sábado, 16 de abril de 2022

Diário de viagem de uma bom-despachense na Europa

 

Diário de viagem de uma bom-despachense na Europa

 

            Em julho de 1975, minha tia Elizabeth fez uma viagem à Europa. Ela era professora de francês aqui em Bom Despacho, no colégio Tiradentes. Elizabeth Madeira Morais faleceu prematuramente em 1993 aos 46 anos. Dessa viagem ficou um curioso diário de viagem. A viagem ocorreu junto da prima Dilma Morais e Netinha, uma amiga. Ela foi a Portugal, França, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Áustria, Alemanha, Suíça, Itália e Espanha. Em Portugal, cita o marido de Júlia (aluna de francês de Brigitte Paredaens), Getúlio:

 

            Os muros de Lisboa estão todos marcados com o sinal comunista (martelinho e foice) e com vários dizeres como: “Abaixo o fascismo e viva o proletariado”. Lembrei-me do Getúlio que queria algum livro sobre a situação atual do Brasil.

 

            Beth comenta que conseguiu se virar (“je me debrouille”) em francês na França, cometendo alguns erros, tais como escrever photo no lugar de photographie, salle de bains no lugar de toilette. Ela conta ter ido ao mausoléu de Napoleão (Les Invalides) e ao Panthéon onde estão os túmulos dos grandes homens que obtiveram o reconhecimento da pátria: Rousseau, Voltaire, Victor Hugo, Zola, etc. Curiosamente, ela comenta que não gostou da comida francesa, não conseguiu comer nem arroz e nem pizza napolitana: “O que há de gostoso é a sobremesa: hoje comi uma tarte au fraises deliciosa; o croissant também é bom, e também as confitures (compotas).”

            Beth também observou uma curiosidade cultural ligada a outros bom-despachenses: “tivemos mesmo a oportunidade de presenciar uma cena em que uma senhora passou uma descompostura em outra (casa de Assunção, cunhada de Netinha) porque as crianças faziam muito barulho”. Os franceses, muitos educados, segundo ela, gostam de silêncio, observou ela, principalmente depois das dez da noite.

            Nessa viagem de Beth, ela curiosamente adorou Viena, Innsbruck e Munique e não gostou de Roma, na Itália. Roma era barulhenta e suja, muitos homens abordavam-nas na rua, enquanto as cidades alemãs tinham grandes e bem cuidados jardins e fizeram um amigo, Gerhard (“um simples, um puro de coração, alegre e espontâneo”), que as levou a vários lugares interessantes e até parecia apaixonado por uma delas. Os homens alemães, segundo ela, eram alegres, mas respeitadores, enquanto os italianos paravam o carro para fazer cantadas e piadinhas incompreensíveis. Em Munique, ela esteve na Hofbrauhaus, a maior cervejaria do mundo:

 

            Foi muito interessante, porque pudemos observar o povo alemão com toda sua alegria e vivacidade. Que maravilha! Todos pareciam uma grande família, cantando músicas lindas, acompanhados por instrumentos musicais. No fim todos deram-se as mãos e fizeram uma grande roda ao redor das mesas.

 

Beth também conta como foi a viagem de trem de Viena a Munique:

 

Viagem digna de nota foi a de Viena a Munique, de trem. Foi uma experiência excepcional. Em nosso vagão reuniu-se uma turma de Israel, Hungria, Iugoslávia e alemã. Divertimo-nos bastante, sobretudo com os húngaros: 3 moças (Hildegard, Elizabeth e Gabriela) e um rapaz (Charlie) (...). Sobre os húngaros, foi muito engraçado porque aprendemos algumas palavras em húngaro (comuns ao alemão) como servus (pronuncia-se serbus =adeus); puszi =beijinhos. Quando nos despedimos, eles, que ainda iam a Paris, vindo de Bucareste, ficaram no trem gritando: adeus, beijinhos; e nós, “servus, puszi”. Todo mundo ficou rindo de nossa despedida.

 

            Segundo Beth, o único lugar bem conservado de Roma lhe pareceu o Vaticano, “muito lindo”. Ela tinha a expectativa de conhecer uma cidade maravilhosa, mas ficou numa pensão velha, com “tudo desorganizado, sujo e preto, há papéis na rua, ônibus velhos, trânsito difícil”. Para mim, que sou afilhado de Beth, o diário emociona muito ao final, quando ela escreveu, aguardando o avião no aeroporto de Lisboa:

 

            Na espera, despeço-me de tudo, olho para todas as coisas com olhos de despedida. Talvez nunca mais eu retorne. Ou talvez um dia, quem sabe? Nunca se pode prever alguma coisa nessa vida. Valeu a pena a experiência (...). Adeus Portugal, adeus Europa. Até amanhã, Brasil.

