Problemas
da Poética de Dostoiévski em Crime e Castigo
Lúcio
Emílio do Espírito Santo Júnior[1]
“ Sou
satanás e nada do que é humano me é estranho”
Irmãos
Karamázov
1.
Introdução
Ao fazer a leitura do
romance Crime e Castigo, notamos algumas questões filosóficas que
precisam ser melhor pensadas. Em particular a questão da psicologia do
protagonista, que é ao mesmo tempo ex-estudante de Direito e criminoso que
estuda a psicologia criminal.
Crime e Castigo é
lido como a história de um estudante que perde seus valores, Deus inclusive,
aderindo ao niilismo (leia-se ideias iluministas e racionalistas) inspirado em
Napoleão. Ele comete um crime contra a dona do pequeno apartamento onde ele
mora, Aliena Ivanova e contra sua sobrinha Lisavieta, depois entra em crise,
revela seu crime graças à religiosa Sônia e arrepende-se, convertendo-se também
ao evangelho. Ele descreve Aliena em termos pejorativos como “judiazinha”, num
diminutivo pejorativo, bem como a compara a um piolho, demonstrando
antissemitismo, que já é mais um elemento a mostrar que ele tem pouco de
progressista.
A leitura de Lukács do
tempo de Bolchevismo como Problema Moral comparou o crime que
Raskolnikov realizou e os métodos violentos da revolução russa –e associou num
sentido pejorativo, negativo. Essa aproximação voltou mais recentemente na
análise do ideólogo de Putin, Aleksandr Dugin.
Em muitos outras
passagens, dentro do romance, pode-se dizer que Razhumikin e Raskolnikov são
bastante conservadores, criticam os progressistas como Radischev, considerado o
Rousseau russo. O único elemento mesmo que é convincente nesse sentido é a
devoção a Napoleão, que aliás, era um monarquista. A leitura de Raskolnikov de
Napoleão é equivocada. Pode-se dizer que essa devoção a Napoleão aproximou o
personagem ao Napoleão de hospício. Igualmente, ao final do romance, a análise
da justiça russa é que Raskolnikov teve um acesso de loucura, o que favoreceu
sua defesa.
2.
Lukács e Dostoievski
Lukács, em Bolchevismo
como Problema Moral, tratou de comparar os raciocínios dos bolcheviques
sobre ditadura do proletariado, tratando de fazer um mal em prol de um bem
maior, com a filosofia do “ex-estudante” Raskolnikov em Crime e Castigo,
no momento em que ele ousa discutir com o delegado Porfiri sobre o estado
psicológico do criminoso durante o ato do crime. Lukács, posteriormente,
considerou em um ensaio de 1949 que as respostas políticas e sociais de
Dostoievski são falsas, mas não se aprofunda nesse ponto. E esse, de fato, é um
importante ponto. As considerações de Lukacs em 1918 foram as seguintes:
A
primeira atitude aparente de sua convicção imediata, enquanto na segunda, esta
pureza é sacrificada conscientemente para que, por meio desse auto-sacrifício,
possa-se realizar a social-democracia em sua totalidade e não apenas um de seus
fragmentos, destacados de seu centro. Repto: o bolchevismo baseia-se sobre a
seguinte hipótese metafísica: o bem pode surgir do mal, e é possível, como o
diz Razoumikhine em Crime e Castigo, chegar à verdade mentindo. O autor
dessas linhas é incapaz de partilhar essa fé, e isto porque vê um dilema moral
insolúvel na raiz mesma da atitude bolchevique, enquanto a democracia -
acredita – não exige daqueles que a querem realizar consciente e honestamente
até o fim senão uma renúncia sobre-humana e o sacrifício de si. E, entretanto,
ainda que esta solução exija uma força sobre-humana, no fundo não é insolúvel,
como o é o problema moral posto pelo bolchevismo (LUKACS, 2022)
As
questões são no mínimo pitorescas para um pensador que tornou-se conhecido por
dedicar a vida ao marxismo ocidental, uma vertente crítica ao
marxismo-leninismo, embora quase nunca apresente-se assim.
