
em Transe não há esse mesmo dilaceramento que em O
Desafio, por achá-lo melhor resolvido ao descrever o
episódio do comício com uma visão grotesca e contraditória do povo. Ela
encontra para essas imagens nobres tradições pictóricas, enquanto em O
Desafio o diálogo seria excessivo, e o conflito, uma
falha ruim e inconsciente. No entanto, o conflito entre o que é dito e o que é
mostrado é tanto consciente quanto tematizado, em ambos os filmes. Ela deixa de
lado, em Terra em Transe, os bailes
no palácio de Diaz, quando, na sala com Danuza e o Peri da ópera, entre taças
quebradas e síncopes de jazz, Paulo
Martins velejava os chamados mares do não.
Saraceni
respondeu a várias dessas críticas a seu filme em Por
Dentro do Cinema
Novo, Minha Viagem, uma autobiografia datada de 1993. Por exemplo: “Pode-se
objetar, talvez, que a dialogação é excessiva, e que nem sempre as falas são
válidas como falas cinematográficas; mas, apesar disso, não há no filme uma só
frase que não tenha validade como idéia, como captação de um momento histórico
recente, como comportamento das personagens em relação a seu meio e a sua
classe” (p.198). “Aos que acusam o filme de superfalado, poderíamos retrucar
acusando-o, também, de supersilencioso. Se o filme tem, praticamente, dois
personagens e seu tema é o desentendimento entre um homem e uma mulher, em
função de uma circunstância política, o diálogo é a expressão necessária desse
desentendimento (...). A conversa é descontínua e o silêncio, além de imantar
impressionisticamente a ambiência, do conteúdo das falas, funciona ao mesmo
tempo como elemento de contraste e de ênfase dos diálogos” (p. 207). Não se
pode dizer também que exista dubiedade político-ideológica nesse filme: dentro
dele há um close de Maria Betânia
falando das estatísticas dos nordestinos que fugiam da fome e da seca para o
Sul do país, no espetáculo Opinião; no
final, o personagem recusa relacionar-se com o escritor cínico e sua mulher, e
o filme se encerra ao som de uma letra de Gianfrancesco Guarnieri em parceria
com Bertold Brecht, musicada por Edu Lobo, na peça Arena Conta Zumbi. Que não seja reeditada uma crítica a O Desafio sem levar em conta essas
respostas, portanto.
Para encerrar
esse comentário a respeito de Fina Prosa
Crítica falando sobre algo em moda na atualidade, lembro o último grande
feito de Roberto Schwarz: ele indicou para a publicação, pela Companhia das
Letras, o romance Cidade de Deus, do
ex-favelado Paulo Lins, um romance violento, com pouco humor e longo;
tratava-se, no mais, de um romancista iniciante, embora já acadêmico experiente
na área de Ciências Sociais. A indicação foi claramente decisiva para sua
publicação.
O
romance mostrou-se um grande sucesso, vindo a tornar-se um filme igualmente bem
sucedido em termos de público e crítica, o que é raro no país; ainda chegou a
concorrer como melhor filme estrangeiro em Hollywood,
tendo perdido a competição, mas ganhou uma boa possibilidade de divulgação em
termos mundiais. Creio que dificilmente algum outro crítico brasileiro alcançou
tão alto triunfo, tão grandes conseqüências em uma aposta alta como essa.
Faço,
então, uma associação lembrando um “caso” literário: Antonio Candido, mestre de
Schwarz, também indicou pelo menos um autor bem sucedido no passado: Tito
Batini. Tratava-se do livro de alguém de origem humilde, um “ferroviário que
queria escrever”, como dele disse Oswald. Oswald de Andrade desentendeu-se com
Batini, julgando sua obra ainda imatura, e Candido acusou Oswald de criticar
sem analisar. No entanto, seu tempo o contrariou: Batini ganhou inúmeras
críticas favoráveis, foi traduzido e incensado, como registrou Oswald em Ponta de Lança: “O seu volume foi
apadrinhado pelo guerrilheiro Rubem Braga, premiado por Diretrizes, traduzido
pelo sr. Putnam...Se houvesse prêmio Nobel, ele não escapava!”
A propósito do
tipo de iniciativa crítica que Candido fez no passado, e que Schwarz realiza
hoje em dia, deixo a pergunta: quem lê, hoje, Tito Batini? Quem sabe quem foi
ele? Por que Candido e Schwarz, que são vivos e ainda produzem, não escrevem
ensaios sobre essa figura? Será esse o destino de Paulo Lins?
Bom, por
enquanto não acho importante alongar mais essa carta. Entre a esperança e a
ânsia, aguardarei que estejamos comentando avidamente Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, lá pelo ano de 2045, assim
como estamos discutindo O Desafio
quarenta e dois anos depois de seu lançamento.
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