Lucia de
Lamermoor e Madame Bovary
Lúcio Jr.
RESUMO
Esse artigo busca esclarecer a relação existente entre a ópera
Lucia de Lammermoor e o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Compositor
consagrado e popular, Donizetti era muito apreciado. No romance, Ema Bovary,
personagem de Flaubert, identifica-se com Lucia de Lammermoor, personagem inspirada
na novela de Walter Scott. Lucia se vê noiva de Artur, pressionada pela
família, mas é assediada pelo homem que ama, Edgard, mas ao qual não pode se
unir, pois Edgardo é de um clã inimigo de sua família. Lucia é observada por
Ema e surge um efeito de espelhamento. Ema, ao acompanhar o drama da “noiva
louca” , reflete que não deveria ter
casado com Charles, o médico que a levou à ópera. Ao encontrar um antigo amor
ali mesmo no teatro, um rapaz chamado Léon, decide trair Charles, o que ela
tinha feito anteriormente com um amor fracassado, Rodolfo. Pode-se dizer que
Lucia de Lammermoor influencia a personagem Ema Bovary a entrar novamente em
devaneio e ir buscar na vida aquilo com o que ela teve contato, primeiro, em
romances açucarados. Analisou-se, aqui, a presença da metalinguagem: a ópera
Lucia de Lammermoor apareceu como uma peça dentro da peça.
Palavras-chave:
romance, ópera, Madame Bovary, adultério, Donizetti
Introdução
Nesse artigo vamos analisar
a presença da ópera Lucia de Lamermoor na obra de Flaubert. Nossa hipótese é
que essa presença não é casual e sim um exercício de metalinguagem por parte de
Flaubert. Assim como em Hamlet, quando Shakespeare mostra o rei Cláudio vendo
uma peça teatral encomendada por Hamlet e que interfere no enredo (Hamlet vê
que aquilo que o fantasma de seu pai lhe disse é verdade, pois Cláudio fica
atormentado e vai rezar), há uma peça dentro da peça, no caso, uma obra de arte
dentro de outra obra de arte. Ao invés do caso ser fortuito, casual, como
aparenta em um olhar apressado, pode-se dizer quea escolha dessa narrativa foi
minuciosamente realizada para poder interagir com o enredo do romance.
O romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), não é
habitualmente analisado em sua relação com a música. Essa passagem tratando da
ópera aparentemente foi casual, pois não foi uma passagem recorrente, não
retornou novamente na narrativa. No entanto, ele pode ser analisada como
amostra da arte sofisticada de Flaubert, imbricando uma narrativa em outra.
Flaubert não foi
reconhecido em sua época como é hoje. Filho de um cirurgião, ele nasceu em
Croisset, perto de Rouen, cidade onde ele ambientou Madame de Bovary. Flaubert
chegou a estudar direito, mas abandonou os estudos, desiludido com os
acontecimentos em torno da revolução liberal de 1848. Desde jovem, Flaubert foi
tomado de entusiasmo pela poesia, pelas reconstituições históricas e pelos
romances.
Esse romance lhe valeu um
processo por ofensa à moral pública. O próprio Flaubert viveu um amor
impossível por Elisa Schlesinger, casada, quinze anos mais velha e mãe de um
filho. Ele inspirou Emma Bovary nesse seu amor impossível. Por isso, quem sabe,
a precisão dos detalhes nesse romance. Ao ser interpelado, no processo, a
respeito de quem teria inspirado a personagem adúltera, Flaubert respondeu: “Madame
Bovary sou eu”. Segundo as análises mais recentes, o fato é que a publicação do
romance na Revue de Paris provocou a irritação da burguesia, que através de
seus representantes puniu o escritor. A obra é considerada uma depreciação
muito dura dos costumes burgueses e é sua obra mais famosa. O romance Madame
Bovary é um retrato da província francesa de seu tempo, assim como sua obra
mais famosa, um consagrado romance, um dos mais famosos clássicos da literatura
de todos os tempos. Hoje é de circulação universal.
1.1.
