Diário
de viagem de uma bom-despachense na Europa
Em julho de 1975, minha tia
Elizabeth fez uma viagem à Europa. Ela era professora de francês aqui em Bom
Despacho, no colégio Tiradentes. Elizabeth Madeira Morais faleceu
prematuramente em 1993 aos 46 anos. Dessa viagem ficou um curioso diário de
viagem. A viagem ocorreu junto da prima Dilma Morais e Netinha, uma amiga. Ela
foi a Portugal, França, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Áustria, Alemanha,
Suíça, Itália e Espanha. Em Portugal, cita o marido de Júlia (aluna de francês
de Brigitte Paredaens), Getúlio:
Os muros de Lisboa estão todos marcados com o sinal
comunista (martelinho e foice) e com vários dizeres como: “Abaixo o fascismo e
viva o proletariado”. Lembrei-me do Getúlio que queria algum livro sobre a
situação atual do Brasil.
Beth comenta que conseguiu se virar
(“je me debrouille”) em francês na França, cometendo alguns erros, tais
como escrever photo no lugar de photographie, salle de bains
no lugar de toilette. Ela conta ter ido ao mausoléu de Napoleão (Les
Invalides) e ao Panthéon onde estão os túmulos dos grandes homens
que obtiveram o reconhecimento da pátria: Rousseau, Voltaire, Victor Hugo,
Zola, etc. Curiosamente, ela comenta que não gostou da comida francesa, não
conseguiu comer nem arroz e nem pizza napolitana: “O que há de gostoso é a
sobremesa: hoje comi uma tarte au fraises deliciosa; o croissant
também é bom, e também as confitures (compotas).”
Beth também observou uma
curiosidade cultural ligada a outros bom-despachenses: “tivemos mesmo a
oportunidade de presenciar uma cena em que uma senhora passou uma descompostura
em outra (casa de Assunção, cunhada de Netinha) porque as crianças faziam muito
barulho”. Os franceses, muitos educados, segundo ela, gostam de silêncio,
observou ela, principalmente depois das dez da noite.
Nessa viagem de Beth, ela
curiosamente adorou Viena, Innsbruck e Munique e não gostou de Roma, na Itália.
Roma era barulhenta e suja, muitos homens abordavam-nas na rua, enquanto as
cidades alemãs tinham grandes e bem cuidados jardins e fizeram um amigo,
Gerhard (“um simples, um puro de coração, alegre e espontâneo”), que as levou a
vários lugares interessantes e até parecia apaixonado por uma delas. Os homens
alemães, segundo ela, eram alegres, mas respeitadores, enquanto os italianos
paravam o carro para fazer cantadas e piadinhas incompreensíveis. Em Munique,
ela esteve na Hofbrauhaus, a maior cervejaria do mundo:
Foi muito interessante, porque pudemos observar o povo
alemão com toda sua alegria e vivacidade. Que maravilha! Todos pareciam uma
grande família, cantando músicas lindas, acompanhados por instrumentos
musicais. No fim todos deram-se as mãos e fizeram uma grande roda ao redor das
mesas.
Beth
também conta como foi a viagem de trem de Viena a Munique:
Viagem
digna de nota foi a de Viena a Munique, de trem. Foi uma experiência
excepcional. Em nosso vagão reuniu-se uma turma de Israel, Hungria, Iugoslávia
e alemã. Divertimo-nos bastante, sobretudo com os húngaros: 3 moças (Hildegard,
Elizabeth e Gabriela) e um rapaz (Charlie) (...). Sobre os húngaros, foi muito
engraçado porque aprendemos algumas palavras em húngaro (comuns ao alemão) como
servus (pronuncia-se serbus =adeus); puszi =beijinhos. Quando nos despedimos,
eles, que ainda iam a Paris, vindo de Bucareste, ficaram no trem gritando:
adeus, beijinhos; e nós, “servus, puszi”. Todo mundo ficou rindo de nossa
despedida.
Segundo Beth, o único lugar bem
conservado de Roma lhe pareceu o Vaticano, “muito lindo”. Ela tinha a
expectativa de conhecer uma cidade maravilhosa, mas ficou numa pensão velha,
com “tudo desorganizado, sujo e preto, há papéis na rua, ônibus velhos,
trânsito difícil”. Para mim, que sou afilhado de Beth, o diário emociona muito
ao final, quando ela escreveu, aguardando o avião no aeroporto de Lisboa:
Na espera, despeço-me de tudo, olho para todas as
coisas com olhos de despedida. Talvez nunca mais eu retorne. Ou talvez um dia,
quem sabe? Nunca se pode prever alguma coisa nessa vida. Valeu a pena a
experiência (...). Adeus Portugal, adeus Europa. Até amanhã, Brasil.
É com um aperto no coração que
escrevo esse texto, com uma saudade imensa dessa pessoa querida que esteve ao
meu lado e perdi. Há quanto anos partiu! E pensar que já vivi mais do que ela! Beth
ensinou-me a cantar a Marselhesa. Foi muito bom reencontrar minha eterna
madrinha nesse diário, foi muito bom escrever essa coluna para, de certa forma,
ressuscitá-la através de sua escrita. Adeus, Beth! Até um dia!