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quinta-feira, 26 de maio de 2016
quinta-feira, 19 de maio de 2016
Leituras e Releituras de A Revolução dos Bichos
LEITURAS E RELEITURAS DE A REVOLUÇÃO DOS BICHOS
Valdirene
Leite
RESUMO
Esse
artigo irá tratar das diversas leituras e releituras que o livro Revolução dos
Bichos já inspirou no decorrer da história. Essa obra constitui-se de uma
fábula que remete ao tempo em que os animais falavam. Seu fundo moral, no
entanto, tem sido interpretado de várias formas. Uma vertente, ligada, digamos,
à releitura feita em Fazenda Modelo,
de Chico Buarque, considera o livro uma alegoria universal sobre o
autoritarismo. Logo, essa alegoria inspira uma alegoria sobre a ascensão e
queda do regime militar brasileiro. Outra leitura, mais comum, associa o enredo
da fábula à narrativa da história da União Soviética, o que a torna polêmica.
Abordamos aqui algumas das releituras que o livro teve na história. O livro
teve duas adaptações para cinema: uma em 1954 e outra em 1999. Ambas fizeram
alterações de sentido político. As adaptações apontavam sempre no sentido da
leitura voltada para a história da União Soviética. Finalmente, foi realizada
uma análise sobre qual é a leitura de Orwell na escola: pode-se supor que essa
leitura, ao invés de levantar uma reflexão, tem avaliado, na prática, a
habilidade em vomitar chavões da Guerra Fria.
Palavras-chave:
Orwell, Revolução dos Bichos, guerra fria, ficção, literatura
ABSTRACT
This monograph will
deal with various reading and rereading the book Animal Farm has inspired
throughout history. This work consists of a fable which refers to the time when
animals spoke. Its moral bottom, however, has been interpreted in various ways.
A shed, on, say, the remake made in Model Farm, Chico Buarque, considers the
book a universal allegory about authoritarianism. So this allegory inspired an
allegory about the rise and fall of the Brazilian military regime. Another
reading, more common, joins the plot of the story to the narrative of the
history of the Soviet Union, which makes it controversial. Here we address some
of the readings that the book had in history. The book had two film
adaptations: one in 1954 and another in 1999. Both have made changes in
political sense. Adaptations always pointed towards reading focused on the
history of the Soviet Union. Finally, an analysis of what the Orwell reading at
school was made: it can be assumed that this reading, instead of raising a
reflection, has evaluated, in practice, the ability to spew platitudes of the
Cold War.
Keywords: Orwell, Animal Farm, Cold War, fiction, literature
INTRODUÇÃO
O texto Animal Farm (A Revolução dos
Bichos) de autoria de George Orwell, tornou-se um dos grandes clássicos do
romance político do século XX. O texto, muito polêmico já quando foi publicado
em 1948, gerou inúmeras releituras século afora. Foi traduzido em outros
sistemas semióticos: tornou-se um filme ao tempo da Guerra Fria, filme esse que
modificava o final do texto para melhor adaptar-se aos propósitos ideológicos
de combater o comunismo. Igualmente, inspirou releituras devido ao seu formato
de fábula. Nessa pesquisa iremos citar duas: a novela Fazenda Modelo, de autoria de Chico Buarque e o romance satírico Os Bichos na Pós-Revolução, A Perereka, de Aluízio Alves Filho, que
tentam utilizar o método de Orwell para falar do período da queda do regime
soviético.
A novela de Chico Buarque,
embora ofuscada pela produção recente do escritor/compositor, prossegue sendo
estudada. Buarque notabilizou-se pela resistência à ditadura militar através de
sua arte, em posições engajadas. A novela é tida como parte constituinte dessa
produção dos anos 70. Sua forma alegórica seria típica da época: era uma
crítica velada ao regime militar, que era a fazenda modelo nominada no título,
mas na verdade era uma farsa, uma ditadura tecnocrática. Utilizando-se do
recurso da fábula, o ensinamento moral era que devemos sempre lutar contra o
autoritarismo e pela democracia.
Há várias hipóteses sobre A Revolução dos Bichos. Primeiramente,
há que classificar qual o estilo utilizado. Trata-se, pode-se supor, de uma
fábula ficcional, que deseja ensinar alguma moral. É uma novela do tempo em que
os animais falavam. Mas qual é a moral que esse texto traz? Uma das versões
interpretativas supõe que trata-se de uma fábula que analisa e critica qualquer
tipo de autoritarismo e se opõe a ele. Pode-se dizer, assim, que foi a partir de
uma leitura como essa que surgiu a releitura de Chico Buarque, o texto Fazenda
Modelo, publicado em 1974. Chico fez uma releitura da fábula adaptando-a para o
contexto do Brasil dominado por uma ditadura militar tecnocrática.
Outra hipótese que pode ser
desenvolvida é que Revolução dos Bichos, texto atualmente utilizado como
literatura infanto-juvenil, foi baseado em uma determinada narrativa histórica.
Pode-se tomar como base para sua redação o argumento de A Revolução Traída, de Leon Trotsky. O que A Revolução dos Bichos trata, afinal, é também de uma revolução
traída. Sendo assim, no entanto, a novela não trataria de uma fábula adaptável
a qualquer tipo de autoritarismo e sim focalizaria mais especificamente um tipo
de suposto autoritarismo que ela desejava atingir e criticar: a experiência
socialista soviética.
1 A
NOVELA PECUÁRIA DE CHICO BUARQUE
Possivelmente inspirado por
George Orwell, Chico Buarque fez, em 1974, sua primeira incursão pelo gênero
novela. Os bois e outros animais representam o povo que, na ditadura militar
brasileira, são enganados com um falso milagre econômico, enquanto padecem no
autoritarismo.
Os homens são a ditadura
militar (Chico aproveita a imagem dos homens como exploradores em Revolução dos Bichos). Fala, no entanto,
somente dos bois e das vacas, ou seja, dos explorados.
O texto é uma parábola sobre
o poder. A forma mais radical de dominação é tirar do indivíduo o direito de
decidir seu próprio destino. As pessoas são, então, transformadas em rebanho
humano.
A fazenda modelo da
narrativa é uma comunidade que, composta em boa parte por bovinos, passa a
viver transformações sob a liderança do boi Juvenal. Aumentam as formas de
controle: a reprodução passa a ser através de inseminação artificial, abolindo
o contato sexual entre o rebanho.
