Feto
de Gerald Thomas: Nelson Rodrigues Jumps The Gun!
Lúcio
Emílio do Espírito Santo Júnior
Resumo
Esse ensaio busca investigar a adaptação
realizada por Gerald Thomas da peça Doroteia de Nelson Rodrigues. Gerald
fez uma releitura onde sobressai o seu estilo, mais do que o de Nelson. Doroteia,
mais do objeto de uma montagem, é “montada” por uma personagem travesti,
Doroteia é um homem trans. A encenação de Gerald Thomas, altamente autoral,
retoma apenas fiapos narrativos do texto e atêm-se ao entorno. Gerald faz de Doroteia
uma obra em progresso. O que é detalhe no texto de Nelson, como o leque, é um
signo hipertrofiado e hiperbólico no “ensaio” de Gerald. Gerald toma Duchamp e
o ready made com um caminho para tornar ampliar e tornar hiperbólicas as
tendências vanguardistas contidas nesse texto de Nelson Rodrigues.
Palavra-chave: Doroteia, vanguarda,
Nelson, teatro, Gerald Thomas
1.Introdução
“Nelson Rodrigues é só pornográfico.
Dias Gomes é pornográfico e subversivo” Carlos
Lacerda
No ano que passou de 2022, autor e
encenador Gerald Thomas conseguiu realizar o sonho de adaptar Nelson Rodrigues,
obtendo o direito de adaptar a peça Doroteia. Gerald intitulou-a Estudos
de Doroteia Subindo a Escada, inspirado no Nu Descendo a Escada,
de Duchamp. O título reforça a ideia de que Doroteia é uma obra que
apresenta-se como obra que pretende mostrar suas próprias engrenagens enquanto
é exibida.
Curiosamente, o clima presente nas
obras de Thomas, do mundo depois da catástrofe, tornou-se incrivelmente
rotineiro nesse Brasil de 2023. Após três anos em que as pestes bíblicas
parecem ter vindo ao mesmo tempo e não uma de cada vez, com a peste do
fascismo, pandemia de coronavírus e crise econômica mundial vieram conjugadas.
Somaram-se a isso episódios como a queima do pantanal, genocídio e devastação
na Amazônia, desastres ambientais ligados ao petróleo e a rejeitos de
mineração. Como se tudo fosse pouco, houve a repetição colonizada da invasão do
Capitólio por militantes de extrema-direita, causando quase uma guerra civil
entre PM e exército, bem como milhões de prejuízo ao patrimônio público.
A peça mostrou a volta de uma mulher
que não respeitava a moral patriarcal (Doroteia) para junto de sua família, que
a considera morta para elas, morta para essa moral. As irmãs a punem por sua
beleza e por sua rebeldia contra as
regras sociais que elas seguem. Um dos traumas que ela traz é a perda de um
filho nascido pré-maturo, “um feto”, morte essa que a persegue.
Muitos anos atrás, ao tempo de Flash
and Crash Days, o crítico de teatro norte-americano David George já tinha
observado a relação existente entre a peça com a mãe e a filha e as peças de
Nelson Rodrigues. E tinha sugerido a Gerald adaptar uma peça de Nelson ao seu
estilo, sem palavras, numa “antropofagia wagneriana”. Gerald, no entanto, não
obteve, nos anos 90, direitos sobre Doroteia e, agora, ao obtê-los,
adaptou a peça com ajuda do mesmo David George.
2. Dissecar o Embrião de uma Peça: Chega de
Beckett?
Para
Fernando Peixoto, em Teatro em Movimento, quem sabe Vestido de Noiva foi
a ascensão da burguesia no teatro brasileiro, entendendo-se “burguesia” no
sentido de negação de valores nacionais-populares que outras peças vinham
desenvolvendo, dando, daí por diante, no ecletismo burguês do TBC. Ora, se
Vestido de Noiva foi a ascensão, o teatro de Gerald Thomas é sua apoteose. A
partir dos anos 90, o teatro de Gerald Thomas não é mais o ponto de chegada do
teatro brasileiro, mas sim passa a ser ponto de partida, algo a ser revisto e
superado. Nota-se, por exemplo, o claro diálogo com sua estética, num
aproveitamento narrativo, na peça O Vampiro de Curitiba, de Felipe Hirsch. O
encenador curitibano inspira-se no teatro de Gerald Thomas e no teatro dos anos
80 e 90 em geral, buscando ser a sua superação histórico-concreta. Hirsch
retoma a narrativa de Dalton Trevisan e coloca a estética dark
pós-moderna a serviço dela, abandonando a fragmentação esquizofrênica.
