O Cinema Não Soube Cumprir Seu Papel
(Uma Entrevista com Jean-Luc Godard. Mas como fui eu quem traduziu, fiquem à vontade com minha presença antropófaga.)
Por Jean-Pierre Lavoignat e Christophe d’Yvoire
A Bout de Souffle, Pierrot le Fou, Le Mépris. Em três filmes, Jean-Luc Godard fez tremer a história do cinema. Trinta e cinco anos depois, ele foi aquele que sobrou. Ficou como figura emblemática da Nouvelle Vague, junto com François Truffaut. Certamente seus filmes não têm o mesmo impacto, mas sua maneira de filmar, em estado de perpétua busca, continua sendo uma das mais singulares do cinema de agora. Provocador, agitador, contraditório, Godard é sempre Godard. E nas grandes ocasiões, é ele que queremos consultar, senão como sábio, ao menos como um feiticeiro que sabe ver o mundo de outra forma. O cineasta nos recebeu em sua casa em Rolle, parte suíça do lago Leman, há alguns dias. Godard maneja as palavras como ele com freqüência organiza as imagens, por associação, por justaposição. Por vezes obscuro, por vezes luminoso, sua voz inimitável e seu senso agudo da dialética (ele não resiste a uma fórmula ou um jogo de palavras), ele nos explicou em quê, segundo ele, o cinema não soube cumprir seus deveres. Discurso de um sonhador que não perdeu jamais sua fé.
--Como estávamos falando sobre este número da revista Studio, consagrado aos cem anos de cinema...
JLG: Pobres cem anos de cinema!
--...Tivemos vontade de convocar dois cineastas: Steven Spielberg e você. Sentimos que vocês são pontos cardeais do cinema...
JLG: Normal. Eu sou o passado e Spielberg é o presente...
--Não é questão de idade...
JLG: Para mim é. Ao mesmo tempo, Faulkner disse: 'O passado nunca está morto, ele nem sequer passou', daí eu posso me situar hoje. No futuro, se lembrarão de mim, mas não terão visto meus filmes. O nome Spielberg não será lembrado, mas seus filmes serão lembrados, pois foram vistos.
--É uma fórmula, mas não é verdade. A Bout de Souffle, Le Mépris, Pierrot Le Fou foram vistos...
JLG: Ah, quem te viu e quem te vê.
--Se você fosse explicar a um aluno de outro mundo o que é o cinema, o que é que você diria?
JLG: Não posso responder, o cinema está no mundo. Em todo caso, o mundo habita o cinema, no sentido em que DeGaulle, que detestava parlamentares, disse a Malraux: 'A diferença entre nós e eles, é que eles habitam a França, mas em nós é a França que habita'. O mundo habita o cinema como habita a pintura ou qualquer outra forma de arte. Durante um tempo, nos anos 50, a palavra 'câmera' estava tão conhecida como a palavra 'pão'. Hoje não é mais o caso.
--Porquê, no seu ponto de vista?
JLG: Porque nós privilegiamos os direitos do cinema e não seus deveres. Não pudemos, ou soubemos, ou quisemos dar ao cinema o mesmo papel que deixamos à pintura ou à literatura. O cinema não soube cumprir seus deveres. Nós nos enganamos neste ponto. No começo, pensamos que o cinema ia se impor como novo instrumento de conhecimento, um microscópio, um telescópio, mas, muito rápido, nós os impedimos de cumprir seu papel. O cinema hoje não serve para ver, ele oferece um espetáculo.
--Com seus filmes, você tentou fazer o inverso do que era corrente?
JLG: Ingenuamente, acreditamos que a Nouvelle Vague seria um começo, uma revolução. Mas era muito tarde. Tudo estava acabado. E o momento decisivo foi quando não filmaram os campos de concentração. Naquele instante, o cinema deu uma mancada. Seis milhões foram mortos com gás, principalmente judeus, e o cinema não estava lá. Até então, de Dictateur à La Regle du Jeu, ele tinha acompanhado todos os dramas. Sem filmar os campos de concentração, o cinema se demitiu totalmente. É como a imagem da 'faca que não corta, de muito usada'. Eu não sou pessimista: digo simplesmente que há coisas que poderiam ser feitas pelo cinema – e não poderiam ser feitas nem pela pintura, nem pela música – e que não foram feitas.
--Você se lembra do primeiro filme que viu?