Tudo passa a ser regulado de
forma técnica e científica. A reprodução é garantida pelo banco de esperma do
touro Abá. A liderança de Juvenal prepara Lubino, filho de Abá. Como explica
Adélia Bezerra de Menezes:
O livro tem uma
história extremamente semelhante à obra A
Revolução dos Bichos, de George Orwell, escrita 30 anos antes, na qual o
autor também cria um mundo fictício, este composto por uma fazenda na qual seus
habitantes, animais, promovem uma revolução para que pudessem se libertar da
opressão do fazendeiro, antigo proprietário do local. A disputa por poder entre
os bichos leva, no entanto, a desenrolares imprevistos, reforçando a tese
defendida tanto por Orwell quanto por Buarque, em suas respectivas obras, de
que o poder político, concentrado nas mãos de uma lite dominante, acaba por
gerar grande opressão, em detrimento do bem comum (BEZERRA DE MENESES).
A ideia de Fazenda Modelo é
ser uma alegoria do Brasil do tempo dos generais, em especial do Brasil do
milagre econômico e de sua intensa propaganda. O texto faz paródia dos
discursos militares, moralistas e tecnocráticos característicos da propaganda
do regime na época. Para isso, por vezes ele se utiliza de vocabulário técnico
tirado de manuais de agropecuária, vocabulário esse que complica a leitura do
texto.
Se Revolução dos Bichos é
negação da utopia socialista, Fazenda Modelo é a negativa de um regime militar
autoritário. No caso da alegoria de Brasil, trata-se de uma situação distópica,
ou seja, uma situação opressiva que continua no tempo. Mostra-se a postura
autoritária do boi Juvenal, contraposta a um discurso irreal de um paraíso onde
vive um gado natural e sexualmente liberado.
O fim da liberdade sexual
dos touros e vacas antes da instalação da gestão do boi Juvenal é a metáfora
escolhida por Chico para o fim da liberdade existente antes do regime de 64.
Para demonstrar a reprodução
por meios técnicos, o narrador reproduz manuais agropecuários que narram,
detalhadamente, processos de coleta do sêmen do boi: fala-se em vagina
artificial, coleta de sêmen, coleta por massagem no reto, assim como a obtenção
da ejaculação por meios elétricos. Essas descrições têm como objetivo mostrar o
esmagamento do indivíduo pelo estado.
Assim como o milagre
brasileiro durou apenas de 1969 a 1974, a virilidade do touro reprodutor
termina por ser destruída pelos métodos técnicos. A seleção dos indivíduos
bovinos de melhor raça simboliza a repressão e os assassinatos realizados pela
ditadura militar.
A Fazenda Modelo dura pouco tempo no status de modelo: dentro de
pouco tempo, ela fracassa, deixando o gado insatisfeito pela falta de liberdade
sexual. No final da novela, Juvenal substituiu o gado pela plantação de soja. Pode-se
supor que o narrador estava antecipando o momento político que o país viveria
logo a seguir: a abertura política controlada a partir das elites e dos
militares.
Também influenciado por
Revolução dos Bichos, a novela satírica Os
Bichos na Pós-Revolução, a Perereka, de autoria do cientista político
Aluizio Alves Filho, aproveitou o desmoronamento do regime soviético para fazer
uma sátira política. A veia propriamente humorística do texto utiliza-se do
nome do animal “Perereka” muito comum em piadas, por também conotar a genitália
feminina, associando-o, simbolicamente, ao processo chamado Perestroika,
processo esse que, iniciado com otimismo, termina em desastre e dissolução da
União Soviética em 1991. Tal trajetória possibilita um paralelo com o processo
de degeneração burocrática analisado na novela de Orwell.
2 A
HIPÓTESE DE REVOLUÇÃO DOS BICHOS COMO ARGUMENTO DA REVOLUÇÃO TRAÍDA
Essa hipótese tem
considerável embasamento. Pode-se dizer, por exemplo, que em determinada altura
da fábula, os porcos, animais privilegiados, desenvolveram padrões de consumo
mais elevados do que os dos demais animais. Nessa altura pode-se dizer que há uma
simbologia clara e que representa uma narrativa histórica:
Veremos mais adiante,
ademais, que, apesar da União Soviética não ter mais classes possuidoras no
sentido comum da palavra, ela continua a ter setores dirigentes altamente
privilegiados que ficam com a parte do leão na esfera do consumo. Assim, se
existe uma menor produção per capita de produtos de primeira necessidade na
União Soviética que nos países avançados, isso significa que o nível de vida
das massas da União Soviética ainda está muito abaixo do nível dos capitalistas (TROTSKY, 2015).
Sendo assim, pode-se dizer
que as “classes dirigentes” na União Soviética poderiam ser representadas pelos
porcos, alguns poucos privilegiados que consomem mais do que os outros. Os
outros animais representariam as classes dominadas.
Dessa passagem pode ter
saído a inspiração para a alegoria principal da novela: a das classes
dirigentes como um animal, o porco, cuja representação é associada à sujeira e
ao fedor. Seria, também, uma classe repugnante, suja. Essa é a associação que
subjaz à alegoria realizada. Outras semelhanças podem ser encontradas, como na
passagem seguinte:
Vinte e cinco milhões
de egoísmos camponeses isolados, que ontem tinham sido o único motivo da força
da agricultura – fracos como um cavalo velho, mas não obstante uma força – a
burocracia tentou substituir com uma tacada só pelas ordens de 2000 escritórios
administrativos de fazendas coletivas, com falta de equipamento técnico,
conhecimento agrônomo e até mesmo o apoio dos próprios camponeses. As terríveis
consequências desse aventureirismo rapidamente apareceram, e duraram por alguns
anos
(TROTSKY, 2015).
A
passagem acima compara os esforçados camponeses a um cavalo velho. A mesma
imagem surge, na novela, na figura do cavalo Sansão. Depois de muito
esforçar-se, Sansão, depois de velho, é mandado para a morte de forma impiedosa
pelos dirigentes.
A experiência da
coletivização das propriedades rurais foi tida, então, como aventureirismo com
consequências negativas para os camponeses. Os porcos eram o que Trotsky
chamava “a burocracia”.
