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segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Vida e Morte da Revolução Cubana
Vida e Morte da Revolução Cubana
“Impressionou-me ver tantos símbolos revolucionários atirados ao chão e pisoteados (...), inclusive um retrato enorme de Che Guevara (...). Entre os símbolos vi, por um instante, o cadáver de meu pai e de seus companheiros, estavam todos ali, pisoteados e ensanguentados.” Jorge Ricardo Masseti, O Furor e o Delírio.
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
No ano de 2016, traduzi um texto do Partido Comunista do Equador, de linha maoista, denunciando a bancarrota do revisionismo cubano. Desde então o que o artigo apresentava está mais e mais se realizando: sem conseguir fornecer água, luz elétrica, comida e outras condições mínimas às massas, o revisionismo cubano provocou um levante das massas em julho de 2021. O desafio é entender com o marxismo o processo histórico que fez com que chegassem a essa situação degradante de hoje sem simplesmente repetir o argumento de que tudo é culpa do embargo do imperialismo estadunidense –sem deixar de lado que a guerra econômica dos Estados Unidos é um elemento, sem dúvida. De todos os desdobramentos, um dos mais trágicos foi a morte de Che Guevara, ponto que focalizaremos aqui.
A revolução cubana foi uma esperança. No entanto, ela foi uma revolução democrática incompleta. A revolução democrática implica em se desvincular de qualquer imperialismo e criar capitalismo autônomo e minifúndio. Nossa suposição é que houve a passagem de um caudilhismo a outro, sem transitar para socialismo e sim para um capitalismo selvagem pintado de vermelho. E de um imperialismo ao outro. Há avanços em termos de saúde e educação, pois em termos de América Latina, é um estado burguês mais evoluído: legalizou o aborto, por exemplo. No entanto, em termos mais gerais, ao analisar o processo podemos dizer que revolução democrática refluiu foi decapitada pelo grupo de Castro. E esse ponto vale a pena desenvolver aqui, pois em certa medida, o próprio Che possivelmente foi um alvo, conforme os indícios que obtivemos na revisão bibliográfica.
Che Guevara nunca participou de partidos comunistas no decorrer de sua vida e deixou bem claro que recusava neles um ponto em especial: sua disciplina. O que é bastante curioso, pois o próprio Che assume ser autoritário, mas nunca indisciplinado. E isso em dois momentos: na Guatemala e no México. Carlos Franqui, jornalista que esteve em Sierra Maestra, encontrou-se com Che naquele período pré-revolução no México e viu que ele estava lendo Fundamentos do Leninismo, texto de Stálin em que ele sistematizou o marxismo-leninismo. E logo a seguir questionou Che a respeito do relatório Kruschev. Che teria respondido, então, que Kruschev estaria iludido pela propaganda do imperialismo norte-americano. Podemos dizer que Che era um aventureiro eclético e não um marxista propriamente.
Como Che era eclético, ele ao mesmo tempo criticava trotskistas e adotava um pilar do pensamento trotskista, o antietapismo. Para isso, ele delimita que a revolução cubana já teria vencido a etapa nacional e democrática no período da guerra civil de 1952-59. Tanto no texto de Debray (Revolução na Revolução?) quanto na Tricontinental reaparece a concepção da “revolução socialista de um só golpe”, ou seja, “revolução socialista ou caricatura de revolução”. Podemos considerar que essa concepção foi compartilhada por Che e Castro.
Esse ponto do antietapismo é importante, pois rompe a aliança operário-camponesa: os camponeses em geral se engajam na revolução sonhando com o minifúndio e não em trabalhar assalariado em fazendas estatais capitalistas, que foi o que ocorreu em Cuba.
Sendo assim, Che pouco agregou do pensamento Mao Zedong, mesmo tendo visitado a China, mas há alguns pontos em que permaneceu compatível com a linha chinesa, como numa carta a Armando Hart (que chegou a ser ministro da educação em Cuba), quando montavam um programa de estudos de marxismo no pós-revolução cubana:
(...)Já está sendo feito, mas sem nenhuma ordem e faltam obras fundamentais de Marx. Aqui seria necessário publicar as obras completas de Marx e Engels, Lenin, Stalin [sublinhado por Che no original] e outros grandes marxistas. Ninguém leu nada de Rosa Luxemburgo, por exemplo, que tem erros em sua crítica a Marx (volume III), mas ela foi assassinada, e o instinto do imperialismo é superior ao nosso nesses aspectos. Também estão desaparecidos pensadores marxistas que mais tarde se desviaram do caminho, como Kautsky e Hilfering (não escrito assim) [Che está se referindo ao marxista austríaco Rudolf Hilferding], que fizeram contribuições, e muitos marxistas contemporâneos, não totalmente escolásticos.