Caetano
Veloso contou que, no exílio, escutava a canção Hapiness is a Warm Gun,
dos Beatles, da seguinte forma: Nelson Rodrigues jumps the gun. Podemos
dizer que Gerald faz um processo semelhante, é como a lagosta alucinatória da
qual Nelson Rodrigues fala.
Na peça, segundo Ana Gaebler, "não havia necessariamente esse lugar do personagem rodriguiano, mas se fizermos essa analogia, o Rodrigo era Doroteia, Fabi a Dona Flávia, eu era Dona Maura, Carmelita era Raul, das Dores é Lisa, Dona Assunta é Beatrice".
O
teatro de Gerald Thomas, mais do que nunca, em Feto, introduz o tema da
Segunda Guerra Mundial, intertexto ausente no texto do autor carioca, mas de
fato necessário: é importante contextualizar historicamente, bem como
introduzir temas sociais e políticos a essa dramaturgia, pois disso ela é
carente. A imagem do Feto é tirada de um quadro de Iberê Camargo,
continuando o diálogo do diretor com as artes plásticas. Ele traz a pintura
para o palco, ele que é também pintor. Ainda segundo Gabriela Mellão:
Em F.E.T.O., além do
quadro Nu descendo a escada no nome, Duchamp está presente com uma
reprodução ampliada de Roda de bicicleta e alusões a O grande vidro,
sua última pintura. O universo de sentidos deslizantes do dadaísmo combina-se
com uma paisagem onírica, acentuada pela dança aérea de Lisa Giobbi. Bonecos
com a forma de um feto saído do quadro No tempo e na terra I, de
Iberê Camargo, fazem parte dos objetos de cena (MELLÃO, 2022).
Gerald Thomas traz o tema do feto e
de um Brasil que parece ainda não ter nascido numa conjuntura histórica em que
o Brasil pautou o tema do aborto, em campanha eleitoral, da pior maneira
possível, ou seja, o pânico moral. E pior: possivelmente, a extrema-direita
brasileira está imitando os extremistas norte-americanos, cuja agenda
conservadora avança, mesmo sem Trump, ao conseguir ilegalizar o aborto em
alguns estados norte-americanos.
De fato, Gerald Thomas fez uma
adaptação que vai além de uma mera distorção de Nelson Rodrigues, é bem uma
sobreposição por parte do autor/encenador. Tanto Nelson Rodrigues como Gerald
Thomas utilizam a voz em off. No texto Teatro Desagradável,
Nelson Rodrigues comentou o choque que causou, em Mulher Sem Pecado, a
ousadia vanguardista de colocar uma atriz que não utilizava palavras em cena,
bem como apenas enrolando um paninho. Gerald Thomas, em seu teatro, levou esses
procedimentos ao máximo: movimentos repetitivos e nervoso dos atores, ações sem
palavras.
A
frase: “todos artistas são o mesmo” parece responder à indagação que fazemos a
respeito do texto de Nelson ter praticamente desaparecido: foi reduzido a
fiapos narrativos. Como explicou Gabriela Mellão:
Em sua primeira incursão
na obra de Nelson Rodrigues, o diretor faz renascer apenas o DNA do clássico da
dramaturgia brasileira. Estilhaça o texto compondo quadros vivos autônomos
entre si que conservam pouco mais do que o deboche da obra original em relação
à sociedade de seu tempo. A fidelidade de Gerald não é literal, textual, mas
conceitual. Centra-se na visão social e política de Nelson e sua Doroteia
(1949). “Esta não é uma ave de cunho psicológico”, avisa Fabiana Gugli em cena
cacarejando abraçada a uma ave decepada, para não deixar dúvidas sobre o caráter
anárquico da releitura
(MELLÃO, 2022).
