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quinta-feira, 29 de agosto de 2024
País dos Privilégios (Bruno Carazza dos Santos, Companhia das Letras, 2024)
País dos Privilégios (Bruno Carazza dos Santos, Companhia das Letras, 2024)
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Bruno Carazza, nesse livro, resolve um problema importante, e que tinha ficado no ar na pesquisa de Raymundo Faoro: quem são os donos do poder no Brasil? Faoro não tinha entrado em detalhes, o que deixou margem para o uso oportunista dessa ideia de que existe uma casta que suga o estado: Collor falou em combater os “marajás”, Guedes atacou os “parasitas”, fazendo, então, um ataque a todo o funcionalismo público, privatizando estatais como Embrafilme, etc. Eles o fizeram em favor de um setor de empresários que podemos chamar de burguesia compradora, que tem menos interesse em um estado estruturado, contra o outro setor, o burocrático. A escolha de comentar Vargas e Fernando Pimentel do PT nessa introdução feita por Bruno fez reverberar essa disputa entre esses dois setores, uma vez que Vargas e PT são caracteristicamente ligados a esse setor da burguesia que chamamos burocrático, mais ligado ao estado. Ele elenca o funcionalismo público privilegiado: magistrados, Ministério Público, elite dos poderes executivo e legislativo, políticos, militares, cartórios. A partir dessa pesquisa rigorosa, Bruno Carazza nos fez um grande favor, pois evita a utilização demagógica desse pensamento daqui em diante. Bruno tem a consciência da autocrítica e comentou que o estado brasileiro não é inchado em relação aos países desenvolvidos do mundo (embora ainda tenha se feito presente em País dos Privilégios o termo “estado inchado”, sugere-se a sua retirada em uma nova edição). O próprio autor comentou, de forma bastante lúcida que “o tamanho do corpo dos servidores públicos do país é bem menor do que o apregoado pelos defensores do estado mínimo” (CARAZZA, 2017, p. 154).
Por outro lado, livro baseia-se em pesquisa empírica, traz dados, mas não consta de País dos Privilégios a bibliografia recente a respeito do mesmo tema, o texto Elite do Atraso, de Jessé Souza, bem como amplo debate a respeito de Faoro realizado por Leonardo Avritzer no site A Terra é Redonda. Visto à luz das reflexões de Jessé de Souza, o texto de Carazza adota o que Jessé chama de vira-latismo e racismo culturalista (por pensar no Brasil em um país pior do que os outros), bem como apresenta um pensamento liberal que aponta corrupção de origem cultural lusa presente no estado como maior de nossos problemas (o que, para Jessé, leva aos abusos da lava-jato). Como explicou Jessé de Souza:
A partir de Raymundo Faoro, inclusive, o mercado passa a ser visto como o céu na terra, prenhe de virtudes democráticas que apenas o estado não permite florescer. O cidadão comum é convidado a ver o mercado como competição real do mais apto, como nas padarias da esquina que disputam quem produz o melhor pão. Nada é dito sobre o grande mercado controlado por monopólios que fraudam a sociedade sob a forma de controle de preços, juros extorsivos e assalto ao orçamento público, via isenções fiscais fraudulentas, sonegação de impostos, etc (SOUZA, 2019, p. 146).
Podemos dizer, à luz de Jessé Souza, que o título colocou uma excepcionalidade do Brasil em termos de privilégios que não cabe. Se são privilegiados os funcionários públicos brasileiros, o quanto o são os funcionários do complexo industrial-militar estadunidense que presidiram a invasão do Iraque? Em todo mundo, o poder está nas altas esferas do poder e nos escritórios das multinacionais. Curioso como surge a ideia de um capitalismo já estruturado em Portugal:
Utilizando um conceito formulado por Max Weber, Faoro classifica como “capitalismo politicamente orientado” a estratégia inaugurada por D. João I e seguida por todos os monarcas que o sucederam nos séculos posteriores, de se lançarem ao mar em busca de novos negócios (CARAZZA, 2024, p. 15).
Faoro, ao nosso ver, deixa-se levar demais por autores portugueses que postulam que a primeira revolução burguesa foi a revolução de Avis, bem como a hipótese de que não existiu feudalismo em Portugal, primeiramente colocada por Jaime Cortesão, mas que parece ter se tornado hegemônica. Para Weber, existem dois tipos de “capitalismo”, o politicamente orientado, em que o estado tem um papel, e o economicamente orientado; mas nem Weber e nem Marx falaram sobre o precoce “capitalismo” português em suas obras. Como deixariam de ter detectado os fenômenos mencionados pelos portugueses, a não- existência do feudalismo (o que faz pensar que o capitalismo é o mesmo que trocas comerciais) e a tal revolução burguesa pioneira?
Portanto, “capitalismo” não nos parece um termo adequado. O melhor seria, sim, o mercantilismo, a penúltima fase do feudalismo. O capitalismo ainda estava embrionário. E equívoco veio de Faoro. Faoro pensava que o mercantilismo era o primeiro passo para o capitalismo industrial. Ao nosso ver, muito do que Carazza apontou no passado deveu-se à presença dos estamentos feudais, para os quais não havia diferença entre público e privado, bem como da exportação do feudalismo para o Brasil e suas sobrevivências atuais (restos feudais, sob a forma de latifúndio). A ideia de soberania popular surgiu no tempo do Iluminismo e procurá-la em tempos anteriores pareceu-nos anacronismo, bem como a imutabilidade desse estamento no decorrer das épocas. Quando Portugal exportava para aqui um certo número de nobres (citado por Bruno), de forma alguma ela era numerosa em relação à população da colônia. Eles eram algo bem diferente do funcionário público hoje existente. Eram grandes proprietários de terra e executavam poder de vida e morte sobre seus comandados, sempre em nome do rei e da Igreja Católica (existia fusão estado e Igreja Católica, vale lembrar, traço tipicamente feudal).
Prosseguindo, para Bruno Carazza, “após aportar no Brasil em 1500, os portugueses implantaram por aqui esse mesmo sistema extrativista” (CARAZZA, 2024, p. 15). A grande questão aqui é que não importamos o mesmo sistema extrativista e sim algo mais atrasado e, que, segundo Jessé Souza, nos moldou, o escravismo. Podemos supor que não exportou o “capitalismo”, mas predominantemente escravismo e feudalismo, embora também outros modos de produção não hegemônicos, como o capital mercantil. O açúcar no Nordeste já era plantado com auxílio de capitais holandeses.
Isto posto, pode-se esperar que tais pontos sejam debatidos nos volumes a seguir de País dos Privilégios (trata-se de uma trilogia).
Bibliografia:
CARAZZA, Bruno. País dos Privilégios. Companhia das Letras: 2004.
Raymundo Faoro, Críticas Equivocadas >.
SOUZA, Jessé. Elite do Atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
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