Lucia de Lamermoor, ópera de Donizetti
A ópera de Donizetti surge
no romance de Flaubert num determinado ponto, um ponto decisivo: Emma, esposa
de um médico, sonha com amores em romances açucarados, envolve-se com um amante
e termina abandonada por ele. Como resultado, ela tem uma crise nervosa, que é
tratada pelo marido médico, Charles. Para ajudar em seu reestabelecimento,
Charles a leva até o teatro em Paris, para ver a ópera de Donizetti, Lucia de
Lamermoor, inspirada na novela de Walter Scott A Noiva de Lammermoor, estreada
em Nápóles em 1835. No teatro, Emma se identifica com a ópera e seus desejos
renascem. Ela reencontra um velho amor, Rodolfo, deixa o marido vendo o final
da ópera e sai com Rodolfo, arranjando uma desculpa.
GaetanoDonizetti foi um dos
mais famosos compositores de ópera de seu tempo. No início do século dezenove,
a ópera era um gênero musical em alta, em plena expansão. Donizetti brilho
nesse período em que a ópera era basicamente sinônimo de ópera italiana, que
era a ópera que era tida como de qualidade e era aceita internacionalmente.
Donizetti aproveitou esse
período áureo e, junto de Bellini e Rossini, elaborou várias obras, tendo tido
grande demanda. A ópera italiana, no entanto, sofreu duros reveses em um curto
período de seis anos: Rossini aposentou-se aos trinta e sete anos e Bellini
morreu prematuramente. Verdi ainda não tinha idade para compor sua primeira
ópera, nesse período.
Assim,entre a morte de
Bellini e o sucesso de Verdi com Nabuco em 1842, Donizetti foi o grande astro
desse ambiente. Ele nasceu em Bergamo, em 1830, tendo obtido sucesso com uma
ópera inspirada na tragédia da rainha injustiçada Anna Bolena. Da noite para o
dia, Donizetti conseguiu comover por seu estilo pessoal e trágico e pelas melodias
comoventes: logo ele obteve sucesso internacional.
Compositor muito produtivo e em
tempo de alta demanda, Donizetti escreveu setenta óperas, das quais sessenta e
cinco chegaram até nós na forma completa. Os gêneros em que produzia eram:
cômico, trágico e quase sério. As óperas estreavam em Viena, iam para Londres,
depois São Petersburgo e Nova Orléans. A França foi praticamente um país
conquistado por ele, chegando a estrear seis óperas em uma temporada só em
Paris. As casas de ópera foram chamadas, então, de casas de ópera Donizetti
pelo compositor Berlioz.
O fato de que a ópera de Donizetti
também apareceu no romance de Flaubert é também parte disso, desse grande
sucesso de público. Emma se identifica com o amor de Lucia, como grande parte
do público da época, que de fato recebia essa ópera assim, como ardor e
identificação notáveis. De fato, era comum que o público “se entregasse ao
fluxo das melodias” e sentisse “todo o seu ser vibrar como se os arcos do
violino estivesse desenhado sobre seus nervos”. Lucia queria amor, queria asas.
Emma também queria fugir da vida rotineira e fugir num abraço apaixonado como o
de seus heróis de romances açucarados (BLUM, 2013).
Donizetti é ímpar entre os
compositores por ter sido bastante generoso: ao contrário da maioria, não
demonstrou hostilidade ou antipatia declarada quanto aos colegas, nem mesmo ao
seu principal rival, Bellini. O jovem Verdi foi estimulado por Donizetti, assim
como o estilo de Verdi foi influenciado por ele (BLUM, 2013).
No início de sua carreira, Donizetti
esteve ligado ao Teatro San Carlo, em Nápoles. Nesse período, um rei devoto
impunha censura e as tramas acabavam limitadas, reduzidas a bobagens. O
compositor respirou aliviado quando foi chamado para compor óperas em Paris e
Viena (BLUM, 2013).
Melodramático, romântico, Donizetti
se dava bem no gênero melodrama, que era o meio que ele julgava mais agradável.
Ele sondava as profundezas emocionais, assim como favorecia contos amorosos,
violentos e com desfechos trágicos. A partir de obras como “O Assédio de
Calais”, “Maria de Rohan” e “Anna Bolena, LucreciaBorgia”, assim como “La
Favorita”, Donizetti fez com que a forma vivenciasse um relaxamento
progressivo, assim como das estruturas tradicionais, nas árias mais dramáticas
ele é mais pesado, alterando inesperadamente a harmonia (BLUM, 2013).