A questão aqui, no
entanto, não é tanto chegar até à verdade mentindo, mas chegar à democracia
popular através de um primeiro momento de autoritarismo depois da revolução.
Sua interpretação dependo que você chamar de bem e mal: será que é “mal”
distribuir latifúndios, socializar a propriedade numa sociedade em que ela está
em mãos de poucos?
É curioso que, como para
Dugin, para Lukács um século antes, o crime de Raskolnikov pode ser aproximado
à atuação dos bolcheviques, ou seja, a fazer a revolução. No romance Os
Demônios é bastante evidente essa relação: nele, é mais claro que é crime
fazer a revolução.
Curiosamente, Lukács
aventou o paralelo possível entre o crime de Raskolnikov e a revolução,
hipótese que trataremos aqui. Como explicou o próprio Raskolnikov:
Sobretudo,
não era por necessidade de dinheiro que eu matei. Era-me preciso saber outra
coisa, outra coisa impelia o meu braço; eu queria saber mais que depressa se eu
era um verme como os outros ou se era homem. Saberia saltar o obstáculo ou não?
Perguntava a mim mesmo. Ousaria me abaixar e apanhar o poder ou não? Sou uma
criatura temerosa ou terei a força de ousar? (ROSA. 1980, p. 211).
Note-se aqui que a
questão é o poder, ou seja, ele deu a entender que a questão era política. Para
uma determinada classe, a proprietária, o que aparece como mal pode ser o bem
para a outra classe e vice-versa. A passagem em que Razumíkhin fala sobre
mentira e verdade foi a seguinte:
Ora,
sabes o que mais me dá raiva? Não é o fato de mentirem; sempre se pode perdoar
a mentira; a mentira é uma coisa simpática, porque conduz á verdade. Não, o
deplorável é que mentem e ainda reverenciam a própria mentira. Eu respeito
Porfiri, portanto (DOSTOIEVSKI,
2001. P. 148)
É curioso que, no
romance, Porfiri não mente para chegar a verdade, muito pelo contrário, daí que
não há sentido nessa conclusão de Razumíkhin a respeito de Porfiri. O
investigador, ao encontrar a teoria dos homens extraordinários que podem matar
num artigo de Raskolnikov, passa a desconfiar desse rapaz, evidentemente; outra
de suas pesquisas é que Ródia procurou outro apartamento na data próxima do
assassinato, outra evidência que condena o estudante. Nada disso é mentira. A
partir de evidências, ele chega a Ródia e o pressiona. Porfiri é uma figura
paternal, se Raskolnikov é estudante, já Porfiri é formado, daí que ele se
impõe sobre o mais novo.
Não há como comparar um
atentado como fez o irmão de Lênin contra o czar contra o que fez Ródia contra
a dona da pensão onde vivia. Essa comparação mostra como é inconsistente a
teoria dos “super-homens” esboçada por Raskolnikov: existem os homens comuns e
os super-homens. Na realidade não existem indivíduos excepcionais e outros não
excepcionais, existem os que representam as aspirações das massas, da
coletividade. E Napoleão não foi sempre excepcional. Houve um tempo em que foi
apenas um oficial de baixa patente da Córsega. A história é que deu a ele a
importância que tem agora, a partir de um certo momento histórico. A questão é:
quem define que momento histórico Napoleão tornou-se “Napoleão”?
E outra: não há indícios
de que nem Raskolnikov e nem Razhumikhin sejam “niilistas”, ou seja,
socialistas utópicos ou progressistas, muito pelo contrário. Na página 537:
--Eu
lhe pergunto. Pensando bem, estou com o senhor...porque o senhor, é claro, não
é niilista! Responda com franqueza! Com franqueza!
--N-não...(DOSTOIEVSKI,
2001, P. 537).
Igualmente, Razumikhin,
ao falar de “milhares de pessoas” a serem libertadas com a morte de Aliena
Ivanova, parece-nos um “alter ego” exterior de Ródia, mais do que a voz de um
amigo, pois é delírio essa ideia de que o assassino de uma velha usurária
libertasse milhares de pessoas. Essa é uma das respostas falsas colocadas por
Dostoiévski das quais estamos tratando aqui. A não ser que a morte da velha
fosse uma metáfora da revolução.
