Só
Deus Cria a Rosa: Dora Lúcia Pinto
Dora era costureira. Dora
Lúcia Pinto. Morreu há alguns anos, mas eu ainda passo por sua casa, ela ainda
existe, tornou-se salão de beleza, depois estúdio de tatuagem. Essa era também
a casa de seus filhos Edelweiss e Orlando, e das netas Adriele e Priscila.
Orlando Amaral Pinto foi na juventude foi um de meus melhores amigos. Eu
frequentava essa casa.
Ao passar os olhos por ela, buscando
lembrar-me como era, avistei uma rosa, há uma roseira florindo num pequeno
jardim lateral, muito esquecido. Essa roseira está ali há muitos e muitos anos?
Fico pensando se foi Dora quem a plantou, se já estava ali naquele tempo.
Orlando contou-me que, antes de nos conhecermos, lembrava-se de mim ali perto,
numa venda que havia numa esquina próxima e que tinha de tudo, ao estilo do
antigo Xavier da Avenida das Palmeiras, bonecas penduradas no teto, etc. Ali
comprávamos suspiros, maria mole, esse último era um doce que vinha com anéis
com um brinde, um anel de joias falsas, esmeraldas de plástico, claro, mas
achávamos muito charmoso dar esses anéis às meninas.
Orlando, como eu, é cinéfilo,
gostava muito do cinema do polonês Kieslowski. Eu ouvia muito uma canção de
Zgbiniew Preisner ali, a Canção da Reunificação da Europa. Vimos um
filme dele, A Fraternidade é Vermelha, com Orlando pausando no vídeo
praticamente cena por cena, comentando a relação da moça com um juiz. Orlando
também, pacientemente, gravou uma fita cassete para mim com canções da banda Joy
Division. Era a tecnologia da época: copiar as músicas do disco de vinil
para fita cassete.
Com
frequência, eu e Orlando ficávamos vendo filmes, Dora fazia uma comida à noite,
fazia um incrível mexido, misturava a comida da hora do almoço e sua comida
tinha um tempero maravilhoso. Dora fazia aquela “comida de vó”, temperada com
amor. Dora tinha uma filosofia de vida própria, uma “lição de coisas”
drummondiana, ela dizia que precisávamos encontrar a ordem natural das coisas,
as coisas têm uma ordem natural, não nos cabe ir contra, desde que o samba é
samba, como diz Caetano.
Bruce
Lee também tem uma filosofia semelhante. Ele dizia que deveríamos ser flexíveis
como a água: a água, quando é colocada na xícara, torna-se a xícara. Orlando
era também um grande admirador de Caetano Veloso, que cantava o “tranquilo e
impassível” Bruce Lee.
Pouco tempo depois de meus avós
falecerem, visitei a casa deles, uma casa bem próxima da de Dora, mas ao
contrário da de Dora, a deles logo a seguir foi posta abaixo. O terreno ficou
ali na esquina da Vigário Nicolau e Coronel Tininho, até hoje nada ali foi
construído devido a problemas com uma empresa construtora e fica ali aquele
lote com ruínas ao lado do Salão São Vicente. Ao ver as ruínas, lembrei-me que
Vovô Mário comentava que sua tia sempre rezava uma oração, um Ato de
Contrição que tem uma versão católica longa: "Pesa-me também por
perdido o céu e merecido o inferno, e proponho firmemente...” Eu reencontrei,
numa parede, uma sombra de vovó Irene, pintada pela filha Marlene, bem como uma
frase da oração que a tia de vovô, Aristoclina, creio, rezava. Quando a casa de
meus avós foi destruída, finalmente, nos jardins sobraram apenas algumas
plantas acuadas. Sobrou apenas um toco seco daquela velha roseira. A rosa de
Dora é mais insistente, insiste ainda em dar flor. É como dizia o poeta Altino
Caixeta, poeta de Patos de Minas, no poema Criação: “A ostra cria a
pérola/Para se distrair do mar./O poeta cria a beleza/ Para distrair-se do
efêmero. /Só Deus cria a rosa/Para distrair-se do eterno.”
Ao ver a insistência da rosa de
Dora, ouço de novo a casa ressoar aos acordes da canção de Preisner que a gente
ouvia no filme Liberdade é Azul, aproveitando a Epístola de São Paulo
aos Coríntios. A canção diz, em grego: “Se eu falasse a língua dos homens,
se eu falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria”. Tranquila e
impassível Dora. A ordem natural das coisas: só Deus cria a rosa.