Um
diálogo com o artigo “A Política de sangue nos olhos só favorece o outro
lado”
Por
Bruno Carazza
Depois de mais de um ano na
prisão, Lula veio a público com sangue nos olhos e rancor no coração. Em quase
duas horas de entrevista à Folha e ao El País, o ex-presidente
destilou toda a raiva curtida na solidão da cela. Em cada resposta está
presente seu inconformismo com a Operação Lava Jato e com o processo que o
condenou em três instâncias e o impossibilitou de disputar as últimas eleições.
Também está lá uma visão de esquerda e de oposição ao governo Bolsonaro que em
nada contribui para sairmos do estado em que nos encontramos.
Bruno:
Eu sei que te incomoda ele não ser aquele Lulinha Paz e Amor, mas afinal, você
há de convir que estão sacaneando com ele, transformando um malandro num
Mandela. A visão de esquerda que contribui para que possamos sair do estado em
que estado não foi explicitada por você. É porque talvez você não se lembre do
que Bolsonaro disse na Paulista, na campanha e como deputado a respeito da
esquerda. Vou refrescar sua memória. Ele falava em minorias que devem se
rebaixar para minorias, uma nova guerra civil contra a esquerda, com extermínio
físico de 30 000 pessoas ligadas à esquerda. Diante do sangue nos olhos de
Bolsonaro, Lula na cadeia deveria chegar oferecendo flores, posando de Lulinha
Paz e amor? Ressaltando o que há de bom na proposta da reforma da previdência?
Bah!
Mais uma vez não houve
autocrítica. Desde o Mensalão, passando pelas revelações da Lava Jato, do
impeachment e da derrota nas eleições de 2018, nunca Lula ou o PT esboçaram
qualquer intenção de reconhecer que a corrupção fez parte da sua estratégia de
governo, degenerando o presidencialismo brasileiro, de coalizão para cooptação.
Ao contrário, Lula tergiversou quando perguntado sobre o relacionamento com as
empreiteiras, os empréstimos do BNDES, a Venezuela.
Não
o vi tergiversando e sim respondendo que é favorável ao empréstimo de dinheiro
para países que ainda estavam em processo de desenvolvimento.
Em
vez de reconhecer os erros, Lula se concentrou em enaltecer o passado,
valendo-se muitas vezes de fatos distorcidos e malabarismo estatístico. E bem
ao estilo populista de esquerda, aponto para os inimigos de sempre: a Lava Jato
(Moro e Dallagnol à frente), a Globo, os bancos e os Estados Unidos.
Você
esperou que ele fizesse autocrítica, mas ele está ali diante de um processo
político que o está destruindo. Nem sempre ele apontou esses como inimigos.
José Dirceu chegou a dizer que não era preciso construir comunicação
alternativa, pois poderiam utilizar a Globo. Lula foi ao funeral de Roberto
Marinho e elogiou a Globo, assim como foi aliado de Obama. E outra: não é
populismo de esquerda ele apontar que esses agora são de fato seus inimigos.
Agora, no atual momento, é mera constatação. Ao longo de sua trajetória não foi
verdade.
Sua receita para a grave situação
fiscal em que o país se encontra é simplista: “Você quer diminuir a dívida
pública no Brasil? Aumenta o crescimento econômico, o PIB, produz mais pão,
mais feijão, mais carro, mais carne que você aumenta o PIB e cai a dívida pública”.
Em relação à proposta de reforma da Previdência de Paulo Guedes, a ordem do
chefe, óbvio, é resistir, orientando inclusive o uso das mesmas ferramentas e
estratégias de Bolsonaro na guerra digital.
Bruno:
É simplista, mas é mais realista do que implantar o arrocho e cortar trinta por
cento dos orçamentos das federais, assim como cortar educação básica, pois
assim Bolsonaro está destruindo o país. Você entendeu, de verdade, que Lula está sugerindo a prática de
fake news por parte do PT, assim como o uso de calúnias moralistas como
inventar um kit gay que não existe? Não ouvi isso na entrevista.
Lula na sua primeira entrevista
após a prisão. Foto: Ricardo Stuckert.
A insistência em negar as
evidências do passado recente e a ausência de uma postura propositiva em
relação ao futuro, presentes no discurso de Lula, já custaram ao PT a eleição
de 2018 e pode significar um longo ciclo de decadência da esquerda brasileira.
Você
acabou de dizer que a postura propositiva do PT é simplista, ou seja, você
acaba de recusá-la. Creio que você espera algo ali de onde não pode sair. Não
se está no lugar de um julgamento isento, de um debate aberto. Lula está
falando graças a uma brecha judicial duramente conquistada. E note que a
entrevista foi ignorada na rede Globo. Há que se debater se o PT não é ele
mesmo fruto desse “longo ciclo de decadência da esquerda brasileira”. Ou se não
ele é mesmo parte dessa decadência, pois seguiu a macroecononomia de FHC, que
era de direita neoliberal. Ou estou equivocado?
Na votação da PEC da previdência na CCJ na semana passada foi
exatamente isso o que se viu. Apesar do justo protesto contra a resistência do
governo em apresentar os dados e as simulações que embasaram sua proposta, os
principais partidos de oposição (PT, PSOL, PC do B, REDE, PSB, PDT e PROS)
deixaram claro que cerrarão fileiras contra o projeto de Guedes e Bolsonaro.
Essa
postura de “ser contra por ser do contra” é incoerente com os programas desses mesmos partidos durante a campanha
eleitoral.