Igualmente, em Crime
e Castigo, Raskolnikov não arrependeu-se do que fez. Quando perguntado se
fez correr sangue, argumentou que sim, mas que ele continua a correr em
cascatas:
--Que
não param de derramar—emendou quase caindo em fúria--, que continuam derramando
e sempre derramaram no mundo como uma cascata, que derramam como champagne,
pelo qual coroam no capitólio e depois o
chamam coroado de benfeitor da humanidade (...) Depois do fracasso tudo parece
tolo
(DOSTOIEVSKI, 2001, p. 526).
Essa hipótese do crime
nesse romance Crime e Castigo como metáfora da revolução não nos parece
absurda e foi aventada, por exemplo, por Alexander Dugin ao analisar esse
romance. Por isso, quem sabe, as pistas falsas que esse romance dá: a
psicologia do estudante não é de um criminoso comum, ele tem gestos de altruísta,
a narrativa parece, no fundo, querer identificar o leitor com um personagem
intelectualizado, sensível, colocado em uma situação-limite que nós acabamos
sendo convidados a experimentar.
2.Entre
a Polifonia, a Mística e a Ideologia
Há duas vertentes de
análise de Dostoiévski, uma que analisa sua obra como influenciada pela
religiosidade ortodoxa, uma vez que ele, em sua fase madura, renasceu como
reacionário czarista, depois da maturidade revolucionária, fazendo um trajeto
que, no final do século XX, virou clichê. A outra o analisa como grande
romancista que analisa a psicologia e o dialogismo dos personagens ao mesmo
tempo em que faz realismo social.
A mística de Dostoiévski
parece-nos pobre para que ele possa ser tão levado a sério enquanto místico e
não artista. Igualmente, há quem levante a hipótese de que Porfiri sempre sabia
do crime. Porfiri seria, então, um anjo. No entanto, nota-se que surgiu outra
pessoa que confessou o crime cometido por Raskolnikov e o “anjo” Porfiri não descartou
a hipótese logo de cara.
No caso da obra de Luiz
Felipe Pondé, Crítica e Profecia, ligada a uma vertente mística como
toma Dostoiévski como profeta e um místico e não um artista, pareceu-nos que o
autor não dá conta da análise literária propriamente dita desse romance. Pondé,
como muitos russos, segundo Nabokov, considera Dostoiévski um místico. O que de
roldão desmistifica a ideia de que a obra de Pondé seja de alguma forma original.
Já Flávio Ricardo Vassoler, ao analisar Bakhtin, Marx e Adorno, avança
significativamente, principalmente ao notar a insuficiência do conceito de
dialogismo e polifonia de Bakhtin. Mas é preciso ir ainda mais longe.
Há, por outro lado, a
teoria de Bakhtin, que supõe que Dostoievski inventou uma polifonia, ou seja,
os romances teriam inúmeras posições ideológicas, não reforçariam as posições
reacionárias do autor do Diário de um Escritor. Posições essas que, a
despeito de Bakhtin, precisam ser procuradas em obras como Crime e Castigo
e não apenas questões de diálogos e estilo. E sem dúvida pode-se ler Crime e
Castigo como obra que rejeita as ideias liberais e receita ideias
religiosas em seu lugar. Assim, portanto, Bakhtin, ao refugiar-se nas questões
de forma, deixa de lado de investigar a ideologia reacionária religiosa de
Dostoiévski, escondendo-a. Mas pode-se dizer que Bakhtin escondeu-a porque
tinha seus motivos:
Bakhtin
já havia sido preso e exilado como membro confesso de uma subversiva organização
religiosa clandestina. ele teve um interesse vitalício por Dostoiévski, a quem
sua filha diz que ele considerava um reacionário político, mas “um grande
psicólogo” (KOSTOVA E BRIKLEY, 2022).
