O
Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão
O convite
do primo Jerônimo foi quase uma intimação:
--Tu vai passar uma semana
comigo na Cruz das Dores. Tem juriti, capivara, raposa e tamanduá bandeira,
quando dava sopa dava até pena.
Jerônimo queria consolar-me com a carabina. A pontaria. O
disparo certeiro. Ou a cartucheira esparramando chumbo em cima das codornas. Os
perdigueiros na amarração. O cheiro do capim molambo. A reiva orvalhada. A
lama. Os mosquitos. Carrapatos. Esterco de gado. O curral exalando a farelo de
cana. O Quinca, o vaqueiro velho, contador de histórias. Eu não precisava de
melhores argumentos. Aqui é ar condicionado. Poltrona reclinável. Gás
carbônico. Papelório. Tapetes, Elevador, Reuniões, Poluição. Horários.
Computador eletrônico. Gravata. E coisas piores. Acusam meu filho, meu
herdeiro, de furto e corrupção. Estou curtindo a desonra. Sinto fortes dores na
nuca, queimação no estômago, taquicardia, só de remover estas misérias. Na rua
ando cabisbaixo, uma carga de chumbo. Um molambo de pernas. Arrasto amargamente
a maledicência, os risos mal disfarçados e a ironia dos amigos.
--Vou. Mas quero sair daqui a cavalo, bem montado, de bota,
panamá e espora.
Jerônimo redargüiu “que o trato estava feito”. “Que se o
amigo ia montado, ele próprio não se furtava ao dever de ir também montado”.
Dois dias depois, mal nascia o sol os dois cavaleiros cortavam a cidade de
ponta a ponta. Os transeuntes paravam e julgavam-nos dementes. Bang-bang. Gary
e Roy Rodgers. Um deles gritou:
--Que boniteza, hein, seu
Guilherme!
--Não é boniteza, não,
caramba, é precisão!
II
Meu avó, ao falecer
recomendou que a bengala dele não podia ser vendida, nem doada, nem emprestada,
nem colocada atrás da porta. Era uma linda bengala de marfim, marchetada com pedras
semi-preciosas. No cabo havia inscrições misteriosas. Mas ninguém ligava
importância a tal relíquia. Depois da morte do velho, ela andava jogada nos
cantos, nas mãos dos meninos e até no lixo já estivera,
III
O cavalo trotava. Quando o
pelo começou a se molhar debaixo dos arreios, avistamos, na encosta da
montanha, um casarão. Era a fazenda. Jerônimo esticou o dedo e informou:
--Ei-la. Foi construída
ainda no século XVII.
Depois mostrou-me antigas
dragas, bateias e montes de cascalho, abrigos de pedra semi-destruídos.
Apontando para o riacho borbulhante:
--Já saiu muito diamante
desses entulhos...
Subimos pela vereda que
serpenteava, em volteios alucinantes e perambeiras. A passarada punha-se em
pânico. Canários. Curiós. Sabiás. Pica-paus. Vencíamos sem dificuldade a erva
cidreira que orlava o caminho. Um homem veio correndo. Reconheci seu porte
ereto, o nariz adunco avermelhado. Chapéu de couro quebrado na testa. Dispôs-se
a abrir-nos a porteira:
De meu avô tivesse razão de
ser. Recusava-me a crer nos poderes sobrenaturais da bengala. Por isso, vi
quando a empregada colocou a bengala atrás da porta. Não a repreendi. Afinal,
Teresa estava bem intencionada. Ela transgredia um preceito de meu avô, mas era
por precisão e não por boniteza.
--Deixa que eu mesmo abro,
Quinca!
--Só por boniteza, seu
Guilherme?
--Não. Por precisão, meu
velho!
IV
Minha
nova serviçal, a Teresa, tinha mania de ordem e limpeza. Arranjou um lugar para
tudo. A máquina de escrever. Os sapatos. Os vidros de remédio. Até o gato se
acomodou num canto determinado. Vi quando Teresa colocou a bengala atrás da
porta. Eu não queria acreditar que a recomendação.
Assim que apeei, pedi ao Quinca para contar um caso dos
bons, um caso qualquer, mas de boa intriga e bom desfecho.
--Assim, de supetão não tem
jeito não, uai. O caso vai saindo é no meio da conversa. Desfila que nem
novelo. Palavra puxa palavra.
Com uma das mãos no montante da porteira, Quinca quebrou o
chapéu de couro. Depois refestelou-se no mourão da cerca e começou a contar.
--Essa porteira, para servir
de exemplo, vosmecê acha que esta porteira cerca marruco? Perguntou o contador.
--Cerca sim, uai.
--Vosmecê acha que esta
porteira cerca um cardume de elefante?
--Cerca sim, uai, isso é
pau-ferro no cerne, um esteio grosso desse jeito cerca até o diabo.
--Pois é adonde eu queria
chegar. Isso aí não cercou o alazão do Coronel Pereira não. O Coronel passou
por aqui sem abrir a porteira. Ninguém sabe se foi por baixo, se foi no meio ou
se foi por riba. Eu vi e tem mais gente que viu.
O Coronel Pereira era um
homem valente. Que já experimentara a vida em tudo quanto é circunstância.