Igualmente,
não sei se foi tocado o tema da reforma da previdência durante a campanha
eleitoral de Bolsonaro. Mas se esses partidos são contra, há realmente boas
razões para ser contra: é uma reforma que busca tirar direitos de trabalhadores
e pobres, que basicamente nega que a previdência é superavitária, uma reforma
que no fundo é voltada para banqueiros e não é “a salvação do Brasil” como você
talvez acredite, com certeza só com bons sentimentos no coração. Há boas razões
para ser contra. Quem está sendo contra, está sendo contra com bons motivos.
O PDT de Ciro Gomes e a REDE
de Marina Silva apresentaram propostas de reforma da previdência que continham
uma migração para um regime misto que combine elementos de repartição e
capitalização, elevação da idade mínima para se aposentar e a eliminação dos
privilégios dos servidores públicos – elementos centrais do projeto encaminhado
pelo governo.
Guilherme
Boulos, do PSOL, apesar de ser contrário à capitalização, defendeu a unificação
dos regimes do setor público com o INSS e o estabelecimento de alíquotas
progressivas de acordo com a renda do cidadão. Já Fernando Haddad (PT) prometeu
“combater, na ponta dos gastos, privilégios previdenciários incompatíveis com a
realidade da classe trabalhadora brasileira”.
Seria
de se esperar, portanto, que os partidos de oposição, com o PT à frente,
deveriam ser a favor de medidas presentes na proposta do governo que claramente
são voltadas para a redução das desigualdades econômicas provocadas pelo regime
previdenciário atual – como a elevação de alíquotas para a elite do
funcionalismo público ou a extinção da aposentadoria por contribuição e o
aumento da idade mínima, institutos que na prática beneficiam os estratos mais
ricos da pirâmide social. Mas não é isto o que aconteceu na CCJ e nem tampouco
o que veremos na comissão especial e no plenário.
Bruno:
aí é que te pergunto: qual é a elite do funcionalismo público que será afetada
por essas medidas? São os juízes? São os generais? O que vi e li até agora são
propostas realmente perversas, como aumento da idade mínima para professores.
Ou talvez você considere que professores são parte da elite do funcionalismo
público.
Os
líderes da esquerda brasileira deveriam estudar mais e refletir se essa estratégia é a melhro estratégia. A eleição de
Donald Trump nos EUA tem levado a uma safra de estudos com boas autocríticas
sobre os erros da esquerda progressista americana. Em “O Progressista de Ontem
e o de Amanhã”, Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, defende que a
pior postura da oposição diante deste novo populismo de direita seria a
resistência. Extrapolando sua visão para o caso brasileiro, contestar cada
movimento de Bolsonaro, como seus adversários vêm fazendo, seria cair na sua
armadilha, pois esses populistas alimentam-se do embate verbal (ou digital). A
oposição precisa organizar-se institucionalmente para construir uma agenda
propositiva para colocar os interesses dos cidadãos à frente da disputa
política.
Bolsonaro era contra a reforma
da previdência no passado, assim como demonstra má vontade com ela, dizendo que
está nas mãos do congresso. Disso você não lembra, né.
Essa
é a mesma visão de Yascha Mounk, professor alemão da Universidade Johns
Hopkins, cujo “O Povo contra a Democracia” acaba de chegar nas livrarias. No
prefácio escrito especialmente para a edição brasileira, Mounk argumenta que os
oponentes dos populistas acabam se perdendo ao se concentrar nas falhas
pessoais e políticas de governantes como Trump, Maduro ou Bolsonaro, em vez de
construir um leque de propostas construtivas para a população. “Os
defensores da democracia liberal precisam provar para seus concidadãos não só
que Bolsonaro é ruim para a nação, como também que eles podem fazer um trabalho
melhor”.
Mas Bruno, eles fizeram um
trabalho melhor. O governo Lula foi melhor do que o governo FHC, manteve a
macroeconomia neoliberal e aplicou alguns ajustes sociais. Ao mesmo tempo, Bolsonaro
praticamente destruiu o programa Mais Médicos ao expulsar os médicos cubanos,
sem conseguir substituí-los de forma eficaz. Bolsonaro está colocando décimo
terceiro para o bolsa família. Mas a tônica do bolsonarismo foi dizer que bolsa
família era coisa de vagabundo, etc.
Continuar bradando contra a
reforma da Previdência não resolverá a grave situação em que nos encontramos,
assim como não contribuirá para reduzir o fosso que separa ricos e miseráveis
no país. Se ela é realmente a favor de um país menos desigual, a oposição precisa
assumir a responsabilidade de apoiar as boas propostas e colocar na mesa
alternativas para aprimorar o que não é bom, ao contrário de ser simplesmente
do contra.
Ao
contrário do que orienta Lula, a polarização joga a favor dos seus inimigos.
No
entanto, Bruno, a reforma da previdência postar por Guedes e Bolsonaro
efetivamente aumentará o fosso entre ricos e pobres. Se acha que não, deve
voltar a estudar. O que ela possa ter de bom é suplantado em muito pelo que ela
traz de ruim, de regressivo, de perverso, como a diminuição da aposentadoria
rural, como o aumento da idade mínima para professores. Então, bradar contra
ela é fazer algo pelos pobres e trabalhadores. Ao contrário do que aparenta,
seu artigo não quer orientar Lula, nem ajudar ou a esquerda. Você se opõe
sistematicamente aos dois. Você está numa posição à direita de Bolsonaro, pois
nem ele acredita que ela é boa, tanto que ele afirmou que ela “está nas mãos do
congresso”. Se fosse boa, com certeza diria: “está nas minhas mãos construir um
Brasil melhor”.