No entanto, Dostoievski,
embora não tenha um narrador fazendo pregações moralistas, como sói um
religioso conservador fazer, nem por isso não deixa de ter valores investidos.
Em Crime e Castigo, a conversão do estudante admirador de Napoleão (imperador
burguês ou assassino de monarquistas?) a arrependido religioso, espelhando a
conversão do próprio autor (que nunca se arrepende, porém), sem dúvida investe
valores positivos nos valores religiosos representados por Sônia e por sua
conversão. Quando perguntamos a respeito
de quem ajuda Raskolnikov, concluímos que Sônia o ajuda, o amigo Razumikhin
também, enquanto Lújin, Svridrigailov, Aliena Ivanova lhe fazem oposição. E em
quem ajuda são investidos valores positivos, em quem opõe, negativos.
Razumikhin manifesta-se
contra a ideia de que o criminoso é fruto do meio. E esse romance,
aparentemente, também é contra essa tese: Raskolnikov sem dúvida não é
influenciado por seu meio, pois em seu meio ninguém é capaz de algo semelhante:
sua mãe vive na pobreza, sacrificando-se para mantê-lo em São Petersburgo,
vivendo como viúva apenas da pensão do pai. E ele, por outro lado, nega seu
apoio para que a irmã case com Lújin e com Svridrigailov, homens mais ricos que
poderiam tirar a família da pobreza. Podemos dizer que Raskolnikov, ao
sentir-se oprimido pela dona da pensão, Aliena Ivanova, sente uma opressão
suplementar ao ser pressionado novamente pelo dinheiro. No entanto,
Raskolnikov, sem trabalhar e nem estudar, não oferece à família nenhuma saída.
Pelo contrário, ele afunda-se mais e mais ao cometer o crime.
Ele (e Dostoiévski
encaminha sua polifonia para isso) tende a se opor a essa tese e desloca a
análise do meio para as responsabilidades do indivíduo, isolando-o do social. O
ato criminoso seria responsabilidade de um abismo daquela subjetividade em si –
e não de uma ordem social criminosa em si. O próprio crime de Raskolnikov
aparenta ser o que é ali refutado pelo amigo Razumikhin: um protesto
enlouquecido contra um sistema social anormal. No entanto, nessa vertente
reacionária para onde as vozes dostoievskianas se encaminham, esse crime seria
um “delírio de um anormal”.
Essa é uma falha (também
notada por Nakokov, ao falar do assassino sensível e da prostituta evangélica),
ao meu ver, fundamental no romance: a psicologia do estudante de Direito, ou
mesmo ex-estudante, é muito diversa da personalidade criminosa. O estudante de
Direito com certeza pode aperceber-se que são muito mais comumente punidas as
delinquências populares. A tendência do estudante de Direito é de cometer,
depois de advogado, crimes de “colarinho branco”, ou seja, crimes ligados às
altas esferas da sociedade e, portanto, menos ou nada punidos.
Fora o evidente problema
que é criar um psicólogo que enlouquece, por exemplo. E também o problema em
dizer que Raskolnikov seria um rebelde, em seu próprio nome estaria referida
uma cisão da Igreja Ortodoxa russa. Há uma linha de pensamento que julga Raskolnikov
cheio de niilismo, ideias ocidentais como as de Napoleão e nessas ideias e suas
práticas estaria o mal.
No entanto, Raskolnikov
rejeita Rousseau, comenta que suas confissões são chatíssimas e compara-o a
Radischev, pensador russo que ele aparentemente despreza. Ou seja, Raskolnikov
é também um conservador. E, verdade seja feita, o estilo dialogista de
Dostoiévski, onde ele, como um reacionário sofisticado, disfarça-se nos
diálogos e vozes inúmeras, mas mesmo assim pode ser rastreado, é por vezes
também chatíssimo: há a clara impressões de várias pessoas em uma sala que
falam ao mesmo tempo. Além de digressões onde surgem reflexões sobre a religião
bastante acríticas, pias mesmo, próprias de um devoto, há uma multiplicação
descontrolada e irritante de subtramas e de personagens. De forma alguma sua
prosa é elegante e floreada como a de Nabokov em Lolita. A frase a
beleza salvará o mundo é com frequência mal interpretada. Há pouca beleza em
seu estilo, que é um estilo feio e complicado. A beleza, podemos dizer, é o
sofrimento. É o sofrimento que, para esse cristão neurótico, salvará o mundo.