JLG: Não. Devo ter ido ver Walt Disney como todas as crianças, mas eu não sou como Lelouch que disse: 'Quando tinha três anos, eu fui ver Disney e, neste dia, já sabia o faria no cinema' (risos).
--Qual foi o momento em que nasceu seu desejo de fazer cinema?
JLG: Foi na cinemateca. Eu descobri um mundo sobre o qual ninguém falava, nem na escola, nem meus pais. Porque me esconderam sua existência? Nós ouvimos falar em Goethe mas não de Dreyer. Se nem ouvimos falar que existe esse mundo, como vamos procurar? Nós nos contentamos em lembrar. Nós vimos os filmes mudos na época dos falados, e ouvimos falar de filmes que nunca vimos. A Nouvelle Vague era isso: éramos como os cristãos que se convertiam sem nunca ter visto nem Jesus, nem São Paulo. Eu tinha ouvido falar de Femme au Corbeau mas nunca tinha visto até que Brion o passou na televisão! Para nós, o bom cinema, o verdadeiro, é aquele que não víamos porque não era sequer difundido. O outro, podíamos ver todos os sábados, mas o verdadeiro, Griffith, Einsestein...Tínhamos dificuldade em vê-lo, era proibido, era mal divulgado, mal distribuído...Então, para nós, era este o verdadeiro cinema. Fizemos um ato eleitoral, se você preferir assim.
--O que lhe atraiu nestes filmes, se você quase não os via?
JLG: Bem, justamente esse mistério. Era um território desconhecido que estava próximo do domínio das cartomantes. Nós não tivemos acesso a uma maneira de ver o mundo a não ser depois de quarenta anos. Ninguém nos havia falado. Nenhuma pessoa, ao menos da minha família, nunca falou em política. Através do cinema, descobri Lênin.
--Então o cinema não abdicou de seu papel de mostrar o mundo como você diz toda hora!
JLG: Bem, eu penso que não sabemos se ele ainda continua. O que eu quero dizer é que existiram e existem filmes que tem uma visão de mundo, mas eles são minoritários. Estas são as opções que impedem o movimento geral da indústria cinematográfica, e tem o fato dela ser hoje muito ligada ao poder, da mesma maneira que a televisão. Hoje, o que chamamos de imagens é algo muito ligado ao poder. Numa certa época, não era. Gutenberg não queria dominar o mundo. Já Spielberg, sim.
--Como é que você sabe?
JLG: Pelo fato de não se preocupar com uma verdade ou saber. Spielberg, como muitos outros, quer convencer antes de discutir. Neles, há algo muito totalitário. Enfim, digamos que para mim, o cinema é o instrumento de um pensamento original que se situa no meio-caminho entre a filosofia, a ciência e a literatura, e que implica em usar os olhos, e não em impor discurso pré-fabricado. Com meus filmes, eu tentei me ater a esse papel, ainda que com freqüência de uma maneira confusa, mas evidentemente, sei que meu cinema não pode simplesmente inverter aquilo que está corrente. As coisas estão aí, dadas.
--Existem cineastas que te espantam ainda?
JLG: Eu adorei Kiarostami. Dele, eu vi A Vida Continua. Há sempre bons filmes, mas poucos. Mas há o fato de que ainda gosto mais de Griffith do que de Kiarostami.
--Você ainda vê filmes de Eric Rohmer, de Rivette?
JLG: Quando posso, sim, mas sem morar em Paris, aqui em Rolle, Suíça, não é fácil...Eu gostei de Jeanne D’Arc. Já o filme anterior, nem tanto.
--Você viu Les Visiteurs?
JLG: A gente tenta se manter atualizado em relação ao corrente. É digno Les Visiteurs, é simpático. Gostei dos atores...
--Como você explica que é referência para cineastas tão diferentes como Spielberg e Tarantino?
JLG: Esta era a Nouvelle Vague. Nós começamos num momento em que, no cinema francês, tudo estava esclerosado, todo mundo na defensiva, corporativo no sentido literal. E nós dissemos: 'Chega de interdições.' Foi possível escrever o que a gente quis escrever. E a gente fez os filmes contra as regras em voga. Filmamos na rua, porque na época se filmava em interiores. Se a regra fosse outra, poderíamos ter feito o inverso. Hoje não há mais uma regra, senão aquela de 'eu sou um autor', que não tem sentido. Três quartos das pessoas no meio pensam ser autores...
--Você não?
