Um dos prefácios do romance de Leonardo Padura, O Homem que Amava os Cachorros, fala que essa narrativa é ficção e não é. Para analisá-lo, em primeiro, é preciso avaliar que é uma ficção histórica, ou seja, depende de uma narrativa histórica.
Há anos escrevi um comentário sobre esse romance e voltei a ele, julgando ter sido injusto. No entanto, julgo que a coisa é pior do que imaginei. Há mais, há mais.
Há limites para o que se pode fazer na narrativa histórica e Padura enreda-se em muitas contradições ao narrar os últimos tempos da vida de Trotsky.
Padura parece querer defender Trotsky e criticar seu suposto fanatismo, mas a narrativa tende a torná-lo um mártir, um herói. Na medida em que ele "entra na cabeça" de Trotsky, esse narrador tende a adotar seus pontos de vista para todos os planos do livro. Mas vai além. O fanático anticomunista é ele!
Então, é pelo prisma de um trotsquista (de hoje em dia) em que ele repudia a homofobia stalinista cubana que custou a vida de seu irmão gay.
Na página 79, ao entrar na cabeça de Trotsky, alegou que o programa da oposição teria sido roubado por Stálin. Mais adiante, no entanto, diz-se que o programa levou a um fracasso. Ora, o programa era para ser só de boca?
Ele admite que Trotsky passeou na Itália fascista (foi fazer o quê lá?) Igualmente, não há referência ao fato de Trotsky ter sido menchevique, nem aderido ao partido bolchevique em julho de 1917. bem como sua colocação de que a revolução russa só era válida como estopim da revolução na Europa.
Na página 20, Padura admite o antagonismo entre Lênin e Trotsky, Trotsky chamou Lênin de ditador incipiente e Robespierre russo. Depois retomou esses ataques direcionando-os a Stálin. Trotsky coloca-se à esquerda de Stálin! Mas com o cuidado de chamar de termidoriano, ou seja, direitista e não mais Robespierre.
Padura colocou Trotsky com esperanças no Congresso de 34, esperando algo de simpatizantes na URSS, mas o Trotsky histórico negou na Comissão Dewey ter tido contato com simpatizantes na URSS após 1929.
Stálin aparece numa visão de História que é a da excepcionalidade dos grandes homens, pois ele fala que "França e Noruega" haviam "caído de joelhos diante dele" na p. 240. Se França e Noruega expulsaram Trotsky, a culpa é de Stálin, claro! Sua visão de História centrada no indivíduo é totalmente antimarxista e idealista, ultrapassada: "será que o traidor não era um só e se chamava Stálin?" (Padura, 2013, p. 278). Stálin, esse super mau caráter, "destituiu sozinho mais de três quartos dos membros do comitê central" (PADURA, 2013, p. 343).
Igualmente, convive a ideia de que Rikov ajudou a matar Kirov por inveja (PADURA, p. 364), mas ao mesmo tempo é parte da sede de poder de Stálin contra um Kirov que o criticava.
Na conversa com Breton, Trotsky admite até mesmo a literatura contrarrevolucionária em nome da liberdade da arte. Como combater a arte e a literatura fascista dessa forma? Soljenitsin poderia mentir e caluniar internacionalmente a URSS, por exemplo?
Não! Se Trotsky advogava a favor de uma revolta na URSS, por que Trotsky não teria nada a ver se ela estivesse se processando? Ele alega que as bases econômicas da URSS estavam sadias, era preciso apenas a revolução política, ou seja, colocar ele e seu grupo na direção. Mas como o autoritarismo podre da burocracia teria dominado toda a sociedade, se não fosse da base até o topo reproduzido por pequenos "stálins"???
Mas Padura não resiste à paranóia trotsquista e coloca na conta do stalinismo até a derrota na guerra civil espanhola. A URSS teria desistido da luta um pouco antes do final...Na página 404, Padura se entrega quando diz que a URSS tinha pressa em matar Trotsky, pois não poderia correr o risco de sua volta ao território soviético. Mas como? Padura está levantando a hipótese de que Trotsky voltaria à URSS com a invasão nazista? Sério isso???