Em A Revolução dos Bichos, Sansão, como o campesinato, trabalha
duramente, mas mesmo assim só lhe é retribuída uma grande ingratidão: ele é
mandado para o abatedouro de cavalos e mesmo seu corpo é explorado, utilizado
comercialmente –da mesma forma que o operário é explorado no capitalismo:
Mais ou menos um
quarto de hora depois, Garganta apareceu, cheio de simpatia e preocupação.
Disse que o Camarada Napoleão tomara conhecimento, abaladíssimo, do mal que
sucedera a um dos trabalhadores mais leais da granja, e já estava cuidando de
enviar Sansão para tratar-se no hospital em Willingdon. Os animais sentiram
certa inquietação (com exceção de Mimosa e Bola-de-Neve, nenhum deles jamais
saíra da granja) e não gostaram da ideia de seu camarada ir parar nas mãos dos
humanos
(ORWELL, 2007, p. 96).
Esse tipo de caracterização
iguala, na prática, a experiência soviética a um capitalismo clássico,
desvalorizando-a.
Ao tratar de A Revolução dos Bichos, temos também de
lidar com a hipótese de que a fábula fala do governo de Stálin, indo dos
antecedentes da revolução russa até o tempo da Conferência de Teerã (1953). O
texto não falaria, então, de um autoritarismo em geral, mas de uma determinada
narrativa histórica. Ao tratarmos dessa hipótese, pode-se supor que a
inspiração de A Revolução dos Bichos talvez fosse A Revolução Traída, de Leon Trotsky.
Essa hipótese de que
Revolução dos Bichos é anticomunista será retomada, nos anos 2000, pelo autor
norte-americano John Reed, que criou a ficção A Volta do Bola de Neve. Reed,
escritor norte-americano formado em Colúmbia, volta os elementos da sátira de
Orwell contra o imperialismo norte-americano dos dias atuais, buscando
aniquilar a posição de Orwell.
3 A
VOLTA DO BOLA-DE-NEVE
Essa ficção do escritor John
Reed, publicada nos Estados Unidos, escreve uma ficção a partir da Revolução dos Bichos, mas buscando
assumir uma posição anti-Orwell. Essa analogia em relação aos bichos também
trata da história.
Essa ficção tratou do
momento em que Napoleão morre e todos os sucessores de Napoleão vão morrendo.
Bola de Neve reaparece na Granja e vem com um Bode que entende de marketing.
Bola de Neve vem cheio de ideias capitalistas. Essa Granja torna-se, aos
poucos, um parque de diversões.
Essa granja modifica-se aos
poucos, passando a ter luz elétrica, tendo água quente, tendo dois moinhos, os
Moinhos Gêmeos. Todos os animais passam a usar roupas, assim como a andar em
duas patas. Um exemplo de uma passagem de A Vez do Bola de Neve:
Os porcos informaram
com muito gosto que os cofres da Granja dos Bichos estavam sustentando-se muito
bom, e que não havia sido necessário tomar um empréstimo bancário (o que quer
que isso significasse) para concluir as obras. No momento apropriado,
contrataram-se especialistas, e muitos dentre os bichos ficaram inquietos com a
presença de eletricistas, soldadores e inspetores humanos. Mas Bola-de-Neve
estava certo. O caminhar bípede e o uso de roupas ajudavam a evitar problemas,
tanto da parte dos humanos quanto da parte dos bichos. Depois de tanto tempo
lidando com os humanos, muitos porcos estavam tão aclimatados a eles que os bichos
da granja tinham alguma dificuldade em perceber a diferença entre homens e
porcos (no fim das contas, tudo virou uma questão de nariz versus focinho,
sapatos versus patas). Com o passar dos dias, quase todos concordavam que a
melhor maneira de lidar com um humano era tratá-lo como um porco. Ambos
gostavam de um pouco de bajulação
(REED,
2002, p. 34).
Reed quis contar a história
capitalista dos Estados Unidos, fase rural até a industrialização e
urbanização. O livro culmina com um atentado terrorista aos Moinhos Gêmeos,
evidente representação das Torres Gêmeas situadas em New York.
O personagem Benjamin toma
partido de seus interesses e Moisés, o corvo, volta como uma representação da
religião. Os castores seria a representação dos muçulmanos, dos árabes. A
granja teve, graças ao Bola de Neve, uma expansão. Bola de Neve anexa o
território dos castores e vai irritando mais e mais os castores, que no final
da narrativa atacou os Moinhos Gêmeos. Como explica Marcelo Cavallari:
O livro de Reed não é
só uma continuação da Revolução dos Bichos. Trata-se de uma paródia de uma das
mais representativas obras saídas do debate em torno do comunismo soviético que
ocupou boa parte do pensamento do século XX (...) Publicado em 2002, o livro de
Reed faz Bola-de-Neve voltar à fazenda depois que a primeira geração de líderes
já morreu e propor, como alternativa à estagnada vida dos bichos, a
transformação da fazenda num parque temático. O novo lema do porco é o
suprassumo da ideologia da competição e do sucesso pessoal: 'Todos os bichos
nascem iguais: o que vêm a se tornar é problema deles'. A fazenda-parque se
enche de dinheiro, mas acaba tendo seu maior símbolo - os moinhos gêmeos -
atacado pelos fanáticos castores que habitam miseravelmente a floresta que
cerca a fazenda. A óbvia semelhança com o 11 de setembro ressalta a preocupação
primordial de Reed com a política. Respondendo sobre o que tinha em mente
quando decidiu parodiar Orwell, Reed não fala em nenhuma preocupação literária.
'Escrevi o livro em três semanas depois do 11 de setembro, bastante próximo das
torres gêmeas sob cuja sombra eu cresci. Era nisso que eu estava pensando.' O
ataque levantou no jovem autor nova-iorquino a pergunta: por que os Estados
Unidos são tão odiados? O livro é uma tentativa de resposta (CAVALLARI, 2015).
Na representação de Reed, há
temas como imigração, globalização e, principalmente, o porco inspirado no
trotsquismo volta para instalar o capitalismo avançado, o individualismo e o
consumismo.
Os ratinhos, por exemplo,
representam os imigrantes que vão à Granja e não conseguem trabalhar com outras
coisas, a não ser lavar privadas, limpar o chão, trabalhos que os nativos da
Granja não querem mais fazer.
A leitura que Reed faz é uma
paródia que volta-se como um desafio para os admiradores de Orwell, fazendo uma
crítica ao estilo de vida norte-americano.
