quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Quita

Quita Quita é a nossa última Angélica, filha da penúltima Belchiorina. Vê-la anoitecer dói. Busco no fundo do baú a contadora de estórias e ela vem assustando com os “causos” de assombração. O frio do medo gela, os olhos crescem, mas ninguém arreda pé. A alma penada errante acompanha uma procissão portando um osso amarelo de canela e as vozes fúnebres se repetem tediosas. O que era um “osso de canela”? Ela mostrava com um toque a perna morena e dava sequência ao causo com seu caipirês magnético. Agora era um homem que acorda no meio da noite com um peso enorme “em riba da sua cacunda”. O infeliz sente “a coisa” e grita “_ arreda!” O que vem depois perde-se na névoa da infância...os ouvintes pasmos crescem, Quita sente o vórtice da vida, tal qual a flor arrastada pela fonte no poema de Vicente de Carvalho: “A Flor e a Fonte”. Não há escolha: a correnteza arrasta. E lá vai a nossa Quita, triturada. Adiante, onde ficam os cabelos rebeldes cacheados, o porte majestoso, a voz veludosa? A gente se perdeu de Quita, a vida nos arrastou em diferentes cachoeiras. A professora rural, a cantineira, a merendeira, tempestuosa corredeira que acaba na inexorável decrepitude. A Rádio Nacional, fonte das estórias de assombração – ainda bem que perguntei a tempo –findou-se também, faz tempo... E no humor Quita também surpreendia. Havia o caso da moça bonita assediada que ofereceu um figo ao assediador e ele “indaga”: “De onde o tiraste tu?” A rima curta nem pedia resposta. O mundo que Quita nos abriu era anedótico, tétrico, emocionante. Que nem uma montanha russa. Uma tirolesa, um trem fantasma. Mais que isso, só a vida verdadeira. Uma surpresa a cada esquina. Um vendaval, um por do sol, um luar do sertão. Um redemoinho. No Córrego d´ Água, a roça pacata que a viu crescer, tudo isso era banal. A água de cisterna, a caçamba descendo cantante. As lamparinas. O pai dela, meu tio tristonho, de poucas palavras, mas de um fundo tão doce, de bondades caladas. As longas caminhadas, porque o trem passava longe e a gente tinha que acabar de chegar. Quita vinha à cidade para as festas religiosas, Semana Santa em especial. Bom Despacho pequena e poeirenta, suas luzes macilentas, a matraca, Jesus e sua cruz, Verônica mostrando a face sangrenta no lençol branco e dizendo aos homens, em latim, que parassem e vissem se há dor maior; a procissão e suas velas acesas, a noite de lua cheia –por que a sexta-feira da Paixão sempre é enfeitada por uma lua cheia especial e –impressão minha –sempre acabava em chuva, tropeços, correria? A ruína de Quita, a nossa última Angélica, me fez pensar em Virgília, a imponente ruína ao final de Brás Cubas, em “Memórias Póstumas”...Pobre Quita, sempre tão reta, sensata, agora confusa...anoitecer é fatal. Tudo muda: hoje não seria natural contar casos de assombração a crianças: celular não as arrebataria mais? A Quita que minha memória registrou tinha o riso em cascata e a resposta pronta. Foi assim que ao final da adolescência, tendo se tornado bastante alta para os padrões femininos da época, passou por uma mesa onde um homem baixo bebia sua caipirinha e lhe dirigiu um comentário meio grotesco –“Cristo, como é possível crescer assim, crescer sem parar?!” –Jesus, como é possível beber assim... Beber sem parar? Indagou ela de volta. Um dia Quita cismou que iria ser freira, arrumou seus arranjos em uma “capanga” e se mandou de casa. O pai, perplexo ao saber da decisão da filha partiu atrás...foi encontrá-la na estação, esperando o trem. A volta humilhante, superada com muita reza, já no dia seguinte era página virada e a vida seguia... O amor, com suas ciladas, a ninguém poupa. Lembro-me vagamente de um rapaz bem apessoado, que diziam “de posses” e a paixão produzida e escanteada. O correr dos dias lava a alma. Os estropiados de hoje são os altaneiros de amanhã. Ei-la, pois, feliz de novo e pronta para as novas surpresas, o sorriso largo de volta ao rosto. Guilo chegou tardiamente, quando Quita, menos buliçosa, parecia render-se à solidão. E veio Aline. O cantor Christophe motivou o nome, por sugestão de Bete. E Quita adotou Maria, filha da última Belchiorina, aquela que morreu a caminho de uma reunião na escola rural onde os filhos estudavam. De nossa genealogia que remonta às raízes de Bom Despacho, ficaram as memórias de nosso bisavô ébrio, autor de poemas românticos perpassados de cortante ironia e humor. Nosso primeiro jornalista, dizem. Trágico viúvo de Angélica – a Quitinha. Nosso avô (genro daquele) negociou fiado a última junta de bois. A ruína financeira da família já evidente. Os netos dos antigos proprietários da Piraquara passaram a empregados. Os escravizados (quando havia aquela aberração histórica) foram deixando espontaneamente aquela família sucumbida, segundo testemunho de minha avó. Meu tio, pai de Quita, lidou sozinho em sua pequena propriedade, de sol a sol, até findar-lhe a saúde. Quita é o resumo das glórias e falências. Tão cheia de vida e agora fechada em si, meio esquecida. Tão espirituosa, mesmo depois de aposentada vendedora da Avon era recebida sempre com carinho pelo dedinho de prosa que oferecia, sem pressa. A doença não lhe tirou a doçura nem a generosidade, mas lhe fez crescer um medo mórbido de tragédias familiares, de que algo aconteça com suas crias... Esteja em paz, Quita. A flor nada pode quando a correnteza a arrasta, senão aproveitar o canto da água, o relevo e a vista deslumbrante à sua volta. Sempre haverá um céu azul ou um anoitecer glorioso. Se uma assombração surgiur nessa trajetória, acene para ela e prossiga. É essa a vida: se deixar levar. No final, o grande mar aguarda todos os regatos, rios ou riachos. Seremos apenas uma gota d´água a mais, mas estaremos plenos, completos e infinitos.

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