Caro Fábio Melo:
Vendo o vídeo de vocês do Grupo Cipriano Barata sobre Eduardo Galeano, acho necessário, especialmente, pontuar essa questão do capitalismo burocrático.
Quando você levanta a problemática, Fábio, da necessidade de uma revolução democrática no Brasil, antes da revolução socialista, assumindo o caráter dessa revolução enquanto nacionalista, você coloca um problema da maior importância.
Essa revolução democrática é necessária, mas não acontecerá via processo eleitoral e, uma vez ocorrida, tenderá fortemente ao socialismo. Ela será motivada por um processo composto de greves, paralisações, ocupações de prédios públicos, invasões de terra, etc, um processo insurrecional. Muitos junhos vindo para completar junho de 2013.
O capitalismo brasileiro surgiu como modo de produção a dividir espaços com o feudalismo, posso supor, justamente no período que aconteceu o que você e Rafael Freitas chamam de "contrarrevolução" de 1888, ou seja, a abolição da escravidão. A análise que vocês fazem sofre de um certo anacronismo. A transformação que levou à abolição, naquela época, estava sim acontecendo um período de revolução das relações de produção, tanto que a monarquia, herança do feudalismo português, desmoronou logo em seguida, pois sua base social, os latifundiários do Vale do Ribeira no Rio de Janeiro, retiraram seu apoio e entraram em crise. O surgimento do capitalismo burocrático, impulsionado pela transformação do capitalismo inglês em imperialismo, motivou, mesmo aqui na periferia, o desabamento de algumas estruturas feudais e pré-feudais, ou seja, escravistas.
Uma contrarrevolução propriamente seria o golpe de 64, na verdade direcionado contra os reformistas. Se uma reforma ameaça o capitalismo burocrático, ela é barrada. Esse capitalismo burocrático pode existir tanto na variedade neoliberal (como no Brasil) ou quanto na variedade que pratica estatizações e prega discurso nacionalista quando é conveniente (Venezuela de Chávez, Bolívia de Maduro).
Os golpes de estado como os de 2002 na Venezuela e de 64 no Brasil surgem no reajeitamento entre os vários setores da burguesia. A partir de 64 foi tomado justamente o caminho do desenvolvimento econômico associado ao imperialismo. O varguismo foi varrido pela ditadura, pois trazia junto de si setores ligados a uma burguesia nacional e setores da burguesia burocrática que desejam um projeto mais ligado ao estado nacional, que ambicionam, se for necessário, interferir mais no estado, fazer estatizações, usar discurso nacionalista.
A ditadura militar reajustou a disputa entre PTB/PSD e UDN para MDB (burguesia burocrática) e Arena (burguesia exportadora). A divisão prosseguiu: depois foi o PMDB e o PDS que representaram esses setores, agora é o PT/PMDB e PSDB/DEMO.
Desde 1980 em diante, estamos vendo o desmoronar e a ruína do capitalismo burocrático. O imperialismo causa distúrbios em nível mundial, demanda tempo para reconstruir-se, depois volta a causar. O desmoronamento do capitalismo burocrático parece estar acelerado, indo de Mali até o Afeganistão, para não falar de Haiti, Paraguai, Honduras, Venezuela, Bolívia, Argentina, etc. Desmoronando o capitalismo burocrático, ele levará o resto do sistema junto.
Se no passado colonial o modo de produção brasileiro era externamente feudal e internamente escravista, a partir do final do século XIX passou a externamente capitalismo burocrático e internamente semicolonial e semifeudal.
A expansão do capitalismo burocrático, impulsionado pela transformação do capitalismo inglês em imperialismo teve, aqui e ali isoladamente, alguns elementos progressistas como o capitalismo costuma ter nos paísese e desenvolvidos, como demonstram o fim da escravidão e o surgimento da república. Não à toa aquele período presenciou nossa primeira ditadura militar. Ela surgiu com Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, um coágulo histórico surgido justamente para evitar a aceleração das reformas a ponto de por em perigo o sistema como um todo. O sistema voltou a ter estabilidade no início do século XX, quando o setor exportador da burguesia de São Paulo e Minas consolidou um sistema republicano oligárquico-latifundiário. Dentro dos países imperialistas, os países mais ricos tendem também a predar os mais fracos, como acontece entre Alemanha e Grécia.