Mas esse cristianismo
tem o problema de introduzir a ideia de que os bons tem de sofrer por serem
bons, ou seja, quem faz o certo, quem age bem, é altruísta, tem que sofrer. E,
quem não quer sofrer e nem salvar o mundo pode, por instinto, querer salvar
apenas seu próprio ego e ter prazer. Sendo assim, paradoxalmente, essas ideias
reforçam, por vias tortas, aquilo que elas querem combater: o niilismo no
sentido da destruição dos valores. Se para salvar o mundo e ser bom é preciso
sofrer, porque não apostar nessa vida mesmo e salvar o seu eu, obtendo prazeres?
Dentro da lógica de que é melhor aproveitar essa vida, essa que se tem uma vida
em mãos do que ter duas perdidas, acaso essa vida eterna e essa divindade não
exista e não nos julgue? E isso piora na medida em que, desde os primórdios,
por exemplo, da filosofia pré-socrática, verificou-se que os negros têm deuses
negros e os trácios louros, deuses loiros, ou seja, é bem possível que Deus é o
homem que inventa. E inventa e é útil socialmente, hoje em dia, para que o
pobre não mate o rico.
Outra: além do criminoso
estudando a personalidade criminal e fazendo artigo sobre isso, algo bastante
inverossímil, justamente porque não faz parte de sua psicologia, a
personalidade criminosa não é altruísta e a Raskolnikov são atribuídos gestos
altruístas tais como o gesto de passar todo seu dinheiro para ajudar a filha e
a esposa do seu amigo Marmieládov quando ele morre. A personalidade criminal é
egoísta e Dostoievski parece saber disso, mas Raskolnikov parece querer
atribuí-la aos “progressistas estúpidos”! Isso pareceu-me evidente quando ele
nega-se a fazer traduções de Rousseau e Bentham. Ele efetivamente, mais
adiante, combate esses autores, bem como Chernichevski, colocando esses
argumentos reacionários na boca do ajudante de Raskolnikov, Razumikhin, que assim
mostra-se um reacionário. Igualmente, ele associa a avareza da dona da pensão
ao judaísmo, um clichê antissemita: judeu é mão fechada, “piolho”, etc. Em
Irmãos Karamázov, sempre o pai Fiodor Pávlovitch) ao fazer seus negócios
desonestos, anda sempre acompanhado de um judeu, ou seja, os personagens
investidos de valores negativos são associados ao judaísmo (Aliena Ivanovna,
Fiodor Pávlovitch).
Não há amores bem
sucedidos em Crime e Castigo. A mãe de Ródia é viúva. Dúnia, irmã de
Ródia, tem dois casamentos com homens ricos (Lújin e Svridrigailov) frustrados
por Ródia, que é o homem da família. O que sugere, quem sabe, uma relação
incestuosa com a irmã Dúnia. O que há mais próximo de um amor é o amor de Ródia
e Sônia, mas Sônia é prostituta e redentora, corrompida e salvadora ao mesmo
tempo, Raskolnikov é o estudante progressista com problemas com a polícia e o
escritor conservador fanático e pró-czarista ao mesmo tempo, assim como
Dostoiévski.
Fala-se em
responsabilidade individual e o indivíduo como fruto do meio para tratar do
crime, colocam-se essas duas possibilidades em oposição. No entanto, nascemos
sem Deus e sem superego, sem internalizarmos as regras sociais. Essas regras chegam
de fora, vem do meio para o indivíduo. O ego será fraco para impor a si próprio
essas regras posteriormente, se elas não vieram com uma educação de berço. Bem
como a interpretação do texto dostoievskiano como repleto de símbolos
teológicos ortodoxos é uma intepretação que pressupõe que o símbolo religioso
no texto dostoievskiano emana do autor empírico, escritor religioso.
