terça-feira, 11 de maio de 2010

Documentário: eu tenho a palavra

EU TENHO A PALAVRA é um documentário que pretende contribuir para a valorização da participação da cultura banto, preservada pela oralidade, na configuração do patrimônio cultural brasileiro.
Durante décadas acreditou-se na supremacia do iorubás-nagôs, no que se refere à contribuição das diferentes etnias africanas para a formação cultural brasileira. Essa idéia foi influenciada, principalmente, pelos estudos efetuados por Nina Rodrigues, no final do século XIX na cidade de Salvador-BA, seguido por Roger Bastide e Pierre Verger, na década de 1930. O resultado desse continuísmo metodológico foi o desenvolvimento da tendência equivocada de resumir a história do negro no Brasil à história do povo sudanês através de uma ótica iorubá.
Se levarmos em consideração que a língua viva de um povo é o testemunho mais antigo da história desse povo, os dados obtidos no domínio da língua, da religião e das tradições orais no Brasil revelam a presença banto como a mais antiga e superior em número e em distribuição geográfica no território brasileiro, por mais de três séculos consecutivos. Testemunho desse fato é o próprio vocabulário associado à escravidão, com palavras tais como quilombo, senzala, mocambo, mucama, assim como o vocabulário religioso afro-brasileiro, onde os vocábulos mais conhecidos são candomblé, umbanda, catimbó, macumba. Ainda hoje há registros de falares isolados em comunidades rurais, vestígios de antigos quilombos, que preservam um sistema lexical banto, como a “língua do negro da Costa” ou “Gira (língua, gíria) da Tabatinga”, ainda falada no quilombo de Tabatinga, situado no bairro Ana Rosa, periferia da cidade de Bom Despacho (MG).
Nossos personagens principais são dois: Dona Fiota e Chitacumula. Dona Fiota, Maria Joaquina da Silva, esteve presente no “Seminário Legislativo sobre a Criação do Livro de Registro das Línguas”, promovido em 2006 pelo IPHAN, falando das origens e do trabalho de preservação da língua falada no quilombo de Tabatinga.
A “língua do negro da Costa” era falada nas antigas senzalas das fazendas do interior de Minas Gerais e, com ela, os escravos podiam se comunicar livremente. Dona Fiota conta: “A gente não podia falar o nome do trem. Tem assango? Não, não tem assango. Tem cambelera? Não, cambelera também não. Tem caxô? Nada de caxô. Então, minha mãe falava: ‘Catingueiro caxô. Caxô o quê? No Curimã’. Ela tava avisando que o patrão havia chegado. Aprendi essa língua com a minha mãe. Ela falava todo dia para mim até eu aprender. Isso traz toda uma história pra gente, tanto das partes alegres, como das tristes”.
Dona Fiota foi escolhida pela comunidade para ser professora da “língua do negro da Costa”, com salário a ser pago pela Secretaria Municipal de Educação de Bom Despacho. Após um mês de trabalho, quando foi receber, o funcionário lhe disse:- “Ah, a professora é a senhora? Então, não vou pagar. Como justifico o pagamento a uma professora que é analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta de bate-pronto:" Eu não tenho a letra. Eu tenho a palavra".
Nosso outro personagem principal, Amadeu Fonseca Chitacumula, é um estudante angolano no Brasil. Conhecedor e amante de sua cultura, Amadeu participou em 2004 do evento “Minas afro-descendente - Uma experiência de revitalização de remanescentes de línguas africanas em Minas Gerais”, fruto de projeto da Faculdade de Letras da UFMG, coordenado pela professora Sônia Queiroz. Nessa ocasião, encontrou-se com Dona Fiota. Depois de se cumprimentarem em português, Dona Fiota pronunciou frases no dialeto que aprendera com a mãe. Chitacumula, surpreendentemente, entendia tudo o que dona Fiota dizia, e traduzia etimologicamente a origem de suas expressões, comparando com sua língua natal, o umbundo. A língua umbundo é falada pela etnia banta ovimbundo, da qual Chitacumula faz parte, e que constitui cerca de 40% da população de Angola.
Em nossa estratégia de abordagem pretendemos, na primeira parte do documentário, acompanhar uma visita de Chitacumula a Dona Fiota, em Bom Despacho (MG). Na segunda parte, é Dona Fiota que embarcará para Angola junto de Chitacumula, numa visita à família deste residente na cidade de Huambo, capital da província com o mesmo nome – na região onde se concentram a maioria dos ovimbundos.
A viagem de Dona Fiota representará, em pequena escala, a volta de um país inteiro às suas origens. O Brasil do samba e da capoeira, encontrará, enfim, sua irmandade banta do outro lado do oceano, separados que foram por séculos de escravidão e de estudos equivocados. A trilha sonora reforçará essa ideia de encontro, e consistirá principalmente dos vissungos recolhidos por Aires da Mata Machado em 1928, outros mais recentemente recolhidos, e canções tradicionais, na voz dos próprios personagens.
Através do documentário EU TENHO A PALAVRA pretendo também render homenagem aos meus antepassados, africanos escravizados nas terras das Minas Gerais colonial, falantes da “língua do negro da Costa”, amantes e praticantes da sabedoria que “não está escrita”. Com licença do curiandamba...

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