O setor burocrático, desenvolvido primeiramente graças ao Barão de Mauá, demonstrou o caráter do capitalismo no Brasil: nascido das inversões financeiras do latifúndio, está umbilicalmente ligado a ele, tanto que o empresário do império é um nobre, ou seja, dono de terras. Sua busca é de ajudar o latifúndio a modernizar-se. O Brasil vê-se diante do dilema posto por Lênin para o latifúndio: ou ele segue o modelo americano e o vê desaparecer numa guerra civil ou continua no modelo alemão, dos junkers, onde o latifúndio é modernizado e prossegue infinitamente. O latifúndio, no entanto, historicamente está doente desde sempre. A maior contradição interna do Brasil é entre o latifúndio e a burguesia -- que em tese a burguesia deveria abolir para liberar forças produtivas e criar uma pequena burguesia rural que daria amplo suporte ao regime. A externa é entre a nação brasileira e o imperialismo.
Parece-me que Vargas, como o nosso social-democrata mais evoluído, ficou no meio do caminho e não pode fazer a revolução democrática a partir de 30, que foi o momento em que a burguesia burocrática efetivamente tomou o poder no estado, mais do que simplesmente tornar-se o modo de produção dominante. Ele recuou diante do dilema da social-democracia no país: para completar a revolução democrática é preciso fazer uma guerra civil, uma guerra popular e isso o social-democrata não quer. Por isso Vargas deixa os latifundiários continuarem apesar de 32, por isso ele fecha o regime em 37 e por isso os reformistas varguistas são expulsos do estado em 64.
"O país vai bem, mas o povo vai mal" é a frase-chave daquilo que Florestan Fernandes chamou de capitalismo selvagem. Ele não se civiliza, não vai se reformar. Não seremos jamais uma Noruega ensolarada. Ou seremos subcapitalistas ou socialistas. Ser subcapitalista não quer dizer ser estagnado economicamente. Significa que sempre teremos contradições como as atuais, em que o contexto do Nordeste e Norte é "oriental" e de São Paulo e Rio Grande, "ocidental", assim como os horrores como fome, analfabetismo, etc.
Não há lugar no sistema internacional para que o Brasil torne-se um país imperialista. Para cada país imperialista, outro recai no capitalismo burocrático. Precisaríamos, para tornarmo-nos um país imperialista, simplesmente de derrotar militarmente e subjugar economicamente Estados Unidos e Europa. O Brasil só se tornará completamente uma nação para si e deixará de ser uma empresa para os outros num processo socialista.
Numa revolução de nova democracia, serão desenvolvidos ao mesmo tempo o capitalismo nacional (pequenas e médias empresas), capiutalismo esse atualmente atrofiado pelo imperialismo e o socialismo (com estatização das multinacionais e o fim do latifúndio).
A especificidade mais dramática do Brasil é, creio eu, a reprodução interna do sistema capitalista de dominação entre as regiões brasileiras. Sendo assim, São Paulo tende a tensionar com o Nordeste, pois São Paulo explora o Nordeste de forma análoga àquela como os Estados Unidos explora o Brasil.
Essa discussão sobre o semifeudalismo levantada por Freitas, que tem por estofo Mariátegui, Sodré e a historiografia revisionista brasileira não tem razão de ser. O Brasil é semifeudal e isso não é eurocentrismo, como fez a crítica falsamente descolonizada da academia. Foi a colonização que exportou para nós as relações de produção europeias. E pior: exportou um modo de produção mais atrasado. Enquanto Portugal vivia o feudalismo, ele exportou para nós o escravismo.
Assim sendo, o profeta é Guzmán. Os próximos trinta anos serão de desmoronamento do sistema imperialista. Ele não cairá de maduro e nem sozinho. Precisamos sempre dar um empurrãozinho. Contamos com vocês! Abraços!