domingo, 9 de maio de 2021

Ao Vendedor, as Batatas

 Ao Vendedor, As Batatas


Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior



O livro de contos O Vendedor de Batatas de Dênis Reis (Ed. Do Autor, 2008) é muito bem arquitetado: inicia-se com o “rap para o meu avô negro, por ocasião do primeiro dia de inverno” e finaliza-se com uma “elegia para meu avô branco, por ocasião do último verão”. São os textos mais poéticos do livro. São narrativas cuidadosamente buriladas de forma a compor um todo harmonioso. São dois atos e no final o tema do início é retomado. Reis têm uma forte influência da música e suponho que ela inspira sua composição, tanto que ele cita positivamente Mozart: suas citações em geral são negativas. Ele parte de um tema, desenvolve-o e vai se distanciando dele quase imperceptivelmente.

Uma das obsessões de Reis é a estupidez da pequena burguesia, que ele persegue implacavelmente, embora se veja também obrigado a transigir, envolvido nela. Talvez isso seja o que mais o desespera. Mas talvez não haja desespero algum e o humor e o desespero sejam só jogo de cena filosófica de mesa de bar. A imbecilidade ele persegue com um ódio sem quartel, enxergando-a até numa lagartixa atrás da pia e fechando uma careta para o mundo, sem aceitá-lo com ele é. Mas às vezes a revolta é tamanha que parece tudo refluir para a poltrona da casa, para a fobia social.

Os contos são todos como um roteiro de como combater a imbecilidade com fúria, precisão e estética, digamos assim. E nisso Reis é bem sucedido. Ele encontra a mediocridade de classe média na vida do casal (História de um marido pobre), nos papos de botequim (Os Mosqueteiros do Amendoim), na vida militar (Eu mesmo) e em um dos alvos que ele mais goza ao encontrá-la: a universidade e seus seminários de dança das pulgas (Onde está Wally?). Aliás, os intelectuais são os grandes criticados nesses contos, é a categoria que, como um todo, sai mais atacada. Reis odeia profundamente sua empáfia, suas patotas, suas teses com nomes enfeitados e “des-leituras” de romancistas amazônicos, por exemplo. A libido, em O Vendedor, não é nada grafocrática.

O universo da rua, do botequim, da zona boêmia, embora criticado em O Vendedor...ainda é poupado em relação ao desprezo caricatural com que é tratado o ambiente universitário, assim como é detonado o mundo resplandecente de Marília Gabriela e Jô Soares, ou seja, o universo das celebridades, da moda e do consumo. Mas nada o apraz tanto quanto encontrar a imbecilidade nos supostamente inteligentes:



Um mestrando queria saber se devia comprar ações da Telemar. Com medo de perder a reprise do programa da Marília Gabriela, respondi que sim. ´Deve sim, ora essa´. Só porque está enrascado com uma tese sobre a teoria do valor, o idiota pensa que vai ficar rico como David Ricardo. Vai acabar mais pobre que Marx. Que mestrando imbecil! (REIS, 2008, p. 81).



Essa busca, nesse momento acima, gozou em encontrar seu objeto: a intelligentsia provinciana, os chamados “heróis póstumos da paróquia”. Do ponto de vista de Reis, o “luso-tropicalismo” deve ser violentamente atacado e derrotado, para o bem da comunidade negra. O ponto de vista dele, supõe-se, é o da senzala com caneta de raio laser:



Nós, não. O nosso conservadorismo não existe. É só o jeito de quem levou muita lambada na cacunda. Minas Gerais é uma ética. A desgraça do Brasil foi o conde Maurício de Nassau ter voltado para a Holanda. Gilberto Freyre derrotou Maurício de Nassau na batalha de Guararapes. E o Brasil virou uma merda (REIS, 2008).