Igualmente, a teoria da
polifonia de Bakhtin evita discutir os conteúdos reacionários e religiosos,
ocupando-se prioritariamente da forma dialógica dos romances e outras questões
formais. Ao não discutir, de certa forma, Bakhtin esconde essa religiosidade e
o ideário de Dostoievski. E Bakhtin mesmo foi preso e acusado de participar de
uma organização religiosa clandestina.
Aliás, a fórmula deveria
ser: “Com Deus, tudo é permitido”, até matar mulheres grávidas. É ao unir-se a
um grupo de fanáticos religiosos que o ser humano assume posições tais como
matar grávidas, pois ali no seu seio dorme o filho do demônio.
Pode-se dizer que o que
se lê de Crime e Castigo é uma teoria falsa: há um lado diabólico em
todos nós, e, quando nos desfazemos de Deus através da mentalidade científica e
materialista, esse homicida é libertado e pensa, então, que sem Deus tudo é
permitido, inclusive o crime. O reencontro com Deus através da prostituta salvadora
Sônia, que é a sabedoria prostituída de Jesus (Platão prostituído para o povo?),
podemos dizer, reencena a própria vida de Dostoiévski, do revolucionário
fracassado ao escritor religioso maduro e consagrado. Na nossa sensibilidade
moderna, vemos com ceticismo as nobres prostitutas, mas possivelmente ao tempo
de Dostoiévski essa personagem era mais verossímil. Somos poupados de detalhes
sobre o exercício da prostituição por parte de Sônia, mas não dos detalhes do
assassinato de Aliena Ivanovna. Fora também sermos submetidos a essa cena, o
assassino e a prostituta deleitando-se com a Bíblia. Como explicou Nabokov:
Os
leitores não russos não percebem duas coisas: que nem todos os russos amam
Dostoiévski tanto quanto os americanos, e que a maioria dos russos que o amam o
veneram como um místico e não como um artista. Ele era um profeta, um
jornalista idiota e um comediante descuidado. Admito que algumas de suas cenas,
algumas de suas brigas tremendas e ridículas são extraordinariamente
divertidas. Mas seus assassinos sensíveis e prostitutas emocionantes não devem
ser tolerados por um momento - por este leitor de qualquer maneira (NABOKOV, apud:
SEIDEN, 2022).
Dostoiévski morre e
renasce, tal qual um Lázaro trânsfuga, do outro lado, do lado dos que o
prenderam, censuraram e puniram, validando, então, a punição a outros jovens
como o jovem Dostoiévski. Tanto que é inegável que Dostoiévski estava, em Os
Demônios, execrando o círculo revolucionário do qual participou e, em prol
do czar, demonizando seus antigos amigos, representando-os como monstros e
criminosos, pondo-se a serviço de seus algozes de anteontem.
Daí que Napoleão poderia
reprimir rebeliões e levantes de monarquistas e deixar muitos cadáveres, sem
ser responsabilizado legalmente por crime comum. Havia um contexto em que
Napoleão, enquanto militar, defendeu a ordem constituída e apoiada pelas massas
através da revolução. As massas são os verdadeiros super-homens. Podemos até
dizer que Dostoievski apresentou uma teoria do super-homem antes de Nietzsche.
Mas o sistema de pensamento de Nietzsche entende que o super-homem seria o
profeta de um novo sistema de valores, sistema esse do qual Nietzsche também
seria um profeta e que iria criar um “antes” e um “depois” para a humanidade. E
dificilmente Nietzsche leu mais minuciosamente a religião como bálsamo nos
romances de Dostoiévski, embora tenha elogiado sua psicologia e sentido a “voz
do sangue” (ou melhor: identificado nele o irracionalista e comungado com esse
elemento). Dostoiévski não propõe um novo sistema valorativo, ele apenas propõe
o antigo como solução, tal como Wagner propõe o cristianismo em Parsifal.
Sendo assim, podemos dizer que Nietzsche, se lesse melhor Dostoiévski e
compreendesse melhor esse psicólogo, bem possivelmente poderia considerá-lo
apenas mais um decadente.