 

                É com um aperto no coração que escrevo esse texto, com uma saudade imensa dessa pessoa querida que esteve ao meu lado e perdi. Há quanto anos partiu! E pensar que já vivi mais do que ela! Beth ensinou-me a cantar a Marselhesa. Foi muito bom reencontrar minha eterna madrinha nesse diário, foi muito bom escrever essa coluna para, de certa forma, ressuscitá-la através de sua escrita. Adeus, Beth! Até um dia!

 

 

 

 

 

domingo, 3 de abril de 2022

Teatro em Bom Despacho: A Viagem de Sucesso de Nosso Barquinho

 

Teatro em Bom Despacho: A Viagem de Sucesso de Nosso Barquinho

 

            Minha lembrança do teatro em Bom Despacho é uma lembrança infantil muito terna: minha tia Jane foi a Iara na peça A Viagem de um Barquinho, de Sílvia Orthof, encenada no Salão São Vicente com bastante sucesso. Foi também encenada em Dores do Indaiá. Vander Araújo lembrou-se de ter participado, ainda criança, da peça, mencionando-a em seu romance Roupa Suja de Inconfidente. Era mágico e encantador ver Jane na figura de uma sereia de cabelos verdes.

Segundo carta que recebi de Roniere Menezes, que era o sapo naquela peça, o grupo teatral chamava-se Porta Aberta. Apresentaram-se no salão São Vicente mais de uma vez, bem como em Dores do Indaiá, etc. Havia a Deolina como lavadeira e o Wander Araújo, criança na época, como menino. Os dois eram os protagonistas. A Samira irmã do Wander também trabalhava, entre várias outras pessoas amigas. Bil Morais, meu tio, era o diretor da peça.

            Quando voltei a viver em Bom Despacho, no início dos anos 2000, o teatro estava florescendo. O grande artista que mobilizou o teatro na cidade naquele período chama-se Júnior Souza, o professor Juninho. Eu fiz algumas anotações (que agora consulto), na época, sobre o enredo da peça De Quem é Esse Reino. Isso ocorreu em dezembro de 2002.

De Quem É Esse Reino tratava das relações de poder num reino imaginário, a Sorbônia. Num dado momento ficava claro que a Sorbônia era o espelho do Brasil. Neste reino, que nos fazia lembrar aquele da novela Que Rei Sou Eu, existia uma trama para levar uma serviçal do palácio (negra e acima de seu peso ideal) ao trono, aproveitando-se da velhice da rainha Dinorah. A serviçal (operária?) conseguia, após alguns ardis de “Malvina”, sua colaboradora, chegar ao poder, fazendo-se passar por homem (insinuando o tema do travestismo). O verdadeiro príncipe foi retido por asseclas dos usurpadores. A “serviçal”, uma vez no poder, cometeu a gafe de tentar falar em línguas estrangeiras sem nada saber: “murchas graxas”, arranhou em portunhol, dando mancada e entregando-se. A seguir, a “ex-operária” expôs seu programa de governo, explicitamente cortando os direitos dos “serviçais”, e, pelo que me lembro, falou em cortar o décimo terceiro salário, etc. Logo sua “corte” se irritou com os descaminhos do príncipe gritalhão. Enquanto isso, o príncipe herdeiro se libertou daqueles que estavam em seu caminho e veio salvar o reino das mãos da plebe, retomando a linhagem nobre. E a peça encerrou-se com a serviçal voltando a servir no palácio. Notem como é curioso esse enredo, ao levantar questões como a possibilidade de mudar de classe social e de corte de direitos dos trabalhadores, temas ainda hoje muito atuais.

            Pelo menos dois atores de expressão foram revelados no teatro do Juninho: Thales Braga e Ítalo Laureano. Ítalo, graduado em teatro na UFMG, desenvolve trabalhos como ator e diretor, aliás como co-fundador do Grupo Quatroloscinco Teatro do Comum. (Ator e Diretor em 7 espetáculos/14 anos), participou também das novelas Espelho da Vida e Bom Sucesso. Thales fez parte de uma encenação muito elogiada de Pra Acabar com o Juízo de Deus, de Antonin Artaud (em Belo Horizonte). Foram muitas peças de enorme sucesso local escrita pelo professor Juninho: Três Mulheres e um Amigo, Guarapari é Aqui (ambas com Lili Cunha, que cedeu as fotos dessa matéria e a quem agradeço imensamente) lotando o Salão São Vicente. Lili brilhou nessas peças de Juninho e hoje consolidou a graciosa personagem Palhaça Berinjela (@palhacaberinjela). Oxalá, com o fim da pandemia, a cidade retome sua bela vocação teatral, com muito sucesso e muitos talentos revelados e cultivados! Que o nosso barquinho continue sua viagem de sucesso!!!