E,
aliás, Nelson guardou um impasse: ele gostou de tragédia, mas a tragédia pediu
uma moral, a moral que ele afirma como solução é a moral patriarcal, embora ele
rompeu com ela em suas obras de arte. Já Nelson Rodrigues, figura pública, era
um homem conservador, que propôs como solução para a decadência da moral
patriarcal uma volta ao passado, a um passado idealizado em que a moral
patriarcal funcionava, o que, visão de mundo ideológica que, além de ser
altamente reacionário, é o fundamento de todo reacionarismo até hoje. Gerald
Thomas, como Nelson Rodrigues, é altamente inconformista em sua arte, mas sua
persona pública é bem mais ambivalente. Em certos momentos defende as pessoas
trans, em outras faz propaganda do imperialismo americano, sendo considerado
“inventor do FMI no teatro brasileiro”. Ao mesmo tempo em que adota o programa
do partido democrata norte-americano, Gerald Thomas recusou com veemência Lula
e o PT.
Como Gerald confronta a moral
patriarcal, ele colocou Doroteia como sendo um travesti, daí o fato de
ter sido rejeitada pelas irmãs, daí sua “morte” simbólica para o universo das
mulheres que seguem a moral patriarcal.
A peça constitui-se de várias cenas
que não se ligam necessariamente em termos de ação ou narrativa: a primeira, um
monólogo feminino; a seguir, na segunda a imagem do feto, inspirada em Iberê Camargo.
Na terceira, surge Lisa Giobbi pendura no teto e a voz em off de Gerald
Thomas dizendo um texto sobre a ave psicológica que foi morta e a falta de paz
para o mundo trans, o que possivelmente justifica a ideia de uma Doroteia
representada por Rodrigo Pandolfo, ou seja, um homem. A cena alonga-se, com
Lisa fazendo acrobacias e danças. A quarta cena já é a das imagens da guerra,
com sons de tiros e a imagem de uma bomba que sobrevoa o palco, acompanhada do
choro de uma criança.
A quinta cena é de uma das irmãs de
Doroteia, vestida de preto, confrontando-se com uma vassoura que a persegue, em
meio a uma trilha sonora dramática composta, inclusive, de gritos. O fundo é a
roda de bicicleta de Duchamp. A sexta é um futebol imaginário entre duas irmãs,
que é bastante curioso, pois é peça para rir, algo que, para Nelson Rodrigues,
seria como a missa cômica, missa em que o padre equilibrasse bolas no nariz,
entrassem focas, etc.
A
sétima é marcada pelos gritos de Fabi Gugli com uma ave de cabeça decepada no
colo e o choro de bebê que perpassa toda a peça. A sétima aparenta ser um
ensaio da própria obra onde o diretor chama os nomes dos atores, que estão
lendo textos. Volta a música dramática. A oitava é o choque metafórico entre
Doroteia e Fabi Gugli, tendo ao fundo suas irmãs tensas. A nona é o diálogo
entre a voz off de Gerald e Rodrigo, Gerald e Beatrice. Rodrigo apresenta-se
como Doroteia e é interrompido pelo diretor. O diretor corrige Rodrigo, pois
explica que não é aquilo, ele está saindo do texto. No entanto, é humor, pois o
texto da peça não é o texto de Nelson Rodrigues.
A oitava cena quebra o drama
anterior: ao som de I Feel Good, de James Brown, as personagens dançam,
a luz e a música tornam-se praticamente protagonistas também.
Na nona cena, o leque serve de
motivo-guia estético, tais como serviam os guarda-chuvas quebrados em Dilúvio.
Flávia (Fabiana Gugli) levita ao utilizar o leque.
Na décima cena, Doroteia/Rodrigo é
possuído pelo espírito da volúpia, depois de que todas as mulheres (e homens)
sentem a náusea do homem. Quando Rodrigo/Doroteia avisa que seu texto acabou,
entra a voz off de Gerald Thomas explicando que naquela peça não
existirá sexo, dentre outras especulações e citações.