1.2.
Uma obra dentro da obra: a metalinguagem
Lucia diLamermoor, ópera de
Donizetti, se impôs como obra emblemáticas do romantismo. Será aqui estudada em
sua relação com a obra Madame Bovary, romance de Gustave Flaubert.
Em Madame Bovary, é
sensibilizada pela heroína da ópera Lucia de Lamermoor de Donizetti que
Flaubert decide continuar com seu jovem amante. Existe uma relação entre Emma e
Lucia. A ópera está inserida nesse romance.
A ópera ocupa em Madame
Bovary um lugar de qualquer modo, secundário no romance, um capítulo entre os
trinta e cinco. A cena se situa no capítulo 15 da segunda parte. Nessa altura
desse romance, o campo dos possíveis está aberto. personagem Emma começa a
remeter à ligação perigosa entre Rodolfo e essa “fugida” de Rouen com seu
marido, Charles, elepode soar como um novo recomeço para o casal. Mas a forma
como Emma vive esta ópera faz essa perspectiva improvável. Emma se lembra do
romance de Walter Scott e que lhe permite e seguir o enigma.
Emma se identifica com um
ar corajoso. E se identifica com ela. Lucie que amor, ela demanda liberdade.
Emma, também desejosa, fugindo de sua vida, se sente envolver por ela. Note-se,
então, a ironia de Flaubert. Lucie sonha com um amor etéreo, então Emma se
envolve. Vem a seguir a cena do dueto e Edgar anuncia a Lucie sua saída pela
França. Emma reconhece as angústias que a faz sofrer. A voz da cantora lhe
parece a retenção da consciência. Não somente Emma se identifica com Lucie, mas
ele se relembra das preocupações que atingem a heroína, seus próprios
problemas. Edgar se torna Rodolfo e que, não chore como ele, não chore mais
como Edgar, a última noite, à luz da lua. Quantoa ele, deseja não compreender a
história. E de fato, é certo que as coisas não foram compreendidas.
Nisso, pouco a pouco, Emma
se desliga daquilo que passa sobre a cena, que trata do desespero amoroso. Ele
termina por adotar a opinião dos filistinos de Don Juan Hoffman, ou seja, os
burgueses como diria Flaubert: “a arte exagera”. Quando os cantores cantam ao
final do segundo ato, Emma identifica então o cantor Lagardy ao seu papel, Edgar.
Emma é então absorvida no homem pela ilusão do personagem. E ela imagina aquilo
que será sua vida em companhia do cantor. Ela é tomada de loucura, quando ela
imagina que o tenor está olhando para ela, ao final do segundo ato. Num jogo
teatral do romance, Charles reencontra Léon.
Quando o
terceiro ato começa, Emma não estará mais tão interessada no espetáculo, mas às
suas lembranças, e desejará partir. Depois de ter amado Edgar/Rodolfo, Emma
associa Lagardy com Léon. Mas Charles, lerdo que era, é envolvido pela música e
deseja continuar na ópera. Para ele, Lucie prometia uma tragédia, devido a seus
cabelos. É uma verdadeira sentença profética que proclama Charles nessa altura
da cena. A essa altura se pode entender melhor a arte de Flaubert. Nesse capítulo,
através da obra de Donizetti, ele expõe os problemas de seu próprio drama.
2. Lucia e Emma: um encontro
entre duas personagens
Flaubert realizou, dentro
de sua narrativa, o encontro de duas personagens: Lucia e Emma. Lucia de Lammermoor é um drama trágico com
libreto de Salvatore Cammarano. Cammarano adaptou livremente a novela de Walter
Scott, a Noiva de Lamermoor. O romance é marcado pelo interesse na cultura
escocesa, com sua mitologia que a Europa do século dezenove então estava descobrindo:
sua história violenta de guerras entre feudos e sua mitologia atraíam bastante.
A narrativa trata da frágil
Lucia, emocionalmente instável, aprisionada numa luta entre feudos, o de sua
família e o feudo de uma outra família, a dos Ravenswoods. A ação se passa nas
colinas de Lammermuir, Escócia (no libreto, Lammermoor).
