sábado, 13 de maio de 2023

Só Deus Cria a Rosa: Dora Lúcia Pinto

 

Só Deus Cria a Rosa: Dora Lúcia Pinto

 

                Dora era costureira. Dora Lúcia Pinto. Morreu há alguns anos, mas eu ainda passo por sua casa, ela ainda existe, tornou-se salão de beleza, depois estúdio de tatuagem. Essa era também a casa de seus filhos Edelweiss e Orlando, e das netas Adriele e Priscila. Orlando Amaral Pinto foi na juventude foi um de meus melhores amigos. Eu frequentava essa casa.

            Ao passar os olhos por ela, buscando lembrar-me como era, avistei uma rosa, há uma roseira florindo num pequeno jardim lateral, muito esquecido. Essa roseira está ali há muitos e muitos anos? Fico pensando se foi Dora quem a plantou, se já estava ali naquele tempo. Orlando contou-me que, antes de nos conhecermos, lembrava-se de mim ali perto, numa venda que havia numa esquina próxima e que tinha de tudo, ao estilo do antigo Xavier da Avenida das Palmeiras, bonecas penduradas no teto, etc. Ali comprávamos suspiros, maria mole, esse último era um doce que vinha com anéis com um brinde, um anel de joias falsas, esmeraldas de plástico, claro, mas achávamos muito charmoso dar esses anéis às meninas.

            Orlando, como eu, é cinéfilo, gostava muito do cinema do polonês Kieslowski. Eu ouvia muito uma canção de Zgbiniew Preisner ali, a Canção da Reunificação da Europa. Vimos um filme dele, A Fraternidade é Vermelha, com Orlando pausando no vídeo praticamente cena por cena, comentando a relação da moça com um juiz. Orlando também, pacientemente, gravou uma fita cassete para mim com canções da banda Joy Division. Era a tecnologia da época: copiar as músicas do disco de vinil para fita cassete.

Com frequência, eu e Orlando ficávamos vendo filmes, Dora fazia uma comida à noite, fazia um incrível mexido, misturava a comida da hora do almoço e sua comida tinha um tempero maravilhoso. Dora fazia aquela “comida de vó”, temperada com amor. Dora tinha uma filosofia de vida própria, uma “lição de coisas” drummondiana, ela dizia que precisávamos encontrar a ordem natural das coisas, as coisas têm uma ordem natural, não nos cabe ir contra, desde que o samba é samba, como diz Caetano.

Bruce Lee também tem uma filosofia semelhante. Ele dizia que deveríamos ser flexíveis como a água: a água, quando é colocada na xícara, torna-se a xícara. Orlando era também um grande admirador de Caetano Veloso, que cantava o “tranquilo e impassível” Bruce Lee.

            Pouco tempo depois de meus avós falecerem, visitei a casa deles, uma casa bem próxima da de Dora, mas ao contrário da de Dora, a deles logo a seguir foi posta abaixo. O terreno ficou ali na esquina da Vigário Nicolau e Coronel Tininho, até hoje nada ali foi construído devido a problemas com uma empresa construtora e fica ali aquele lote com ruínas ao lado do Salão São Vicente. Ao ver as ruínas, lembrei-me que Vovô Mário comentava que sua tia sempre rezava uma oração, um Ato de Contrição que tem uma versão católica longa: "Pesa-me também por perdido o céu e merecido o inferno, e proponho firmemente...” Eu reencontrei, numa parede, uma sombra de vovó Irene, pintada pela filha Marlene, bem como uma frase da oração que a tia de vovô, Aristoclina, creio, rezava. Quando a casa de meus avós foi destruída, finalmente, nos jardins sobraram apenas algumas plantas acuadas. Sobrou apenas um toco seco daquela velha roseira. A rosa de Dora é mais insistente, insiste ainda em dar flor. É como dizia o poeta Altino Caixeta, poeta de Patos de Minas, no poema Criação: “A ostra cria a pérola/Para se distrair do mar./O poeta cria a beleza/ Para distrair-se do efêmero. /Só Deus cria a rosa/Para distrair-se do eterno.”

            Ao ver a insistência da rosa de Dora, ouço de novo a casa ressoar aos acordes da canção de Preisner que a gente ouvia no filme Liberdade é Azul, aproveitando a Epístola de São Paulo aos Coríntios. A canção diz, em grego: “Se eu falasse a língua dos homens, se eu falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria”. Tranquila e impassível Dora. A ordem natural das coisas: só Deus cria a rosa.

 

 

 

 

 

 

 

 

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