A décima primeira cena é um monólogo
dramático da travesti Doroteia, que chora, fuma e fala de sua
dificuldade em adaptar-se à família. A décima segunda é uma das irmãs de
Doroteia dançando com algo semelhante a um parangolé ao som de um texto
recitado em português de Portugal que fala “dessa língua subterrânea”, opondo-a
ao “totalitarismo de fala”. A cena seguinte (décima terceira) é uma cena em que
uma das irmãs de Doroteia dubla uma voz de mulher em off que diz que
“não é feminista e nem machista”.
A décima quarta é a cena em que o
próprio diretor, Gerald Thomas, aparece tocando uma percussão, enquanto Fabi
Gugli aparece dando terríveis e agudos gritos, sincronizados repetidamente com
a percussão: “Minha ave, minha ave, ela decepou a minha ave”, bem como “esse
não é um frango de cunho psicológico”. Se antes vimos a luz e a música criarem
drama e clima, praticamente como protagonistas, aqui o diretor em si vira
personagem e o texto vira música improvisada.
A décima quinta mostra os atores
como se peça tivesse terminado. Há um relaxamento aparente: onde colocar a
imagem do feto, pergunta Doroteia/Rodrigo. Logo em seguida, no entanto, a voz
do diretor entra novamente, provocando um novo tensionamento, com música
dramática.
A luz e a música são praticamente personagens
da peça de Gerald Thomas. Feto, podemos dizer, é uma obra em processo
que nos é apresentada como peça acabada. As cenas apresentam uma sucessão, tal
como no circo surge um mágico, uma acrobata, sem interligação necessária entre
elas. Como explicou Lucas Neves:
O coquetel vem embalado em
algumas das marcas registradas do “método Thomas”: texto hiperfragmentado,
palco envolto em fumaça de gelo seco, uso recorrente da voz do diretor em off,
intrincado desenho de luz, superposição de imagens na superfície desconexas… e
doses sadias de autodepreciação. Uma das melhores cenas do espetáculo envolve
um monólogo hilário (e improvisado) da atriz Ana Gabi sobre esse arsenal de
ferramentas do
encenador, nascido em Nova
York e criado entre a metrópole estadunidense, Rio e Londres (NEVES, 2022)
Gerald Thomas usa imagens para
substituir a palavra, utilizando também, dentro da mesma peça, às vezes,
palavras para acompanhar as imagens. Márcio Tito analisou que Duchamp combina
perfeitamente com Nelson Rodrigues, como explicou:
Duchamp
em Nelson. Agora que dito, como sempre ocorre com as grandes ideias, passa a
ser impossível descolar uma camada da outra. Duchamp e seu programa de leitura
que, em grosseiro resumo, se dá pela leitura total e material dos objetos de
arte, para muito além da primeira dimensão, parece muito bem adequado ao
aparato rodriguiano que, em simétrico equivalente, também sobrevive do
expediente que transmuta silêncios em solilóquios e solilóquios em silêncios (TITO, 2022).
Tito acima tocou num ponto
importante: a abordagem não-dramatúrgica de Gerald Thomas, que acontece mesmo
quando houve dramaturgia a adaptar.
Supõe-se, então, que a ideia do ready-made
foi bem realizada na peça de Nelson Rodrigues. Isto se deve ao fato de que
Nelson continha, em germe, expedientes simétricos de vanguarda que Gerald
aproveitou e desenvolveu ao máximo. Portanto, Gerald utilizou-se de uma obra
que ele não fez para realizar a sua, dando para a obra já pronta um destaque em
sua obra. Gerald Thomas explicou a natureza de seu olhar:
Na verdade, quis olhar para Nelson como uma
criança. Tem vassoura passando em cena, um zepelim, um palhaço. É como se fosse
Alice in Wonderland (Alice no país das maravilhas), só que em Auschwitz.
Uma criança vendo Nelson Rodrigues em Auschwitz, no meio de uma guerra. Esse é
o setting, o ponto de partida. Como uma criança não lida tanto com
palavras, surgem essas imagens encantadas e macabras. E o humor vem do fato de
o teatro ser uma bobeira, uma bobagem, séria, mas ainda assim bobagem (THOMAS, 2022).