VII). Aqui viriam os grandes revisionistas (se quiser, pode incluir Khrushchev), bem analisados, mais profundamente que ninguém, e deve estar seu amigo Trotsky, que existiu e escreveu, ao que parece. (32) (CHE, apud: KOHAN, 2025).
Note-se, então, no texto acima, que Che mantinha uma posição totalmente compatível ao maoismo: Trotsky e Kruschev são grandes revisionistas e Stálin foi um marxista-leninista.
Infelizmente, o antietapismo de Che parece ser um elemento que compromete seu pensamento com o trotskismo de forma grave. Em linhas gerais, podemos dizer que Che apostou tudo num revisionismo armado e, contava com isso com a linha soviética, embora tivesse essas críticas. Che Guevara, embora nunca atacasse diretamente a linha chinesa e até tivesse tentado fazer contato com essa linha em sua aventura africana, foi conivente como os absurdos que faziam Castro e Debray a respeito. Um exemplo é terem trazido Debray a Cuba depois que ele escreveu o artigo “Castrismo, a Longa Marcha da América Latina”. Ou seja: além de não concordar, as ideias de Che, Castro e Debray abertamente sobrepunham as de Mao na América Latina. A vinda de Debray consagrou esse objetivo.
Esse antietapismo juntou-se a outros fatores em Cuba e produziu uma guerrilha liberal na região de Escambray que durou de 1961 a 1966. Carlos Franqui ressaltou que o governador do PC degenerado, Felix Torres, reinstalou o regime do pagamento em trabalho (estilo corvéia ou cambão, de pagamento em trabalho não remunerado), odiado pelos camponeses, bem como criou um harém de garotas camponesas, outro elemento presente nos abusos dos senhores feudais: o uso e abuso do corpo das mulheres dos camponeses, presente no chamado direito de pernada, direito que o senhor feudal se arrogava de deitar na primeira noite de núpcias com a esposa do camponês. Um aprendizado muito importante é que o governador revisionista do PC cubano de linha soviética simplesmente recolocou esses elementos feudais e causou uma revolta camponesa armada de vários anos –o que confirmou, a nosso ver, as consequências do revisionismo e do antietapismo. Inclusive é bem importante ressaltar que o desembarque da Baía dos Porcos era em grande parte dos liberais traídos pelo castrismo e não dos homens de Batista. Esse desembarque aconteceu para ajudar a guerrilha em Escambray e foi derrotado. Ou seja, Che, se queria lutar, poderia ter permanecido em Cuba e lutando em Escambray contra uma guerrilha anticastrista.
Em carta durante a guerrilha em Sierra Maestra, Che observou com argúcia que Castro não buscava as soluções no mundo socialista como pensava Che. Alimentava, ainda, ilusões a respeito do mundo liberal e ocidental e era um burguês de esquerda e não um socialista. Diante disso, Che avaliou que se o processo se virasse para a direita ele partiria para novas aventuras. E assim foi e por isso ele partiu em 65. Mas precisamos detalhar esse processo.
Primeiro, Che já pensava o que apontei; Castro como um burguês de esquerda e o risco do movimento cubano virar à direita (e isso ocorreu). Uma vez como ministro da economia, Che se opôs a Rafael Rodriguez (ex-ministro de Batista e figura de proa do PC revisionista, intitulado Partido Socialista Popular) proposta vinda da União Soviética, que propunha empresas autônomas sem planejamento central. Com o passar do tempo, na União Soviética, esse modelo destruiu o socialismo, instalou capitalismo de estado e daí evoluiu para um capitalismo clássico entre 1989/91. Em Cuba parecem estar num processo semelhante. Che propôs planejamento central ao estilo dos anos 30 e terminou derrotado.
Como ministro da economia, Che anotou em seus diários, somente editados apenas recentemente nos anos 2000, que o Comecon era um “balaio de gatos”, não tinha um ideal que somente poderia se estabelecer pela verdadeira prática do internacionalismo proletário, mas este, lamentavelmente, “está ausente hoje em dia”. Ao analisar a realidade em um cargo privilegiado em informações, fatos e dados, Che chegou quase que às mesmas conclusões dos comunistas de linha chinesa. Na prática, Che verificou o social-imperialismo soviético, só não o chamou desse nome. Verificou “fenômenos de expansionismo, de troca desigual, de concorrência, até certo ponto de exploração e certamente de submissão dos Estados fracos aos fortes”. De constatação privada, Che levou um fragmento dessa reflexão a Argel, onde afirmou que os países socialistas estavam agindo de forma cúmplice com os imperialistas na exploração do terceiro mundo. A fala causou conflito com a linha cubana, mais e mais servil ao social-imperialismo soviético. Logo a seguir, já lutando no Congo, Che escutou pelo rádio, ao lado de Benigno, a famosa carta onde ele abre mão dos cargos. Benigno contou que Che ficou irritado, pois a carta era para ser lida somente se depois que ele morresse em combate. E que teria dito: “até onde [Fidel Castro] é capaz de chegar em nome do culto da [sua própria] personalidade”. Se sem ele morrer foi lida essa carta, a ideia era anunciar a ele, se estivesse vivo, que não deveria fazer críticas como as de Argel e nem retornar a Havana, era demonstrar que ele estava sendo abandonado pelo regime cubano em prol de centralizar a liderança somente em Fidel Castro com decapitação dos demais líderes de seu movimento.