4
REVOLUÇÃO DOS BICHOS EM OUTROS SISTEMAS SEMIÓTICOS
Revolução
dos Bichos já teve pelo menos duas adaptações marcantes, uma em
1954, diretamente financiada pelo departamento de inteligência norte-americano,
muito embora o filme fosse uma produção inglesa; e outra adaptação, essa
realizada em 1999. Ambas adotaram variantes a respeito da narrativa original,
sempre para adotar um sentido político em relação ao socialismo e à União
Soviética.
A obra de 1954 optou por um
final que não iguala os porcos e os animais e sim deixa bem claro que a tirania
de Napoleão era bem pior do que a do fazendeiro Jones. A narrativa termina com
os animais revoltando-se contra a tirania do porco Napoleão. Igualmente, a
narrativa também foi alterada no que diz respeito a Bola-de-Neve, personagem
que é associado a Trotsky.
Em Revolução dos Bichos, muitos adjetivos positivos são associados a
Bola de Neve: ele é brilhante, inteligente, etc. Já na narrativa inglesa dos
anos 50, no auge da Guerra Fria, o texto foi alterado para dar a entender que,
no lugar de Napoleão, Bola de Neve instalaria uma ditadura tão autoritária
quanto a dele.
O filme, que adapta uma obra
de Orwell, deixa bem claro que rejeita o suposto socialismo do autor, tanto
quanto o socialismo de Stálin. Essa adaptação rejeita a ideia de ser um libelo
contra qualquer autoritarismo. Ela é voltada claramente contra o socialismo de
Stálin, mas também parece extensiva a qualquer socialismo. Observemos o que
escrevem Gomes e Correa:
As manipulações do texto
de "A Revolução dos Bichos" não demoraram a acontecer. No fascinante
estudo "The Cultural Cold War" (A Guerra Fria Cultural), Frances Stonor
Saunders relata que, logo após a morte de Orwell, a CIA (Howard Hunt era o
agente encarregado do caso) comprou secretamente da viúva do autor os direitos
para filmar o livro e mandou produzir na Inglaterra uma versão em desenho animado,
por ela distribuída no mundo inteiro. (...) Assim, depois de morto, Orwell foi submetido
às fraudes e aos estratagemas da propaganda ideológica, pelas mãos dos
combatentes americanos da Guerra Fria que viriam a exaltá-lo como o maior
inimigo dessa mesma propaganda
(ASH, apud: ALMEIDA, CORREA, 2015).
A adaptação de 1999
(adaptação para a televisão do diretor John Stepheson) modifica o texto para
trazer a situação de fracasso da fazenda dos animais, episódio ausente do
livro. O livro apenas mostra a situação em que porcos e homens estão negociando
escondidos dos demais animais, mas são flagrados por Quitéria: não há mais como
diferenciar homens de porcos, ou seja, capitalistas de socialistas. Mas não há
um levante dos animais contra os porcos e não se sabe se a Fazenda dos Animais
entrou em colapso ou se a dominação dos porcos se eternizou.
O filme mostra a família
sendo comprada por uma família de homens, depois do colapso do regime de
Napoleão. Há, inclusive, promessas aos animais de que os homens não repetirão
mais os erros do passado. Os novos donos da fazenda são o protótipo de uma
família feliz norte-americana. Sendo assim, a narrativa, surgida depois do
colapso do bloco soviético, coloca uma situação que representa esse colapso: o
colapso da própria fazenda. A seguir, finalizando fazendo o elogio pouco
crítico da volta do capitalismo clássico.
Embora não se referindo
diretamente a Revolução dos Bichos, há também uma canção de Engenheiros do
Hawaaii que refere-se a essa fábula: Ninguém é Igual a Ninguém:
há tantos quadros na
parede
há tantas formas de
se ver o mesmo quadro
há palavras que nunca
são ditas
há muitas vozes
repetindo a mesma frase:
(ninguém = ninguém)
me espanta que tanta
gente minta
(descaradamente) a
mesma mentira
todos iguais
todos iguais
mas uns mais iguais
que os outros
Há pouca água e muita
sede
Uma represa, um
apartheid
(A vida seca, os
olhos úmidos)
Entre duas pessoas
Entre quatro paredes
Tudo fica claro
Ninguém fica
indiferente
Ninguém é igual a
ninguém
Me assusta que
justamente agora
Todo mundo (tanta
gente) tenha ido embora
Todos iguais, todos
iguais
Mas uns mais iguais
que os outros
O que me encanta é
que tanta gente
Sinta (se é que
sente) ou
Minta
(desesperadamente)
Da mesma forma
Todos iguais, todos
iguais
Mas uns mais iguais
que os outros
Tão desiguais, tão
desiguais
Tão desiguais, tão
desiguais (ROVER,
2015).
Essa letra, no entanto,
preserva apenas uma frase do texto: a perversão das ideias do Major e a
persistência da desigualdade, mesmo quando se pensa na transição para um regime
supostamente melhor. Originalmente, a frase falava dos animais: “todos os animais
são iguais”.
Quando a frase é pervertida,
pois a revolução foi traída pela burocracia, a frase é mudada para “todos os
animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”. Ou seja: deve-se
aceitar a desigualdade de classe e da dominação (que no caso da fábula, é a
formação de uma nova classe dominante entre os próprios animais, os porcos).
O que espanto o autor da
letra é a desigualdade, as grandes diferenças entre os seres humanos, assim
como a pluralidade das interpretações que se pode dar à obra de arte. A letra
trata de muitas das contradições geradas no relacionamento entre as pessoas
devido a essa desigualdade.
5 OS
BICHOS NA PÓS-REVOLUÇÃO, “A PEREREKA”
No ano de 1994, sob o
impacto da queda da União Soviética, o professor e escritor brasileiro Aluízio
Alves Filho escreveu uma sátira dedicada a Orwell. Desde o título o livro
buscou ser a continuação de um livro clássico. O pano de fundo histórico passou
a ser “perestroika” de Mikhail Gorbachev, que alguns anos antes tinha feito um
verdadeiro furor midiático.
A personagem de Mikhail
Gorbachev e sua política de reformas são representadas pela figura de um
animal, a “Perereka”. Aluízio Alves Filho não tomou os mesmos personagens para
narrar a história da queda da União Soviética. Ele mostrou a subida ao poder da
Perereka e a relação que a União das Fazendas Organizadas (UFO, um paralelo com
a URSS) tinha a fazenda de Seu Malaquias (que representa o capitalismo).