Aqui acima temos um enfoque curioso:
Gerald deseja, com essa peça com tantos estilemas de vanguarda, apenas
entreter, como se fosse um certo tipo de teatro infantil ou “besteirol de luxo”.
Pode-se
dizer que alguns signos do texto de Doroteia permanecem, tais como os
leques, mas o ambiente tem o clima de mundo depois da catástrofe presente em Dilúvio.
Como explicou Gina Mage do Amaral:
Assim,
Thomas concretiza o parecer moderno em seu espetáculo teatral, interagindo com
elementos de outro artista, fazendo o cenário ser parte da obra tal como um
personagem, muito além de ser, unicamente, parte visual. Isso concorda
exatamente com a noção de Marcel Duchamp e do ready-made, conforme
veremos a seguir
(AMARAL, 2023).
Gerald
compõe a partir do texto de Nelson Rodrigues, mas juntando aqui e ali
referências aparentemente aleatórias de diversas obras de outros autores e
áreas da arte (Duchamp, Iberê, Wagner, Eduardo Agni). E as reúne e orquestra em
termos musicais, buscando a obra do acaso total. Como explicou Gabriela Mellão:
Com
F.E.T.O., Thomas constrói seu ready-made. Um ready-made
irreverente e iconoclasta, alerta sobre a necessidade da reinvenção da sociedade e a cultura de seu tempo, no
melhor estilo rodriguiano. Assim como o protagonista de Borges, o espectador é
sugado por um buraco negro de imagens, sons e temporalidades diversas. Ao menos
três tempos históricos coexistem nos cem minutos do espetáculo: a efervescente
cena cultural do início do século XX, quando Duchamp quebrava os cânones do
fazer artístico, realizando o que os impressionistas não tiveram coragem fazer;
o cenário bélico e desesperançado do pós-guerra em meados do século passado,
período em que Nelson Rodrigues escreveu Dorotéia e que Samuel Beckett
produziu suas obras mais icônicas; e o mundo pós-pandêmico que estamos
compulsoriamente imersos
(MELLÃO, 2023).
A análise de Gabriela Mellão acima é
muito arguta: são quinze cenas que apresentam três tempos históricos: a
vanguarda das primeiras décadas do século vinte, o tempo em que transcorre a
peça (anos 40) e o tempo atual, 2023, o mundo pós-pandemia.
Além da provocativa postura de
colocar um travesti no papel de Doroteia e confrontar a moral patriarcal do
texto de Nelson Rodrigues, o figurino também acompanhou essa linha de
pensamento, rompendo com a ideia de vestir as personagens com roupas pretas e
que escondem a sensualidade. A sensualidade, mantidas as roupas pretas,
apresenta as formas voluptuosas de Fabiana Gugli.
Thomas
fez uma releitura de Nelson Rodrigues onde a verve moralista do dramaturgo é
totalmente anulada. Gerald negou a moral patriarcal do dramaturgo frontalmente
ao colocar um homem no papel de Doroteia (Rodrigo Pandolfo). A intenção
de subverter a peça original foi bastante explícita nesse sentido. Igualmente,
adaptou o entorno da peça, exibindo muito mais uma obra em progresso do que o
texto da peça propriamente dita. Foi sua ideia “mostrar os andaimes”, ou seja,
conversar com o ator que representa Doroteia sob a forma de voz em off,
bem como mostrar a peça acabando antes de quando ela efetivamente acabou, com
os atores conversando sobre a apresentação.
A
peça constituiu-se de quinze cenas que não são interligadas por uma narrativa
propriamente dita. São ações organizadas em torno dos seis personagens da peça
original, mas não são as ações do texto de Nelson Rodrigues e sim outras,
organizadas conforme cenas em um circo, tendo não necessariamente uma ligação
entre uma e outra. A passagem de uma
cena em geral é feita por luz ou música, mais do que dos entrecortados
monólogos, uma vez que há mais monólogos superpostos do que diálogos.
Tanto
Nelson quanto Thomas demonstram inconformismo formal, mas assumiram posições
políticas reacionárias em determinadas conjunturas. Não levam, então, seu
inconformismo de forma consequente e não se tornam subversivos e nem
revolucionários. Recusam a moral patriarcal, mas ao mesmo tempo conciliam-se
com ela.