Essa ópera fez tanto
sucesso que se tornou, junto com Dom Pasquale, a ópera mais executada de
Donizetti. Desde 1903 até 1972, esteve, exceto uma temporada ou outra, sempre
esteve em cartaz no Metropolitan Opera
em Nova York. Depois da II Guerra Mundial, essaópera esteve um pouco em baixa,
sendo considerada por alguns como uma ópera para treinar as sopranos em várias
tonalidades. Mesmo assim, não tardou para que sopranos talentosas como Maria
Callas e Joan Sutherland dessem a ela um novo colorido.
Na ópera, Lucia ama
Edgardo, mas por razões políticas, sua família quer e seprepara para que ela se
case com Arturo. Ela cede à família, mas Edgardo continua a assediá-la.
Pressionada pelos dois lados, tanto pela família quanto por Edgardo, Lucia
enlouquece e apunhala Arturo no dia de seu casamento, já noiva dele. Por isso
ela é a chamada “noiva louca”. A ópera não revela claramente se Lucia se envenenou,
mas dá a entender que estava morrendo. Ao final do romanceMadame Bovary, Emma se enreda em dívidas e complicações e termina
por cometer o suicídio. A cena em que Lucia enlouquece é a chamada “Cena da
Loucura”. A canção é “Il DolceSuono”. Essa passagem bastante famosa foi
celebrizada pela soprano Inva Mula no filme O
Quinto Elemento, numa cena onde aparece uma diva alien cantando com a voz
da soprano albanesa acima referida.
Na narrativa, Emma está
casada com o médico Charles, mas começou um romance com um amante, Rodolfo, mas
fracassou (ele a abandonou). Ao observar o drama de Lucia, Emma, que está se
recuperando de uma crise de nervosos e de uma recaída no misticismo, volta a
desejar um antigo amor, Léon (que vê no teatro, durante a ópera), passando logo
a seguir a envolver-se com ele.Como se pode ler em Madame Bovary:
Entusiasmou-se
desde a primeira cena. Prendia Lúcia nos braços, deixava-a, tomava-a de novo,
parecia desesperado; vinham-lhe acenos de cólera seguidos de desabafos
elegíacos de infinita doçura; e as notas partiam-lhe da garganta nua cheias de
soluços e beijos. Ema inclinava-se para vê-lo, as unhas enterradas no veludo do
camarote. Enchia o coração daquelas queixas melodiosas, que se vinham
harmonizar com o acompanhamento dos contrabaixos, como gritos de náufragos no
tumulto da procela. Reconhecia todos os anelamentos e angústias por que
estivera quase a morrer. A voz da cantora nada mais lhe era que o eco da
própria consciência; àquela ilusão que a empolgava, algo de sua própria vida.
No mundo, contudo, ninguém a amara de tal forma. Ele não chorava como Edgar, na
última noite, à luz da lua, quando diziam um ao outro: “até amanhã, até
amanhã”. A sala vibrou de aplausos. A cena foi bisada. Os dois amantes falavam
das flores na sua tumba, de juramentos, de exílio, de fatalidade, de
esperanças; e quando soltarm um último adeus, Ema não conteve um grito agudo,
que se foi misturar às vibrações dos últimos acordes.
--Por que estará aquele fidalgo a persegui-la –quis saber
Bovary.
--Não, não !—explica ela. –é seu amante.
--E, todavia, jura vingar-se da família dela, enquanto o outro,
o que surgiu há pouco, dizia: “Amo Lúcia, e creio que ela me ama”. Além disso,
saiu com o pai, de braço dado. Pois não era pai dela aquele sujeitinho feio com
pena de galo no chapéu? (FLAUBERT, 1979, p. 168)
Emma explica,
então, a Carlos que, desde o dueto recitativo em que Gilberto expôs a Ashton as
suas manobras, Carlos, mesmo vendo o anel nupcial que irá iludir Lucia, supôs
que se tratava de uma lembrança de amor enviada por Edgar. Assim, aí aparece a
metalinguagem da narrativa: o próprio marido traído por Emma não compreende o
que se passa, nem na ópera nem em sua vida. A narrativa de Flaubert deu a
entender que a música prejudicava a letra, impedindo e justificando que o
marido traído entendesse o que se passava. O romance, Emma via que Lúcia
avançava, apoiada em suas companheiras, uma coroa de floresde laranjeiras nos
cabelos, uma coroa, segundo a narrativa, mais branca que o cetim do vestido.