A narrativa demonstrou, a
partir do jornal Tribuna dos Tribunos,
pertencente ao Seu Malaquias, a leitura que a mídia tinha a respeito da posse
de Perereka nas fazendas organizadas e o contraste que se deu a seguir, quando
a imprensa percebe as intenções conciliatórias da Perereka em relação a Seu
Malaquias. No editorial se podia ler, a respeito da posse de A Perereka:
Mais uma
monstruosidade na fazenda das Rochas. Energúmenos fazem da perereka o novo
ditador. A perereka é um bicho asqueroso, estúpido, anêmico e raquítico que
subiu na vida puxando o saco de porcalhões. A perereka só não vai piorar as
Rochas porque isso é impossível. Ela vai dar sequência ao regime de opressão e
incompetência implantado por seus irracionais antecessores. Falta-lhe massa
encefálica. Falta-lhe inteligência. Falta-lhe o mais elementar bom senso (ALVES, FILHO, 1994,
P. 39).
O que se pode dizer é que,
retrospectivamente, a imprensa e os poderosos do Ocidente entenderam muito bem
que, quando Gorbachev dizia que Perestroika é revolução, ele queria criar um
estado burguês mais completamente assumido do que existia na União Soviética.
Somente isso explicava que, nos editorais do jornal de Seu Malaquias, a
política da Perereka fosse defendida em termos tão diferentes do que
anteriormente era referida a própria Perereka e a UFO. Como se pode ler no jornal
capitalista fictício a respeito da nova política da Perereka:
A perereka propõe-se
a tirar a fazenda das Rochas do atraso milenar em que se encontra. Com tal
objetivo, diminuiu o orçamento das forças de guerra e nomeou uma comissão para
planejar reformas urgentes. A julgar pelo currículo dos escolhidos, o projeto
reformista pode dar bons resultados. A perereka vai ter que quebrar a
resistência dos conservadores que estão acostumados a viver em chiqueiros. Não
esperemos milagres para amanhã. O que a chuva fez num dia, o sol não desmancha
em dois
(ALVES, 1994, P. 74).
Na fábula de Alves Filho, a
Glasnost aparece como sendo o “Caos”, o chamado “Comitê de Aprovação de Obras
Sociais”. Trata-se de um trocadilho: para Alves Filho, a Glasnost teria semeado
o caos. E de fato, a Glasnost teria simplesmente aberto para a propaganda
capitalista em todas as instâncias, a propósito de gerar a transparência.
A esquerda, no entanto,
acreditou que o que estava acontecendo era a democratização do sistema
soviético. Na realidade, Gorbachev desenvolveu e continuou as posições de
Kruschev e Brejnev. Como explicou a respeito Ludo Martens:
Em finais de 1989,
impõe-se a conclusão de que dois anos de glasnost levaram a União Soviética à
beira do abismo. Em nome do anti-stalinismo todas as concepções socialistas são
postas de lado e, em nome dos valores universais, a ideologia liberal faz a sua
entrada. No momento em que os nacionalismos burgueses se desencadeiam e ameaçam
estilhaçar a União Soviética, o país aproxima-se do Ocidente e orquestra, como
prova das suas boas intenções, golpes de Estado de feição liberal na Europa de
Leste. No princípio de 1991, o XXVIII Congresso do PCUS aparece como o
congresso da ruptura e da restauração do capitalismo. A glasnost preparou os
espíritos para o capitalismo, destruindo todas as concepções políticas. Assim,
o XXVIII Congresso pôde transmutar o partido comunista em partido
social-democrata e transformar as estruturas políticas soviéticas segundo o
modelo ocidental. A crise política e económica tornou-se inextricável, agravada
ainda pela guerra entre a burguesia liberal pró-ocidental, em redor de Éltsine
e Lansbergis, por um lado, e, por outro, os partidários de uma economia capitalista
mista e de um poder central forte, em redor de Gorbatchov. A política externa insere-se
cada vez mais nitidamente na lógica do capitalismo mundial (MARTENS, 1991, p. 10).
A política externa de
Gorbachev foi claramente apresentada em A Perereka: a política de coexistência
pacífica com os Estados Unidos e o Ocidente. Ela apareceu da seguinte forma em
A Perereka:
Pensem bem: o que
temos ganho brigando com Seu Malaquias? A verdade nua e crua é o seguinte:
NADA. Apenas gastamos energia e reservas. Para quê? Ora, para fabricarmos
armas, armas e armas. Quanto mais armas temos, mais armas fabricamos. Nossos
arsenais estão cheios e nossas barrigas vazias. Não demora muito, vamos ficar
numa completa pindaíba, sem poder com um gato pelo rabo. Rogo aos senhores:
mudemos de tática. Menos canhão e mais ração. Isso pela grandeza a UFO! Pela
unidade indestrutível da UFO! Pela solidariedade dos animais de todas as
fazendas do mundo! (ALVES FILHO, 1994,
p. 65).
Essa posição da personagem
Perereka, de fato defendida por Gorbachev, apresentava-se como sendo a tese da
coexistência pacífica historicamente defendida por comunistas. Na prática, a
política de Gorbachev era de tentar retornar de forma controlada ao
capitalismo, mas mantendo a União Soviética como um grande potência mundial.
Para isso, buscou conciliar-se com as grandes potências ocidentais e passar a
aprovar a exploração do terceiro mundo pelo imperialismo. Somente depois da
queda da URSS é que Gorbachev revelou, numa palestra na Turquia, quem ele
realmente era e quais foram, desde o princípio, seus intentos:
O objetivo da minha
vida era a eliminação do comunismo, uma ditadura insuportável sobre o povo. A
minha mulher, que tinha compreendido esta necessidade mesmo antes de mim,
apoiou-me inteiramente. Foi justamente para o alcance deste objetivo que me
servi da minha posição no partido e no país. Precisamente por isso, a minha
mulher incentivava-me constantemente para que ocupasse sucessivamente posições
cada vez mais altas no país. Quando conheci pessoalmente o Ocidente, percebi
que não podia renunciar ao objetivo definido. E, para ser alcançado, precisava
substituir toda a direção do PCUS e da URSS, bem como a direção em todos os
países socialistas. O meu ideal nessa altura era a via dos países
sociais-democratas.