A
peça finalizou com uma carta que é uma canção de amor ao teatro, por parte do
diretor Gerald Thomas. De fato, o teatro possibilita a ele realizar entregar-se
a fantasias vanguardistas, expor e impor sua subjetividade extrema de forma por
vezes autoritária (como se impôs como autor sobre o texto do autor Nelson
Rodrigues) e assim mesmo ser visto, consumido, ouvido, entrevistado, celebrado.
Fez, incrivelmente, teatro não-dramatúrgico a partir de uma dramaturgia e mesmo
assim foi aceito. Sem dúvida, é um vitorioso.
3.Conclusão
Desde 2003, Gerald Thomas não
dirigia obras de outros autores. Naquele ano, foi marcado pela experiência de Tristão
e Isolda. Foi a partir daí que tomou uma decisão de dirigir e escrever as
próprias peças. E nesse ano de 2022 ele conseguiu realizar um antigo sonho:
dirigir Doroteia de Nelson Rodrigues. No entanto, podemos dizer que
Gerald fez uma sobreposição, um improviso a partir de Nelson Rodrigues.
Para adaptar Nelson Rodrigues,
Gerald Thomas introduziu traços de seu estilo, tais como fumaça de gelo seco,
fragmentação, música e luz como protagonistas, ausência de diálogos e sim falas
entrecortadas, gritos elevados à categoria de texto e de música. Fora o clima
sombrio de teatro germânico. E tal foi acentuado pela conjuntura histórica: a
peça, datada de 1949, passou a ter referências à Segunda Guerra Mundial,
importantes para um autor judeu como Gerald, mas inexistentes na obra de Nelson
Rodrigues cuja encenação foi tematizada aqui.
De certa forma, Gerald fez teatro
não-dramatúrgico a partir de uma dramaturgia já consolidada. Ele o fez, então,
acentuando as características vanguardistas da peça. Um leque, por exemplo,
tornou-se um signo comparável aos guarda-chuvas de Dilúvio.
De
forma totalmente oposta ao que disse Nelson da presença excessiva do diretor,
Gerald Thomas enquanto diretor é onipresente, fazendo teatro não-dramatúrgico
com a dramaturgia de Nelson Rodrigues, reduzindo sua narrativa a fiapos.
Ele
assume totalmente a presença como diretor, interferindo sob a forma de voz off
e até mesmo aparecendo diretamente como personagem dentro da peça do
dramaturgo, peça essa que já tinha uma dinâmica, temas e personagens e até
tradição de montagem, tendo sido escrita em 1949.
4.Bibliografia:
AMARAL,
Gina Mage. A Apropriação Por Gerald Thomas das Obras de DUCHAMP <<http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/17186/1/CT_CENOG_II_2015_05.pdf>>
<<Acesso em 15/02/2023>>.
MELLÃO,
Gabriela. Gerald Thomas compõe seu “ready-made” rodriguiano.
<http://www.questaodecritica.com.br/2022/08/feto/#:~:text=Com%20F.E.T.O.%2C%20Thomas%20constroi%20seu,diretora%20de%20teatro%20e%20cr%C3%ADtica>>.<<Acesso
em 15/02/2023>>.
NEVES,
Lucas. A Saída Tem que Ser a Mulher, Diz Gerald Thomas. <<https://elle.com.br/cultura/geraldthomas>>.<<Acesso
em 15/02/2023>>.
PEIXOTO, Fernando. Teatro
em Movimento. São Paulo: Hucitec, 1985.
RODRIGUES,
Nelson. Teatro Desagradável. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2017.
THOMAS,
Gerald. Palestras Comentadas. <https://www.youtube.com/watch?v=iyR62ddXR-Y&t=83s&ab_channel=FestivaldeCuritiba>.><<Acesso
em 15/02/2023>>.
TITO,
Marcos. F.E.T.O – Estudo para Dorotéia Nua
Descendo a Escada <https://deusateucombr.wordpress.com/2022/08/28/f-e-t-o-estudo-para-doroteia-nua-descendo-a-escada-por-marcio-tito/>>.<<Acesso
em 15/02/2023>>.
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