JLG: Ah, eu não. Enfim, sou autor de uma obra, mas é a obra que conta. Quando comecei a fazer os filmes, preocupava-me com o produtor, os cenários. Agora não. Eu conheci isso com Beauregard e depois não me preocupei mais. Essa atitude faz falta, e falta muito aos jovens que fazem filmes agora e que se acham autores com direitos divinos. A discussão não existe mais, mesmo um antagonismo que podia existir entre Fellini e Ponti, que produziu La Strada. Nos Estados Unidos, a discussão não existe mais, mas a força dos americanos é que eles trabalham muito. É suficiente para fazer uma diferença. Lá não se rouba muito, rouba-se bem. Aqui, rouba-se muito, mas a coisa rende pouco.
--Você poderia trabalhar com uma estrutura rígida como nos Estados Unidos?
JLG: Sim, se eu tivesse algum interesse na obra e pudesse discutir...O que existe talvez na edição. Lindon quando recebeu o primeiro manuscrito de Robbe Grillet, o mandou retrabalhar...
--Sim, mas ele não o faz mais.
JLG: voilà, e assim não é tão bom.
--Pode ser que falem pelas costas o mesmo de você, só não dizendo porque você tem status...
JLG: Oh, bem eu, não se diz nada para mim. Talvez me digam: 'adorei seu filme' ou 'seu filme me entediou'. Mas, ao dizer isso, a pessoa celebra a si mesma, ela não está falando do filme.
--A televisão desvirtuou o cinema?
JLG: Sim, porque a televisão é à base de larga exibição. O cinema se encontra ligado a uma economia onde a exibição não paga a produção. Hoje, não difundimos o que produzimos, produzimos para poder passar. Eu, eu digo que o cinema era potente, mas ele era incontrolável. É porque a gente preferiu reduzi-lo à sua dimensão espetacular. Peça às pessoas para se lembrarem de uma só imagem de Spielberg.
--Todo mundo conhece a cena do ET diante da lua!
JLG: ET é o menos pior que ele produziu, mas ele chupou bastante do universo da ficção-científica. Como a maior parte dos americanos, Spielberg tem um certo savoir-faire, é inegável. Mas isso não impede que entre o melhor Hitchcock e o melhor Spielberg exista um abismo.
--Qual a diferença entre o melhor Hitchcock e o melhor Spielberg?
JLG: Não se pode ir dizendo sem mais nem menos. É preciso tempo. É preciso olhá-los. E mesmo, o mais difícil: como dizer que esta lâmpada é feliz ou infeliz? Há quem tenha gosto e quem não tenha. As pessoas pensam que o mais importante são as pessoas. Eu digo que as obras vêm primeiro. Nunca pedi autógrafo a Rosselini, e privei com ele. Nunca falamos mal de Autant-Lara. Criticamos seus filmes, ele se sentiu atingido. Nós não julgamos Autant-Lara, juntamos folhas a um dossiê. Não é o autor que é importante, esta é minha política. Autant-Lara julgou ele mesmo.
[...]
--Você diz sempre que o cinema é uma arte popular por excelência.
JLG: Sim, no sentido em que o cinema conheceu rapidamente o sucesso. No começo do cinema era mais claro que hoje, as pessoas nem pensavam antes de dizer depois de assistir um filme: 'é ruim', e não ousavam dizer assim de uma pintura ou de um poema. No caso, eles diziam: 'eu não gosto' ou 'eu não entendo'. Diante de um filme, nos sentimos em pé de igualdade. Numa pintura, notamos a técnica para se pintar o pôr-do-sol. No cinema, vemos com naturalidade e dizemos simplesmente: 'magnífico'. Não pensamos na técnica. Há algo direto e então, popular. O cinema está aberto aos olhos de todos. Um menino de oito anos pode descobrir o mundo.
--Hoje um menino de oito anos poderia se sentir assim no cinema?
JLG: Se, como menino, estiver com esse sentimento. O que mostramos é que mudou. Se mostramos uma floresta ou uma rodovia, não é a mesma coisa.
[...]
--Como você definiria seu prazer de fazer cinema?
JLG: O prazer é o mundo que nos oferta. Nós encontramos o lugar certo. Essa janela se encontra diante de nós, já existe. Para filmar, é suficiente encontrar onde se localizar. O prazer é condição ética que o mundo já criado nos oferta. Eu creio que o que está criado nos fez viver, e nós lhes devolvemos para que os outros encontrem esse eco criador, ou então se nada eles possuem, como verdadeira criação. É como o manuscrito na garrafa que escrevo para qualquer um. É uma necessidade [...].
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