(GORBACHEV, apud: GOSWEILLER, 2011,
p. 12).
O que efetivamente Gorbachev
liderou, com sua Perestroika, foi a privatização do patrimônio público da União
Soviética, gerando uma nova e mafiosa elite capitalista.
Gorbachev, embora fizesse
discursos dizendo que a perestroika era revolução, era representante de uma
burocracia partidária que monopoliza o controle das questões-chave. Há
controvérsia para ter certeza se essa “nomenclatura” surgiu após a saída de
Trotsky da URSS em 1929 ou se emergiu depois do golpe dado por Kruschev e os
revisionistas em 1956.
O fato é que a burocracia
tornou-se uma elite parasitária e explorada. Mais e mais as relações
estabelecidas por ela passaram a se assemelhar às atitudes de elites como elas
nos países que eram abertamente capitalistas. Sendo assim, a URSS de Gorbachev
seria falsamente comunista. Há muito estaria restaurando elementos do
capitalismo.
Pode-se
dizer, então, que essa elite conseguiu continuar no poder. Gorbachev, Ieltsin,
Putin e outros líderes da URSS são antigos membros da direção do partido e
ainda continuam em evidência enquanto políticos influentes.
Durante muito tempo, eles
atuaram como funcionários privilegiados e exploraram os cidadãos da União
Soviética. E foi essa elite quem presidiu, a partir de Gorbachev, a privatização
de toda a propriedade coletiva que pertencia aos trabalhadores soviéticos.
Em meio a esse processo,
empobreceram os trabalhadores e também vitimaram a ampla classe média. Esse
processo pode ser considerado o maior roubo, a maior expropriação da história
da humanidade.
6
ORWELL NA ESCOLA: UMA POLÊMICA
Desde a publicação de Revolução dos Bichos em 1945, a obra de
George Orwell passou a ter um lugar permanente no currículo escolar tanto de
países como a Inglaterra quanto, por vezes, do Brasil. A presença de um partido
trabalhista que utiliza símbolos tais como a estrela de cinco pontas e a
bandeira vermelha também tem motivado comparações e aproximações da obra de
Orwell com a nossa realidade atual.
Orwell foi elogiado como um
gênio literário, um talento que combinou talento e princípios: o continuador da
tradição de sátira de Swift e outros. Por vezes, foi até comparado com um santo
(BRAR, 2012).
O que ocorre é que os
estudantes chegam a ler Revolução dos
Bichos sem nenhuma ideia dos eventos nos quais a narrativa foi baseada.
Embora seja elogiado como uma grande obra de arte, uma fábula sobre
totalitarismo em geral, as questões das avaliações sempre referem-se aos
eventos da revolução russa.
O que é avaliado, afinal, é
a habilidade de regurgitar clichês da Guerra Fria. A narrativa só funciona se o
leitor entender e aceitar as conclusões que Orwell está tentando demonstrar
desde o começo da novela. No entanto, Orwell não tem, como Swift, humor e
paixão. O que Orwell tenta provar e o que leitor tem que aceitar é que em
política, as pessoas não são melhores do que animais. Os dominadores
tradicionais podem ser ruins, mas tire-os e uma nova tirania irá ocupar o
lugar. Essa é a premissa da qual a fábula parte (BRAR, 2012).
Na prática, a fábula é usada
para propósitos políticos pelo imperialismo, seguindo o modelo de Trotsky de
pretensamente defender a Revolução de Outubro. Orwell protestou contra a
corrupção dos ideais do comunismo na União Soviética de Stálin. Então, tendo
lido apenas Revolução dos Bichos, as pessoas sentem-se bem equipadas para
tornarem-se “experts” a respeito da União Soviética e pontificar sobre a
degeneração dos ideais da revolução russa a partir de qualquer meio ou
plataforma (BRAR, 2012).
Muitos estudos ensinam
didaticamente aquilo que o estudante tem que pensar sobre a narrativa. A
consequência é que esse ensino modela as respostas em seus exames. Esses livros
didáticos são mais candidamente anticomunistas do que o próprio Orwell em seus
textos (BRAR, 2012).
Em livros didáticos ingleses
do passado, Revolução dos Bichos não
era apresentado diretamente como um texto anticomunista, mas isso passou a
ocorrer a partir de livros didáticos ingleses dos anos 90 (BRAR, 2012).
Anteriormente, obviamente
constrangidos pelas mentiras explícitas e alegações sem fundamento, os livros
didáticos diziam para o leitor ler a história como um texto a respeito das
ditaduras em geral. O fato de que as gerações que viveram a guerra estão agora
muito longe da escola auxilia a entender isso, mas também pode-se dizer que,
com ou sem Guerra Fria, o comunismo ainda é uma ameaça. Observe-se, então, o
livro didático inglês York Notes e sua versão a respeito dos propósitos da
narrativa de Orwell e sua versão da história:
O comunismo foi
fortemente influenciado pelas ideias de Karl Marx, que acreditava que a vida
poderia ser explicada em termos econômicos e sociais. A rica classe capitalista
explorava o proletariado pobre. E essa situação poderia ser revertida pela
revolução. Muitas das ideias de Marx estão presentes na fala do Major no
capítulo I
(York Notes, Animal Farm, Wanda Opalinska: 1997, London, p.12, apud: BRAR, 2012)
Note-se, então, que a teoria
de Marx é vista como uma ideia fabricada pelo cérebro dele, sem nenhuma relação
com a realidade concreta ou prova válida advindo do mundo real. O uso do
passado é para dar a ideia de que o capitalismo não mais age dessa forma. Sendo
assim, o uso de terror por Napoleão é associado ao uso do terror por Stálin
nesse mesmo livro didático (BRAR, 2012).
Em A Revolução dos Bichos há um contraponto binário e bem claro entre
Trotsky e Stálin: Napoleão, que é Stálin, é rude, tirânico, vaidoso, hipócrita,
feio. Bola de Neve é visto como jovem, bonito, modernizador, inovador,
brilhante estrategista, idealista. Há, então, um certo corporativismo
trotsquista em aceitar esse tipo de contraposição binária na arte de Orwell sem
criticá-lo. E isso tem acontecido repetidamente nesses últimos cinquenta anos.