Edgar Lagardy, bramindo furioso, dominava com voz clara todas as outras vozes. Prossegue
a narrativa sobre a ópera em Madame Bovary:
Ashton lançava-lhe provocações homicidas; Lúcia soltava agudos
queixumes; Artur, mais longe, modulava sons médios; e o baixo profundo do
ministro ecoava tal um órgão, enquanto as vozes das mulheres, repetindo suas
palavras, continuavam deliciosamente em coro. Estavam todos na mesma linha,
gesticulando. E a raiva, a vingança, o ciúme, o terror, a misericórdia e a
estupefação brotavam ao mesmo tempo das bocas entreabertas. O namorado brandia
a espada nua; a gargantilha de rendas erguia-se-lhe com o movimento do peito, e
o homem andava da direita para a esquerda, fazendo tinir no palco as esporas
douradas de suas botas negras, enrugadas no tornozelo (FLAUBERT, 1979, P.169).
Na passagem acima, o narrador do texto de Flaubert, cuja prosa
adota o realismo crítico, parece tomado de espírito bastante crítico em relação
à obra de arte que ele está contemplando, que é bastante diversa da prosa de
Flaubert. Se essa prosa é precisa e sem muitos adjetivos, ela tende desaprovar,
claramente, a extravagante encenação da ópera, assim como seu estilo fora de
moda. Acima, a descrição de Flaubert incide sobre o famoso sexteto do segundo
ato, com sua linguagem precisa e econômica, contrastando com o exagerado e o
fausto da encenação. Mais adiante, se dá uma aproximação entre a narrativa de
Ema e a de Lucia. O narrador inclui um curioso “choque”, que é o momento em que
tenor, personagem, a olha. Aí temos uma construção que produz o efeito que
acontece quando colocamos um espelho diante do outro: o leitor olha Madame
Bovary que olha a ópera e é olhada pelo tenor:
Devia possuí-lo, pensava
Ema, um amor inesgotável, para derramar-se assim pela multidão, em tão grandes
eflúvios. Toas as suas veleidades deprimentes se desvaneciam na poesia do
papel, que a invadia; e, arrastada para o homem pela ilusão da personagem,
tentou imaginar a vida dele –aquela vida ruidosa, extraordinária, esplêndida,
que também ela poderia ter, se o destino o tivesse querido (...). Súbito,
porém, tomou-a uma loucura: o tenor olhava-a, não podia duvidar! Teve ímpetos
de correr para os braços dele, de refugiar-se em sua força, como na própria
encarnação do amor, de lhe bradar: rapta-me, leva-me; partamos! Para ti, só
para ti meus ardores todos, meus sonhos todos! (...) (FLAUBERT, 1979, p. 171 )
Até o momento referido
acima (quando encontrou seu amante na ópera), Ema estava envolvida no
espetáculo; dali por diante, ela se desinteressou. o marido não tinha conseguido
ver o amante na própria ópera (assim como na realidade). Antes, o marido não
tinha conseguido ver o amante. Dali por diante, Ema não ouviu mais nada. O coro
dos convidados, a cena de Ashton e do criado, o grande dueto em ré maior, tudo
se passou para ela muito longe, como se os instrumentos se houvessem tornado
menos sonoros e as personagens mais distantes. A dama tem os cabelos soltos e
isso promete ser trágico. Mas a cena da loucura não interessava a Ema; a
cantora parecia exagerada. No romance, comenta-se que o último ato era
admirável. No entanto, a Ema Bovary não ficou até o fim. Charles afirmou que
estava começando a gostar quando saiu. Quando ocorreu, em Lucia de Lammermoor,
a cena do casamento, Ema pensou que deveria ter resistido e não casado com
Charles, sempre identificando-se com a heroína e associando a ópera com sua
vida (COMPAGNON , 2001, P. 119).