O texto por vezes é muito engraçado, mostrando uma realidade singular de maneira debochada. O narrador é um observador ora polido, ora de franqueza rude, ora ambicioso, ora seco e desenganado, ora desesperado, ora romântico que cita canções de amor sobre índias de sangue tupi e favos de mel de jati. Sua revolta permanente o faz desancar meio mundo. Ele o faz através até do avô, que segundo ele:



Mandou bala nos paulistas em 1932. Devíamos ter destroçado com a terra nostra em 1932, como fizemos com o Paraguai no século XIX. Ah! As moderações! Minas Gerais é uma ética. E junto com os muitos outros, em cima de um caminhão, atravessou, ocupante, a cidade de Ribeirão Preto. A Semana de Arte Moderna de 22 atrasou a literatura brasileira por 30 anos. Alguém tinha de dizer isso. Dixit ET animam levavi! Sacanearam o Lima Barreto, o único escritor brasileiro honesto. Malditos paulistas, bando de barões bundões. Na Faculdade de Letras – sempre-clássicas não se diz tal coisa. Minas Gerais é uma ética (REIS, 2001, p. 184).



No entanto, existem teóricos da área de Letras, tal como Luís Bueno, que advogam isso: os modernistas teriam rompido com uma tradição literária nacional. O livro de Reis atacou mais vezes a intelectualidade paulista, em quem verifica muito apego a famílias ricas, comunismo e estalinismo equivocados e de salão, em geral brilhareco falso e superficial, Gianotti explicando Wittgenstein para o Jô Soares. Pontuemos, no entanto: o maior ataque ao luso-tropicalismo até hoje partiu de Roger Bastide (e de São Paulo): a pesquisa A integração do negro na sociedade de classes. Roberto Drummond, segundo ele, lhe dá azia – sinônimo de desgosto e raiva, mas é forçoso dizer que esse livro se aproxima, através das frases curtas, afirmativas e ritmadas, do estilo de Roberto Drummond no início da carreira, em especial do livro de contos A Morte de D. J. em Paris. De tanto tentar superar a Paidéia da província e sua sufocante atmosfera, Reis aproximou-se de Drummond, do Roberto, com a diferença que o que lhe parece sufocante para Roberto Drummond era alegre e saltitante. Reis está mais para Lima Barreto do que para Kafka, mais para Bom Despacho do que para metafísica checa.

O livro tem a ressonância machadiana logo em seu título. Em comum com Machado, ele possui o estilo afiado e a ironia que por vezes se tinge de sarcasmo. Há quem veja também ligações com Kafka e Walter Campos de Carvalho. Prefiro falar em Murilo Rubião e os personagens psicóticos de Campos de Carvalho também não se fazem presentes nesses contos. Denis experimenta livremente com os contos, afastando-os das crônicas de jornal, por exemplo. Eles citam livremente literatura, filosofia, programas de televisão e até receitas culinárias. Ele me divertiu especialmente quando fez o balanço do universo belo-horizontino, universo que oscila entre o desejo da mudança e as ponderações do conservadorismo, entre a transcendência da filosofia e o sonho de uma revolução que não seja só um levante militar e a dureza da vida cotidiana, da pobreza, da falta de dinheiro, da mesquinhez do trabalho e da dura realidade de uma grande metrópole. Denis quando ele fez prosa poética, como no primeiro e no último conto.

Seu acerto de contas com o conformismo é sutil, mas para quem tem sensibilidade e sabe ler as entrelinhas poderá sentir a imensa violência poética que existe em textos como História de um Marido Pobre e Eu Mesmo. E são contos indigestos, que irritam, provocam, inquietam. Existe humor, mas ele incomoda, pois é polidez do desespero e esse desespero é tangível. O objetivo do autor, suponho, é esse.

Denis fez do livro um objeto cuidadosamente estruturado, com contos que repetem temáticas ou até mesmo algumas palavras-fetiche, como “açúcar” e “obesidade”, símbolo, para ele, da solidão e da morbidez, senão do intolerável da pobreza, da aposentadoria e da alienação. É uma ótima estréia de Denis como contista.

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