quinta-feira, 27 de julho de 2017

Fina Prosa Crítica: Uma Carta



Fina Prosa Crítica: O Paulo Lins de Hoje é o Tito Batini de Amanhã?
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

Li atentamente, no número de dezembro de 2006 da Revista piauí, o ensaio de Roberto Schwarz a respeito do livro de Gilda Mello e Souza. Reconheço que Schwarz é um grande crítico literário.
            Para comentar um artigo sobre um livro que, por sua vez, trata de outros filmes e livros, fica-se numa situação complicada, afastado das fontes primárias. Meu ponto não é nem se o comentário chegou a ser humilhante de tão bom. O fato que me chamou a atenção foi o comentário sobre Exercícios de Leitura, exercícios esses que diminuem determinados filmes do Cinema Novo, ainda que a intenção não seja essa, explicitamente. Até esse momento do artigo, eu estava gostando, pois não vejo problema que alguém trate de moda sem falar em nada que esteja em moda na atualidade.
            Não concordo que no mesmo artigo fale-se mal de O Desafio e se elogie Terra em Transe. Existem amplas relações de continuidade entre os dois filmes e que aparentemente não foram estabelecidas por Gilda Mello e Souza em 1981.
Vendo ambos os filmes, pode-se notar que o personagem de Paulo Martins de Terra em Transe está intimamente ligado ao Marcelo, o personagem de Vianinha em O Desafio. Um continua o outro, num contexto diferente; no quarto de Marcelo, em O Desafio, aparece um cartaz do filme de Glauber Deus e o Diabo na Terra do Sol. Paulo é Marcelo radicalizado dois anos depois, compreendendo um pouco melhor os acontecimentos que para Marcelo ainda eram incompreensíveis, pois, de dentro da fossa aberta em 1964, Marcelo ainda via tudo escuro. Pode-se dizer que ambos permaneceram ainda muito ligados ao mundo burguês que verbalmente ambicionam destruir. Paulo Martins sofre e agoniza, atormentado pela figura de Porfírio Diaz, o traiçoeiro líder político que acaba de dar o golpe em Eldorado, e não pelo fraco Vieira, incapaz de decisões nos momentos oportunos, e destinado, portanto, à lata de lixo da História. Isso num momento em que o presidente Lula, um misto do operário Jerônimo e do pragmático Vieira, proclama a quatro ventos estar aguardando o julgamento da História.
            Mas deixemos a política de hoje em dia e voltemos para a fina prosa crítica: Gilda trabalha com a premissa de que em Terra em Transe não há esse mesmo dilaceramento que em O Desafio, por achá-lo melhor resolvido ao descrever o episódio do comício com uma visão grotesca e contraditória do povo. Ela encontra para essas imagens nobres tradições pictóricas, enquanto em O Desafio o diálogo seria excessivo, e o conflito, uma falha ruim e inconsciente. No entanto, o conflito entre o que é dito e o que é mostrado é tanto consciente quanto tematizado, em ambos os filmes. Ela deixa de lado, em Terra em Transe, os bailes no palácio de Diaz, quando, na sala com Danuza e o Peri da ópera, entre taças quebradas e síncopes de jazz, Paulo Martins velejava os chamados mares do não.
            Saraceni respondeu a várias dessas críticas a seu filme em Por Dentro do Cinema Novo, Minha Viagem, uma autobiografia datada de 1993. Por exemplo: “Pode-se objetar, talvez, que a dialogação é excessiva, e que nem sempre as falas são válidas como falas cinematográficas; mas, apesar disso, não há no filme uma só frase que não tenha validade como idéia, como captação de um momento histórico recente, como comportamento das personagens em relação a seu meio e a sua classe” (p.198). “Aos que acusam o filme de superfalado, poderíamos retrucar acusando-o, também, de supersilencioso. Se o filme tem, praticamente, dois personagens e seu tema é o desentendimento entre um homem e uma mulher, em função de uma circunstância política, o diálogo é a expressão necessária desse desentendimento (...). A conversa é descontínua e o silêncio, além de imantar impressionisticamente a ambiência, do conteúdo das falas, funciona ao mesmo tempo como elemento de contraste e de ênfase dos diálogos” (p. 207). Não se pode dizer também que exista dubiedade político-ideológica nesse filme: dentro dele há um close de Maria Betânia falando das estatísticas dos nordestinos que fugiam da fome e da seca para o Sul do país, no espetáculo Opinião; no final, o personagem recusa relacionar-se com o escritor cínico e sua mulher, e o filme se encerra ao som de uma letra de Gianfrancesco Guarnieri em parceria com Bertold Brecht, musicada por Edu Lobo, na peça Arena Conta Zumbi. Que não seja reeditada uma crítica a O Desafio sem levar em conta essas respostas, portanto.
Para encerrar esse comentário a respeito de Fina Prosa Crítica falando sobre algo em moda na atualidade, lembro o último grande feito de Roberto Schwarz: ele indicou para a publicação, pela Companhia das Letras, o romance Cidade de Deus, do ex-favelado Paulo Lins, um romance violento, com pouco humor e longo; tratava-se, no mais, de um romancista iniciante, embora já acadêmico experiente na área de Ciências Sociais. A indicação foi claramente decisiva para sua publicação.
            O romance mostrou-se um grande sucesso, vindo a tornar-se um filme igualmente bem sucedido em termos de público e crítica, o que é raro no país; ainda chegou a concorrer como melhor filme estrangeiro em Hollywood, tendo perdido a competição, mas ganhou uma boa possibilidade de divulgação em termos mundiais. Creio que dificilmente algum outro crítico brasileiro alcançou tão alto triunfo, tão grandes conseqüências em uma aposta alta como essa.
            Faço, então, uma associação lembrando um “caso” literário: Antonio Candido, mestre de Schwarz, também indicou pelo menos um autor bem sucedido no passado: Tito Batini. Tratava-se do livro de alguém de origem humilde, um “ferroviário que queria escrever”, como dele disse Oswald. Oswald de Andrade desentendeu-se com Batini, julgando sua obra ainda imatura, e Candido acusou Oswald de criticar sem analisar. No entanto, seu tempo o contrariou: Batini ganhou inúmeras críticas favoráveis, foi traduzido e incensado, como registrou Oswald em Ponta de Lança: “O seu volume foi apadrinhado pelo guerrilheiro Rubem Braga, premiado por Diretrizes, traduzido pelo sr. Putnam...Se houvesse prêmio Nobel, ele não escapava!”
A propósito do tipo de iniciativa crítica que Candido fez no passado, e que Schwarz realiza hoje em dia, deixo a pergunta: quem lê, hoje, Tito Batini? Quem sabe quem foi ele? Por que Candido e Schwarz, que são vivos e ainda produzem, não escrevem ensaios sobre essa figura? Será esse o destino de Paulo Lins?
Bom, por enquanto não acho importante alongar mais essa carta. Entre a esperança e a ânsia, aguardarei que estejamos comentando avidamente Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, lá pelo ano de 2045, assim como estamos discutindo O Desafio quarenta e dois anos depois de seu lançamento.