A ópera Lucia de Lammermor
serve, em Madame Bovary, para criar um “clima” em que Ema, como Lucia, entra em
devaneio em busca do amor e se enreda em uma tragédia, perdendo o controle. O
final da vida de Donizetti, o compositor, aconteceu numa clínica hospitalar,
com ele enlouquecido pela sífilis. Diz a lenda que somente a cena da loucura de
Lucia de Lammermoor fazia com que o então distante e alienado compositor prestasse
atenção em música novamente (COMPAGNON,
2001, P. 119).
Na ópera, Lucia
aparece como um espelho do enredo de Madame Bovary. O marido traído não
reconhece a traição na peça nem na vida real. Ema identifica-se profundamente
com a angústia de Lucia de Lammermoor, que foi obrigada a casar-se. A seguir,
Ema encontra o próprio amante na peça e eles saem antes do último ato, junto
com Charles Bovary, o marido, que nada percebe. Ema se sente denunciada pelo
tenor, como esclarece o narrador de Madame Bovary, mas nada acontece e logo ela
retoma suas atitudes novamente.
Conclusão
A ópera Lucia
de Lammermoor surgiu em meio ao romance Madame Bovary como um exercício de
metalinguagem por parte do autor, Gustave Flaubert. Trata-se de uma obra de
arte citada em meio a uma outra obra de arte, com as duas relacionando-se. Há
uma identificação entre Lucia de Lammermoor e Ema Bovary: ambas são sonhadoras
e insatisfeitas com seus relacionamentos. Ema se sente, então, motivada a ter
um novo amante, agora, Léon Dupuis, que ele encontra, coincidentemente, no dia
em que foi ver a ópera Lucia de Lammermoor com seu marido, Charles. Como Ema
sai com Léon antes do final, Charles, que ficou até o final, permite a Ema que
fique sozinha, no dia seguinte, enquanto ele retorna para seus afazeres. Ema
começa, então, uma nova história de amor adúltera que, depois de se endividar e
se complicar, a leva ao suicídio ao final de Madame Bovary. O texto, ligado ao
realismo crítico, contrasta a pompa extravagante e antiquada da ópera de
Donizetti com seu estilo realista, preciso e econômico. Essa ópera até hoje é a
mais executada de Donizetti na metropolitan Opera de New York. Ela fascinava as
plateias e provocava ardor, sendo muito apreciada ainda hoje. A forma como a
ópera desperta Ema Bovary para sonhar e gera um clima para o amor trágico que
logo em seguida ela passa a viver torna essa descrição de ópera, que é apenas
uma passagem de um capítulo dentre os trinta e cinco capítulos desse romance,
um momento-chave desse romance. Assim como Ema Bovary, Lucia também é frágil
emocionalmente; ambas, ao final da narrativa, têm um final trágico. Bovary
supostamente se suicida. Em Madame Bovary, a ópera Lucia de Lamermoor assume um
papel de preparadora de clima para a tragédia que a seguir se sucede. Essa
passagem também mostra o quanto o médico Charles é lento e obtuso, pois não
entende que Lucia de Lammermoor tem um amante. Trata-se, então, de mais um
lance de metalinguagem: Charles não vê o amante nem na peça e nem na narrativa
de Madame Bovary. Por fim, outro lance claro de metalinguagem, num efeito de
espelhamento: Madame Bovary se sente olhada pelo tenor, e aí temos um efeito de
espelhamento: o leitor observa Madame Bovary que ao mesmo tempo se sente
observada pelo tenor. Madame Bovary é o romance mais conhecido de Flaubert,
assim como Lucia de Lammermoor tornou-se a peça mais encenada de Donizetti.
Pode-se supor que Flaubert inspirou-se em um amor impossível por uma mulher
mais velha para poder inspirar-se para criar Madame Bovary, romance que lhe
rendeu um processo judicial. Ele afirmou, em frase célebre, que Madame Bovary
era ele mesmo.
Referências Bibliográficas:
BLUM, David. He couldmake Madame Bovary Swoon. <<http://www.nytimes.com/1997/12/21/arts/he-could-make-madame-bovary-swoon.html>>>.
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria. Literatura e Senso
Comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Abril Cultural,
1979.
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