Ponta de faca. Duelo. Espingarda. Sertão. Febre. Cobra. Mulher casada. Tocaia.
Veneno. Medo era coisa que nunca sentira, nem sabia de que jeito era, se fazia
cócegas ou se doía.
--Nesse mundo não tem nada
para me fazer frente. E quem vai me provar muito bem provado que fora do mundo
tem essas asneiras que o vigário fica ensinando? Será que o Padre Nazário já
viu o tal de São Tomé? Eu cá queria topar uma parada era com o diabo em pessoa.
A mulher, muito beata, tremia e benzia-se, pedindo perdão
pelas blasfêmias do marido.
--Sossega Felisbina. Tu tá
com maleita, peste?
Coronel Pereira tangia mil
cabeças de gado, duas mil e até mais, por este sertão sem eira nem beira. E ia
só com três peões. Saía de Cuiabá, passava em Tabatinga e varava o Sertão da
Farinha Podre, sem nenhuma rês de baixa, sem nenhum arranhão.
--Quero topar paradas mesmo
é com esse tal de diabo. Vou provar que esse bicho, se existe, não dá pro
começo.
VII
O Coronel tinha uma bengala.
Aqui ninguém nunca viu, mas dizem que era uma linda bengala de marfim,
marchetada com pedras precisosas. No cabo havia inscrições misteriosas. Quando
saía, recomendava muito a Filisbina:
--Tá vendo essa bengala
aqui, mulher?
--Tô sim, sinhô!
--Pois é. Não vende, não dá,
não empresta e nem coloca ela atrás da porta.
--Sim sinhô, meu sinhô!
Só então montava e saía.
VIII
Fazia já uma semana que o
Coronel conduzia mil e quinhentas cabeças para Cuiabá. Assim que atravessou o
Paranaíba morreu fulminado um peão. Caiu do cavalo gemendo e fedendo chifre
queimado. Depois sumiu o peão e o cavalo. O Coronel prometeu:
--Se a maldição desse pobre
aparece, eu toro no tiro. Se for macho, mesmo, que apareça!
Seguiu viagem. Duas léguas
adiante arranchou. A noite ia alta, quando um fogaréu lambeu os dois peões de
resto. O Coronel ainda achou natural. Carregou a carabina e esperou, todavia,
desesperou e dormiu.
IX
No raiar do dia, continuou a
marcha sozinho, sem espanto. “E só esta peste aparecer que toro no tiro”. Foi
ai que ele viu que estava no meio de um brejo e a boiada desaparecia no barro.
Mourejou três dias em seguida. E conseguiu colocar a boiada em terra firme sem
perder uma novilha sequer. Mas, quando ele próprio foi atravessar o lodaçal, o
alazão começou a afundar. E quanto mais mexia, mais o pangaré chafurdava. O
coronel viu então um preto, forte e rijo, fumando sossegadamente no meio da
boiada. Berrou, pois, o Pereira:
--Ô negro diabo, vem me
ajudar aqui!!!
Mal pronunciou o nome diabo,
foi trovão, pólvora queimada, enxofre, cobras, labaredas, chifre queimado. O
Coronel estava frente a frente com o demo. A carabina negou fogo. Ele então
percebeu que só havia uma explicação: a bengala devia estar atrás da porta, e
mugiu:
_Filisbina, tira a bengala
detrás da porta, peste miserável!
O Pereira olhou e não viu
mais ninguém. Entretanto, o alazão estourou que não havia brida, nem freio, nem
chibata, nem espora, nem diabo que o fizesse parar. Passou pela porteira de
pau-ferro com o Coronel por cima, ninguém sabe como. Um peão viu aquilo,
gritou:
--Tá fazendo boniteza, hein,
Coronel?
--Boniteza não, cabra. Isso
é precisão.
E o cavalo só estacou quando
pôs os bofes para fora. Estrompou e morreu.
X
--Escuta, Quinca, você falou
em bengala atrás da porta? Será que entendi bem? Você falou que a Felisbina
escutou o grito do Coronel, quando ele estava lá na divisa de Goiás?
--É sim, doutor.
Fiquei pensativo e nervoso.
Então me veio uma súbita vontade de gritar e, com efeito, gritei:
--Teresa, tira a bengala de
trás da porta, peste miserável!
XI
Voltei para a cidade. Dei ao
Jerônimo uma desculpa qualquer: “Não estou passando bem”. “Preciso ver uns
negócios”. Quando entrei a bengala estava sobre a mesa. Teresa veio chegando:
--Patrão, fiz como o senhor
mandou, mas acho que esta bengala não tem nenhuma precisão de ficar em cima da
mesa.
--Se não tem precisão, deve
ficar por boniteza.
Na mesma noite os amigos vieram me dizer que meu filho fora
julgado inocente. Erro do computador e da contabilidade. Que, como reparo de
danos, eu fora promovido a Diretor Presidente.
Quanto à bengala, ainda fico em dúvida, mas não saio de casa
sem recomendar:
--Não venda, não dê, não
empreste e nem coloque a bengala atrás da porta. Sapo quando não pula por
boniteza, pula por precaução.
Lúcio Emílio do Espírito
Santo