O que diz o Major, cujos ensinamentos seriam supostamente os de Marx, conforme
a autora dos livros didáticos ingleses? Leiamos:
Homem é único real
inimigo que temos. Remova o homem de cena e a raiz da fome e do trabalho
forçado serão abolidos para sempre. Não há argumento que te possa te fazer
pensar de forma diferente. Nunca se lembre quando te dizem que o homem e os
animais tem um interesse comum, e que a prosperidade de um é a prosperidade dos
outros. Isso são mentiras
(ORWELL, 2007, p. 24).
Não se pode, portanto,
igualar esse falatório com as teorias de Marx em sã consciência. Claro que
homem e animais têm interesses em comum. Orwell colocou deliberadamente o
marxismo sob uma luz absurda igualando-o com os devaneios do Major. Marxismo é
apresentado como uma teoria de idealismo ingênuo, que na prática leva uma
tirania cínica (BRAR, 2012).
A principal assertiva da
Fazenda Modelo, portanto, parece ser que homens não são melhores do que animais
e que a “natureza humana” decide tudo. Algumas pessoas são nascidas para
comandar e outras para serem objeto dessas primeiras.
Todo esforço para mudar vai
sempre levar para algo pior, então devemos ser gratos por ter o que temos.
Infelizmente para Orwell, há falhas nesse plano. Ele usou espécies diferentes
para representar diferentes classes. No entanto, alguns animais são mais
inteligentes, rápidos, fortes que os outros, assim como outros acabam sendo
mais fracos. No entanto, a estrutura de classe não é reflexo das diferenças
naturais (BRAR, 2012).
A humanidade é uma espécie
só. Todas as formas de justificar o domínio da classe dominante somente porque
ela é mais inteligente e mais preparada, enquanto os pobres são mais tolos e
preguiçosos, é o pior lixo reacionário, algo como o pensamento nazista (BRAR,
2012).
O argumento de Revolução dos
Bichos é que o socialismo não oferece às pessoas mais esperança do que o
capitalismo. As pessoas de boa fé serão as primeiras a serem traídas e então
conduzidas pelas forças que os seres humanos têm em comum com os animais.
O capitalismo pelo menos
deixa as bestas e a animalidade aprisionadas. Ele é ruim, mas pode ser benigno
ocasionalmente. O capitalismo é, no final das contas, menos mal. Isso é a
orientação que move toda a fábula Revolução
dos Bichos (BRAR, 2012).
No entanto, é preciso
pontuar que não se trata do capitalismo somente, mas do imperialismo. Sendo
assim, se o capitalismo na Inglaterra parece ser benigno de certo modo, o fato
é que um setor dos operários desta nação foram providos com os superlucros
extraídos das nações oprimidas. Orwell trabalhou para a polícia birmanesa e
deveria saber exatamente quão benigno era o capitalismo para as colônias
britânicas.
Orwell, sem nunca ter ido à
Rússia e baseando-se somente em jornais e livros, julgou-se na posição de poder
apontar quem traiu o socialismo. Revolução dos Bichos também entra em detalhes
sobre o socialismo. Não se sabe ao certo se Orwell não tinha conhecimento dos
princípios do marxismo-leninismo que ele aparentemente pretendia defender
(BRAR, 2012).
Orwell também não ser um
profundo conhecedor do jogo político, pois desejou publicar Revolução dos
Bichos em pleno ano de 1943, justamente quando o futuro da humanidade estava
sendo decidido na União Soviética, juntamente com todo o sacrifício em
Stalingrado. Editor após editor rejeitou o livro, até que a guerra acabou e o
uso do texto como arma na Guerra Fria foi reconhecido. O livro foi lido como o
livro de um ex-socialista exorcizando seus fantasmas (BRAR, 2012).
Pode-se dizer que o sucesso
de Orwell não é tanto devido ao seu ideário supostamente socialista, mas pela
sua intenção de desmistificar a União Soviética. Sabe-se hoje que os serviços
de inteligência britânicos promoveram a publicação do livro em países como a
Arábia Saudita, onde havia forte militância contra o imperialismo, ameaçando o
fornecimento de petróleo (BRAR, 2012).
Hoje pode-se dizer que não
só Orwell, mas também escritores conhecidos como Bertrand Russell, Stephen
Spender e Arthur Koestler disseminaram desinformação sobre a União Soviética e
a Europa Oriental. Se a imagem de Stálin descrita por Orwell correspondesse à
realidade, ele teria se tornado o queridinho da burguesia imperialista, teria
destruído os princípios revolucionários e a Rússia teria sido sufocada pelo
imperialismo, pois teria afundado sob a ditadura de um grupo de cínicos
dominadores. A Rússia de Stálin teria sido sufocada pelo imperialismo, acaso
fosse assim (BRAR, 2012).
É precisamente o fato de que
a verdade sobre a URSS não corresponde à imagem pintada por Orwell que ela
coloca uma ameaça tão grande ao imperialismo. Isso também explica o fato de que
a burguesia recomenda a leitura das novelas assustadoras de Orwell para os
estudantes mundo afora (BRAR, 2012).
CONCLUSÃO
A
Revolução dos Bichos é uma fábula política e já teve várias releituras
críticas. Uma de suas leituras é de que ela simboliza o autoritarismo em geral.
Uma outra possível análise: o livro seria uma parábola sobre a história da
União Soviética, utilizando, então, uma determinada narrativa sobre ela (e que
identificamos em A Revolução Traída,
de Leon Trotsky).
O texto Fazenda Modelo, de
autoria de Chico Buarque, inspirou-se em A Revolução dos Bichos para criticar a
ditadura militar brasileira, antevendo sua queda. Essa leitura indica que seria
possível escrever uma fábula genérica contra todo tipo de totalitarismo – e
parece ser essa a leitura de Buarque, uma vez que ele inspirou-se em Revolução
dos Bichos e fez um texto que aponta em um sentido totalmente diferente, no
sentido de contestar não a revolução soviética, mas a ditadura militar
brasileira de 64.
A hipótese de que Revolução dos Bichos tratava de uma
narrativa sobre a União Soviética é reforçada pela narrativa elaborada em 1994
por Aluizio Alves Filho. Essa fábula, os
Bichos na Pós-Revolução, A Perereka, aproveita o fundo histórico que
presidiu ao fim da União Soviética para fazer uma fábula que aproveita o clima
de otimismo com a perestroika e o desfecho trágico no ano de 1991, com a
implosão da União Soviética, para traçar um paralelo ao que é descrito em A Revolução dos Bichos.