Se o irmão do
revolucionário Lênin semeia a luta com seu sangue, o que Ródia faz é apenas
violentar uma outra pobre sofredora, uma pequeno burguesa como ele, que,
afinal, estava tão tomada pelo sistema capitalista que vivia mal vestida, com o
cabelo mal cuidado, guardando roupas em trapos, mas acumulando dinheiro e
objetos de valor. O czar era inimigo de classe, Aliena apenas uma outra vítima.
Há também o agravante que a usuária é comparada a um judeu e a um piolho, mas
não é somente uma coincidência, utiliza-se inclusive o termo “jid”, pejorativo
para judeu, para referir-se a ela. Isso já foi provado como algo recorrente em
outros textos do autor: seu antissemitismo, sua hostilidade aos poloneses
católicos.
Por outro lado, pode-se
dizer que Crime e Castigo estabelece relação possível com a biografia de
Dostoiévski, sua trajetória de jovem que tenta fazer a revolução e é punido,
tornando a sua narrativa ambígua. Raskolnikov não se arrependeu do que fez,
embora convertido.
3.Conclusão
Nesse ensaio, a partir
de um texto de Lukács a respeito de Raskolnikov, onde ele compara os
raciocínios de Raskolnikov aos dos bolcheviques para justificar a revolução,
entramos numa questão fascinante: embora muito lido como trajetória de um rapaz
que perde e encontra Deus, sofrendo por isso um castigo depois de cometer um
crime, visto à luz da biografia de Dostoievski, podemos dizer que o romance
espelha sua trajetória, sua busca, na juventude, da revolução contra o
czarismo, tendo sido preso e punido injustamente, por ligar-se a um grupo que
militava contra a opressão e a censura do regime czarista.
Raskolnikov tem de
progressista apenas a reverência a Napoleão. No mais, ele é antissemita e
conservador em relação a Radischev (o Rousseau russo). E, no geral, em relação
às ideias iluministas. Bem como Razhumikin, que aparentemente é um duplo de
Raskolnikov, apresentando as mesmas posições e deixando de chamar Ródia à razão
quando seria necessário, pois aparentemente ele revela o desejo de matar Aliena
Ivanova sem que isso seja problematizado pelo amigo mais a fundo.
Se considerarmos o
romance assim, podemos dizer que o crime contra a velha usurária passa a ser
uma metáfora da revolução que fracassa, leitura que não é nossa, está presente
na leitura de Aleksander Dugin. Dostoiévski nunca foi proibido na União Soviética,
apenas o enfoque estatal ficava em Recordação da Casa dos Mortos.
4.Bibliografia:
DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Crime e Castigo. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.
DUGIN,
Aleksandr. Meu Nome é Machado e as Metafísicas de São Petersburgo. <http://revistacidadesol.blogspot.com/2022/12/meu-nome-e-machado-dostoievski-e-as.html>>.
LUKÁCS,
Georg. O Bolchevismo como Problema Moral.<https://nucleopsolisegoria.files.wordpress.com/2014/04/lukc3a1cs-g-o-bolchevismo-como-problema-moral.pdf>>.
KOSTAVA,
Raina; BRINKLEY, Tony. Irmãos de Stálin Karamazov. VOLUME II, Nº 4 –
ENSAIO IRMÃOS DE STALIN KARAMAZOV 7 DE JUNHO DE 2011
<https://hungarianreview.com/article/stalin_s_brothers_karamazov/>>.
Acesso em 23/02/2022>>.
PONDÉ. Luiz Felipe. Crítica
e Profecia. São Paulo: Edusp, 2003.
ROSA. Virgínio Santa. Dostoiévski:
um Cristão Torturado. Rio: Civilização Brasileira, 1980.
SEIDEN,
Melvin. Nabokov e Dostoievski. <<https://www.jstor.org/stable/1207440>>.
VASSOLER.
Flávio Ricardo. Dostoiévski e a Dialética: Fetichismo da Forma, Utopia
como Conteúdo. Sâo Paulo: USP, 2015. Tese de doutorado.