Daniel Alarcón Benigno, militar cubano que participou da revolução cubana, escreveu a respeito de seu convívio com Che. Daniel, rompido com o castrismo desde o fuzilamento do general Ochoa em 1989, alegou em seu livro Vida e Morte da Revolução Cubana que Che e seu grupo foram abandonados para morrer na Bolívia. A respeito disso, Benigno alegou que, em circunstâncias igualmente dramáticas, na selva da Venezuela, conseguiu contornar a situação com base no apoio de Havana:
Bem, eu digo que Castro nos abandonou nas selvas bolivianas. Existem muitos fatores. Primeiro, sei perfeitamente tudo o que [os cubanos teriam] sido capazes de fazer para tirar alguém de qualquer lugar. O caso de Arnaldo Ochoa (revolucionário cubano) é um exemplo. Quando Arnaldo Ochoa foi à Venezuela lutar ao lado de Douglas Bravo (revolucionário venezuelano), mas as relações entre o movimento venezuelano e o Partido Comunista Cubano se romperam, Arnaldo Ochoa teve que fugir atravessando as selvas brasileiras e Cuba parecia interessada em saber tudo o que aconteceu na Venezuela, fez tudo e se esforçou para ajudar não só Arnaldo Ochoa, mas também seu grupo, a sair pelas selvas brasileiras. E isso foi muito próximo da época. Especificamente naquela época em que Che Guevara estava na Bolívia. E ele abandonou Che Guevara e nos abandonou (BENIGNO, 2024).
Para nós brasileiros a citação acima é incrível, pois no período em questão, fugir atravessando as selvas brasileiros deve ter sido fugir através de Roraima e Amazonas, estados próximos da Venezuela, para algum ponto do Brasil de onde foi possível que um grupo guerrilheiro tivesse voltado a Cuba sem que ninguém descobrisse, o que não deixa de ser um feito incrível.
Essa acima é a posição de Daniel Benigno e ele a reforça com outras observações: em Bolívia ele receberam uma emissão de rádio vinda de Havana, pois tinham um rádio comunicador, mas totalmente confusa e sem sentido. Na Bolívia, os contatos que Guevara esperava não existiam. Nem sequer a língua dos povos originários da região escolhida tinha sido informada e estudada corretamente: os nativos de Nancahuazu falavam tupi-guarani e não quéchua, língua que Che e os outros estudaram. Mario Monje, líder do PC boliviana, viajava à Bulgária, mas não tinha sido informado por Havana do porquê da vinda de Che (“para quê veio”, pergunta Monje ao vê-lo, conforme o Diário de Che na Bolívia).
Conclusões
Che foi um aventureiro eclético e não um marxista; seu pensamento, embora tenha valor, foi comprometido seriamente por incorporar o antietapismo trotskista, pensamento que teve como consequência, em Cuba, facilitar uma guerrilha civil de direita. Castro conduziu o processo a um retrocesso, a um cóagulo histórico. De uma revolução democrática embrionária, regressou-se a um capitalismo de estado burocrático pintado de vermelho, organizado politicamente como um caudilhismo. Castro era um burguês de esquerda e sempre foi, embora tenha adotado tintas de revisionismo kruschevista, linguagem marxista-leninista. Che teve intuições do processo de transformação do socialismo em social-imperialismo, mas não se aprofundou em suas análises; igualmente, em carta considerava Stalin marxista-leninista e Kruschev e Trotsky revisionistas, ou seja, tem pontos compatíveis como o que hoje chamamos maoismo, mas são pontos isolados, no todo seu pensamento se liga ao revisionismo armado e ao trotskismo antietapista. O processo virou para a direita mais claramente depois da saída de Che, pois representou também a derrota de sua linha crítica. Che possivelmente foi abandonado por Castro na Bolívia, abandono esse que foi prefigurado pela leitura da carta demitindo-se dos cargos, carga essa que só seria lida após sua morte e significou seu abandono simbólico pelo regime cubano já no período da aventura africana.
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