Padura não fala no tratado de Munique e fala que o pacto Ribbentropp foi um acordo "pelo qual os dois ditadores tinham trabalhado em segredo (ou nem tanto) nos últimos anos" (PADURA, 2013, P. 373). O cubano ignora que os territórios ocupados em 39 na Polònia foram entregues a ucranianos, lituanos e bielorussos e eram, de fato, habitados por esses povos. A Lituânia recuperou sua capital, Vilnius, que tinha sido anexada em 1919 pela Polônia -- e essa é sua capital até hoje!
A tese de que Lênin foi envenenado por Stálin também foi encampada. Padura parece encampar qualquer tese anticomunista, como uma espécie de bolha assassina de filme de terror dos anos 50. Só que Trotsky afirmou, quando pela primeira vez deu à luz a essa maravilha no New York Times, que as provas estavam no seu arquivo. Mas seu arquivo está em Harvard e as provas não apareceram.
Na página 401, Padura cita a farsa do substitucionismo, contra Stálin, mas admitindo que o mesmo argumento foi usado contra Lênin. Mas Trotsky disse isso para combater o papel do partido de vanguarda proposto por Lênin. Quem diverge nesse ponto não pode ser leninista. Ele acusa também a URSS stalinista de sacrificar os comunistas chineses, mas é bem outra a posição dos comunistas chineses, que relevam Stálin e ressaltam que os trotstquistas chineses colaboraram com os japoneses. Ho Chi Minh também faz essa denúncia quanto ao Vietnã.
A visão que aparece dos Processos de Moscou é também mirabolante, fraudulenta. Nela, Yagoda volta-se para o tribunal, em meio ao julgamento supostamente encenado e diz: "não cometi nenhum dos delitos que me são imputados e que reconheci" (PADURA, 2015, P. 252). Mas não são encenados? Para quê aconteceria isso?
A seguir, Padura dramatiza que era difícil encontrar a biografia de Trotsky por Deutscher, mas uma trotquista histórica cubana, Celia la Trotskera, comenta que essas biografias circulavam por Cuba. Igualmente, Padura prefere ignorar que Ramon Mercader foi enterrado na URSS após ganhar medalhas e é fácil encontrar seu túmulo ao clicar seu nome na web e verificar isso. Padura comenta que "se você buscar todos os cemitérios da URSS, você não achará seu túmulo" (PADURA, 2013, p. 261). Só Padura não consegue achar, por alguma razão misteriosa.
Padura também coleciona outras observações bizarras tais como escrever que Trotsky queria "voltar a pedir a STálin seu regresso e que o levasse a julgamento" (PADURA, 2013, p. 273). Absurdo! Em plenos Processos de Moscou? E Trotsky teve sua vontade atendida ao menos pela metade, foi condenado à morte à revelia.
Essa visão de História é caolha e se repete ao falar de Zinoviev, o "mesmo Zinoviev que protegera Lênin nos dias mais difíceis de 1917" (PADURA, 2013, p. 321). Como pode ter ignorado que Zinoviev e Kamenev entregaram a informação da revolta dos bolcheviques aos mencheviques, traindo o partido? E Padura alega ter pesquisado na Rússia!!! O que foi fazer lá, pelas barbas de Fidel!
Na página 337, repudia todas as revoluções, menos a cubana. Não há uma palavra contra Fidel. Como o soldado covarde de seu conto juvenil que lhe fez entrar em conflito com o castrismo, Padura parece também recuar diante da possibilidade de criar problemas e atrapalhar o sossego de "Manilla", bairro cubano onde vive.
Em outros momentos, Padura parece ter parado no tempo, quando cita tranquilamente Soljenitsin sem lembrar-se de acompanhar sua trajetória antissemita e declaradamente monarquista e fascista após a queda da URSS. Ele mesmo admite que Soljenitsin, produtor de literatura antistalinista e fascista, era publicado em Cuba há anos! E Padura não sabe disso???
Na parte mais delirante e alucinada do romance, ele imagina que Mercader treinou assassinato com cobaias trotsquistas humanas vivas. Tal é a irritação que essa narrativa contraditória, cheia de falseamentos, produz, que chegamos a torcer para que seja verdade: parece até uma pena justa!
Mas é e não é...
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