A leitura de Orwell na
escola também foi problematizada nesse estudo. Ele é lido como narrativa neutra
que é capaz de engajar e de politizar a juventude. Isso precisa ser questionado
e uma visão mais objetiva, que não repita, meramente, os clichês da Guerra Fria.
E essa fábula foi apresentada do ponto de vista trotsquista e antissoviético. O
texto constrói uma dicotomia pobre entre Stálin (“Napoleão”) e Trotsky (“Bola
de Neve”). Não há dúvidas de que o texto tomou claro partido por Trotsky e o
anticomunismo. No entanto, os estudiosos brasileiros nunca mostram isso, pelo contrário,
dão à hipótese da neutralidade da narrativa o caráter de verdade
inquestionável.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Alessandro de. CORREA, Girlânio Gomes. Revolução
dos Bichos: o poder midiático das mudanças. Disponível em: .
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Disponível em: . Acesso
em 16 de setembro de 2015.
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Marcelo Musa. A Volta dos Bichos. Disponível
em: <http://revistaepoc
a.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR61122-6011,00.html>. Acesso em 16 de
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Pós-Revolução ‘A Perereka’. Rio de Janeiro:
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Stalin e a luta pela reforma
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ORWELL,
G. A Revolução dos bichos. Trad.
por: Heitor Aquino Ferreira. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
REED,
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Rodrigo. Teoria da Lírica: Ninguém =
Ninguém Disponível em: <http://selet adeprosa.blogspot.com.br/2009/06/teoria-da-lirica-ninguem-ninguem.html>. Acesso em 17 de setembro de 2015.
Laerte Braga: um grande amor demora a morrer
Fui amigo de Laerte Braga durante vinte anos. Fui a um
Encontro Nacional de Filosofia em 1995 e fiquei fascinado por essa figura. Eu
queria fazer jornalismo antes de fazer Filosofia. Eu só ficava em sua
barraquinha, ouvindo suas histórias interessantíssimas.
Posteriormente, prosseguimos conversando em contatos
telefônicos e, partir dos anos 2000, pela internet. Eu fui a Juiz de Fora duas
vezes no ano de 2003. Na segunda vez, registrei uma entrevista com ele para a
revista de um amigo, onde eu tinha uma coluna, Passando em Revista, realizando uma de suas raríssimas entrevistas e talvez a única autobiográfica.
Expressei a ele inúmeras vezes a enorme injustiça que era ele não ter reunido
seus artigos em um livro. A partir de 1999, mais ou menos, passei a receber
seus artigos diariamente e, por vezes, mandava comentários. Isso prosseguiu por
e-mail e em facebook. E isso durante vinte anos.
Ele chegou a ter um jornal em Juiz de Fora, o chamado
Correio da Cidadania. Ele não teve pejo de me contar que, para fechar as contas
do jornal, teve que recorrer à mãe. Eu cheguei a contribuir comentando o texto O Príncipe da Moeda, do sociólogo
Gilberto Vasconcellos. Ele fez uma chamada assim: “Lúcio Emílio comenta” como
se eu fosse realmente um grande pensador. Eu sempre retribuí esses elogios,
sempre o reconheci como mestre e eu apenas um aprendiz. Ele foi pioneiro em
alertar para o suposto golpe contra o governo do PT, num artigo postado em meu
blog já em 2007 e que deu enorme repercussão, produzindo um manifesto de
intelectuais. Eu nunca aceitei esse discurso e continuo não aceitando, mas
nunca me afastei de Laerte e seus comentários ora argutos, ora tendentes a produzir versões convenientes a uma determinada vertente política. No entanto, pode-se
dizer que esse episódio em 2007 foi o primeiro grande teste que mostrou a
capacidade de viralização desse discurso.
O grande amor e grande projeto da vida de Laerte Braga
foi o Partido dos Trabalhadores. Mesmo por José Dirceu ele parecia, mesmo
depois de tudo, ainda ter carinho e confiança. Ele conciliava isso com a simpatia
pelo comunismo, deixando de lado a incompatibilidade entre PT e comunismo.
Laerte Braga era o homem da esquerda possível. Disse que o mundo institucional
está podre. Constatou que o governo Lula foi uma falácia, assim como o PT deu o
filé para a direita e os adereços para a esquerda. Agora, simplesmente, a
direita exigiu a retirada dos adereços e surgiu esse monstruoso governo Temer.
Ele foi simpatizante do PCB nos anos 50 e voltou ao partido no início dos anos
2000. Nesse novo casamento aberto com o PCB, ele continuava namorando o PT às
escondidas, utilizando seus dons para as artes amorosas. O PCB parece que
tolerava isso muito bem, pois até o indicou para candidato a prefeito de Juiz
de Fora, um cargo majoritário, afinal. Foi extremamente crítico ao PT nos anos
90 e início dos anos 2000, mas na derrocada agora a partir de 2013 resolveu
compensar e ser extremamente leniente –e nisso há um sentido que aponta sua
dialética muito particular. Havia muito disso nele. Nos anos 90 para 2000,
minha namorada de então, uma jornalista, lia os textos dele e achava hilário o
contraste entre os comentários críticos frios e ácidos sobre a sociedade
brasileira e a assinatura melosa que ele utilizava e mandava aos que dele recebiam ao final de seus
textos: “beijos carinhosos de quem te ama”.
Ele
contava que os comunistas, em seus tempos de juventude, eram muito atrasados,
distribuíam balinhas e refresco e faziam festas caretas, enquanto existiam
reuniões muito mais divertidas em casas de gente mais “prá frente”, onde se
ouvia jazz, bebida alcóolica e o
comportamento sexual era muito mais liberado. Ele também registrava a oposição
de seu pai à sua aproximação em relação ao PCB. Ele foi profundamente marcado
pela crise de Suez de 56, quando as grandes potências aliadas a Israel quiseram
sufocar o Egito do nacionalista Nasser. Isso marcou-o profundamente e fez com
que guardasse grandes esperanças em quem se opunha ao imperialismo
norte-americano, tais como Putin e Ahmadinejad. Em sua última
mensagem, no meu aniversário, chamou-me de grande pensador e se disse com
saudade de nossas conversas. Eu também vou sentir, mas esse homem não morrerá
jamais enquanto eu viver. Lembrarei sempre dele.
Camarada
Laerte Braga, presente!
Saudades eternas!
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