quarta-feira, 20 de março de 2024

Dois Escritores Bom-Despachenses: Denise e Vivalde Brandão

Dois Escritores Bom-Despachenses: Denise e Vivalde Brandão Nascida em 1965, em Bom Despacho, Minas Gerais. Psicóloga graduada e pós-graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membra ocupante da cadeira 21 da Academia Bom-Despachense de Letras, tendo Hilda Hilst como patronesse. Denise Coimbra, literalmente, esteve em Coimbra: Sinto que nasci no dia 5 de outubro de 1143, quando D. Afonso Henriques venceu a guerra contra os mouros, embora a certidão registre 28 de outubro, em Bom Despacho, Minas Gerais, há 48 anos. É que Portugal está tão presente na escritora, que trago em minha bagagem, além de pratos e azulejos, memórias vividas e inventadas pelos meus personagens. Revelo assim as suas dores e aventuras, registradas durante minhas viagens para Óbidos, Coimbra, Sintra, Porto e Lisboa. Subterfúgio, refúgio, não defino, senão deforma. Denise já fez crônicas para esse Jornal de Negócios, com suas observações sempre refinadas e politizadas. Em 2007 participou do Concurso de Contos do SENAC Minas e teve o conto “A Primeira Vez” publicado na revista eletrônica do SENAC. Ela publicou em 2014 o livro de contos 54, Rua da Alfândega. Desde 2020 é presidenta da Academia Bom-despachense de Letras. O prefácio de Melânia Costa traz uma passagem que descreve muito bem a sua “alma encantadora”: Em seu primeiro livro de contos, Denise ambientou as histórias no Rio de Janeiro e nem notamos que é um livro de uma mineira e não uma carioca. O próprio nome do livro deriva de uma rua do Rio de Janeiro. Denise utilizou muito bem o gênero cartas para ajudar a contar suas histórias. Também adoro receber e escrever cartas. Rua 54, os contos Renascimento e Recomeço são reflexões de Denise sobre como a vida é trágica: todo início traz em si o fim. Mas Denise também trabalha com o otimismo dialético do renascimento. Seus textos trazem intertexto com as Artes Plásticas (Pablo Picasso, Leonardo Da Vinci e a obra Guernica em A Primeira Vez) e outros autores (Tchécov, escritor e dramaturgo russo), em A Pensão e a Senhora, bem como a Bíblia no conto Os Fios da Memória. Denise, além de psicóloga, escritora, é importante ativista e agitadora cultural em nossa cidade. Destaco sua atitude iluminada durante a pandemia, lutando por vacina no braço, comida no prato, vida ao SUS. E recentemente atuou maravilhosamente um sarau poético no Memorial Nossa Senhora do Bom Despacho. O que produziu a foto que ilustra essa crônica. Vivalde Brandão lançou o livro Mínimo Campos (ed Sete Letras, 2023) em Bom Despacho no dia 18 de novembro de 2023. Anos atrás, conheci o Vivalde como letrista de belas canções populares, em parceria com Ronniere Menezes e agora conheço a musicalidade de sua prosa: Canção do Copo Azul de Araújos, Primeira Moda de Viola, Segunda Moda de Viola. A canção é a canção da vida cotidiana e a morte está no bicabornato, ao fisgar uma sucuri como se fisga um peixe. Vivalde, como a coruja, domina com sabedoria o espaço poético. Ele está em volta das cruzes, em meio às igrejas e as estrelas. São palavras assim que ele saboreia. Saborosa é a prosa de Vivalde ao falar do bar Flor de Liz: “O Flor de Lis pertencia ao Seu Ari que naquela época andava ganhando dinheiro com cristal. Em frente ao Flor de Lis onde tem a pracinha arborizada com um largo grande cascalhado com muita pedrinha de cristal que brilhava quase o dia inteiro”. O livro pode ser analisado em três polos a partir dos quais ele estruturou-se: o olhar da criança, o do poeta e o olhar do “Juca Doido”, o olhar do louco. Há um Juca sábio, Juca Rufino, a quem o livro é dedicado, e o seu duplo, o Juca Doido. O Juca Doido é um personagem apresentado em meio a um mundo mágico que aparentemente opera fora da lógica comum: “Juca Doido deu um tiro no ouvido. A bala entrou numa orelha e saiu na outra”. É um universo em que a criança, o doido e o poeta têm mãos “tão poderosas quanto rosas”. Sérvulo fez um prefácio e Tadeu Teixeira fez o texto de apresentação que ficou nas “orelhas” do livro. Sérvulo destacou a fusão de poesia e prosa, de forma feérica (mágica), Vivalde desenvolve. Tadeu notou a presença da oralidade em um registro de vanguarda, tal como no poema Interlúdio. Para poder evocar imagens poéticas de sonho e fantasia, recriando a sensibilidade da infância, o poeta Vivalde enumera loucamente substantivos sem vírgula e ponto final para criar um clima onírico, um ambiente de sonho onde o louco sábio, o poeta e a criança convivem. No olhar da criança, “não existe onça e nem distância”. O Buíque do Sô Preto cruzou “todos os campos e várzeas e pontos que existiam na face da terra”. Vivalde investiu, em sua prosa poética, na liberdade de imaginação e em relação à gramática. Assim como ele não se atêm ao realismo, ele também está em busca de uma gramática própria. É um olhar que humaniza os animais e a natureza. Junto aos animais, estabelece uma relação intensa: “Lá estava Lucas igual a um sapinho”. A descrição dos sapatos marrons e brancos, mas com presença intensa, faz lembrar o quadro de Van Gogh em que dois sapatos usados brilham à luz de suas pinceladas, parecendo ser luminescentes, ou seja, produtores de uma luminosidade própria. A criança, por vezes, vê a si mesma de fora, de gravata borboleta, com uma garrafa de guaraná nas mãos. O olhar do poeta assume a iniciativa, fixando uma imagem de si mesmo. Estilo e luz própria são duas coisas que abundam no livro de Vivalde. Duas passagens, onde o caso (narrativo) e o poético se misturam: O Bilhete e Flor de Liz chamaram-me a atenção, por sua cor local: “a seca de 1887 foi brava e o Picão viro um tantinho onde a criação mal conseguia beber”. O desfecho de O Bilhete é muito emocionante: por vezes, entre farrapos, está embrulhado um sujeito de grande sorte. Vivalde nos faz, como adultos, rir lendo sua “desconversa” sobre a chuva, a luz na varanda. O poeta é como a criança, a felicidade está ao alcance dos olhos e do coração, algo tão difícil para nós, adultos: basta ver besouros enterrando a bosta das vacas. É fácil “virar Jesus”. Jesus está em meio às crianças, da cachorrada, do cotidiano. Mergulhemos então nesse universo feérico de Vivalde Brandão. Olhemos os lírios do campo e do contracampo.

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