Revista Cidade Sol
Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Quem sou eu?
Quem sou eu?
Por Canek Sánchez Guevara
Oaxaca (México)
Nasci em Havana em 1974, numa mansão em Miramar, na Quinta Avenida: enfim, no meio da Aristocracia, na esquina da Burguesia. A vida em casa, porém, era tudo menos burguesa. Além dos meus pais (Hilda Guevara Gadea e Alberto Sánchez Hernández), morava lá um grupo de guerrilheiros mexicanos que chegaram à ilha há alguns anos . Não eram Técnicos Estrangeiros nem nada parecido, eram uns malditos encrenqueiros que estavam em Cuba - digamos - sem terem sido convidados pelo governo (ou seja: sequestraram um avião no México e pousaram em Havana; para fazer a história curto ).
(Da esquerda para a direita: Hilda Gadea, primeira esposa de Ernesto "Che" Guevara e aquela que o apresentou às ideias comunistas, Ernesto "Che" Guevara e nos braços Hilda Guevara Gadea, mãe de Canek) --->
Acho que aí moravam naquela casa umas doze ou quinze pessoas, não sei - claro, minhas lembranças daquela época não são minhas, mas lembranças de lembranças de outras pessoas, lembranças de conversas, enfim. A dada altura, os rebeldes mexicanos (comunistas, anarquistas, socialistas libertários, sei lá) decidiram que esta realidade socialista estava longe do ideal de liberdade que tinham, por isso enviaram a realidade para o inferno e deixaram Cuba em busca da Ideia. (Lembro-me que alguns deles foram até convidados a deixar o país...). E lá fomos todos – eles me levaram, quero dizer – para a distante Itália.
Durante a década de 1970, a Itália era um foco de refugiados latino-americanos de todas as tendências esquerdistas. Não “refugiados” no sentido passivo do termo, mas militantes das suas respectivas causas no exílio. Havia argentinos, colombianos, nicaragüenses, salvadorenhos, peruanos e sim, mexicanos também. O que meus pais fizeram na Itália é algo que não diz respeito ao texto em questão, basta saber que quando me perguntam algo relacionado a canções infantis, eu sempre respondo: Bandiera Rossa... Sim, acho que Bandera Roja e La Internacional foram as primeiras músicas que aprendi quando criança. Lembro-me (não sei porquê) que naquela época usava sempre uma pulseira de couro preta com um punho verde azeitona pendurado no pescoço. Também tenho vagas lembranças (como flashes) do minúsculo apartamento em que morávamos em Milão. Sério minimalista...
Quando eu tinha cinco anos, minha mãe e eu voamos para Havana. Durante vários meses (e vocês sabem como é o tempo na Era das Crianças: um verão pode ser infinito e um ano inteiro apenas um segundo) moramos num apartamento num prédio novo, logo atrás do hotel Riviera. Na realidade eram dois edifícios, um deles denominado Microbrigada, com cerca de sete pisos, pequenas janelas e varandas ainda mais pequenas. E eu me diverti muito: havia tantas crianças com quem brincar, tanto sol e tanta vida...
Bom, naquele ano em Havana frequentei a pré-escola e, francamente, não tenho muitas lembranças da escola... Na verdade sim: lembro-me dos dias da vacinação (vocês não têm ideia de como eu era - sou - covarde em relação às injeções). Lembro-me também de um par de gêmeos (jimaguas) que juntos eram um verdadeiro desastre, e agora me vêm à mente as intermináveis repetições de exercícios caligráficos. Enfim, coisas pré-escolares.
Depois desse curso, minha mãe e eu viajamos para Barcelona para conhecer meu pai. Passaram-se alguns anos desde a morte de Francisco Franco (falo de 79 ou 80) e a esquerda estava, por assim dizer, libertada. Meus pais sempre colaboraram com sindicatos e diversas publicações, tanto jornais quanto revistas de esquerda. Eles colaboraram profundamente, quero dizer.
O fato é que cresci entre redações e manifestações de três dias; a sala escura de revelação e um show de rock; entre mesas de design e discussões intermináveis sobre o sujeito e objeto da revolução. Estudei o primeiro ano do ensino fundamental em uma escola bilíngue (espanhol-catalão) de acordo com o discurso libertário da época na Espanha: o resgate das Autonomias e de seus valores culturais, a começar pela língua, claro. Lembro-me dos meus amigos argentinos, filhos de refugiados amigos dos meus pais, e lembro-me também das discussões abertas que os adultos tiveram à mesa – e dos vinhos – sobre a revolução permanente, global, num só país, não sei ; e sempre citando nomes em russo, alemão, italiano ou francês (vamos lá, não me lembro do que estavam discutindo, mas do fato de discutir - algo que, claro, se tornou parte intrínseca do meu ser). Não entendi nada e, para ser sincero, também não me interessei: se o Batman luta pelo bem, com o que esses idiotas se importam, pensei...
O meu pai conseguiu regressar ao México quando o Presidente López Portillo emitiu uma amnistia geral para todos os envolvidos nos movimentos armados dos anos setenta. Minha mãe estava grávida de sete meses e eu tinha sete anos. (Aqui devo esclarecer que há apenas dois anos, quando saímos de Itália, pude dizer abertamente os nomes verdadeiros dos meus pais, sempre sujeitos ao rigor da clandestinidade. A minha família era então a companheira de viagem dos meus pais, e os seus nomes —os de todos eles—outros bem diferentes dos reais...) Meu irmão Camilo nasceu em Monterrey, cidade de onde é meu pai e no meio de sua grande família paterna, tão estrangeira e ao mesmo tempo acolhedora tempo: o desconhecido para mim.
Pouco antes do primeiro aniversário do meu irmão, nos mudamos para a Cidade do México – uma massa impressionante que contém um mundo incrível – e meus pais, por ironia ou sei lá o quê, me matricularam em uma escola chamada José Martí. Meu irmão era asmático e estudei um ano e meio naquela escola. (Sei que uma coisa não tem relação com a outra, só estou tentando resumir dois fatos em uma única frase). Camilo passou o segundo aniversário numa câmara de oxigênio do hospital perto da nossa casa, e a casa inteira media cerca de sete metros de comprimento por quatro de largura: a sala também era o quarto dos meus pais, com a cozinha de um lado, mal separada. perto de um bar ou de uma mesa, não me lembro. O banheiro micro-mini-nano e um cômodo estreito que Camilo e eu dividíamos completavam nossa casa.
Tive três bons amigos quando morei naquele lugar; Um deles morreu, não voltou das férias e quando perguntei a mãe dele, ela começou a chorar. Aí minha mãe me explicou. Foi meu primeiro contato com a morte. Perdi muitos amigos. (O confronto com a Morte, diz Savater, marca o início do pensamento nos humanos. Quando você pensa na morte pela primeira vez, na verdade você pensa pela primeira vez porque a morte desperta a consciência da vida, desperta o medo. e levanta questões também ...)
Concluí a escola primária na Cidade do México, numa pequena escola da qual guardo boas lembranças e onde fiz bons amigos. Naquela época morávamos na zona sul da cidade, num conjunto habitacional com quarenta e sete prédios, lembro bem. Ficava perto da Universidade Nacional, então alguns professores e pesquisadores daquela instituição moravam... com suas famílias, claro. Durante as ditaduras latino-americanas da década de 1970, o México acolheu muitas pessoas perseguidas politicamente de várias nacionalidades, especialmente argentinos e chilenos. Alguns deles encontraram trabalho na UNAM e alguns viviam em edifícios próximos ao meu. Na verdade, meu melhor amigo naquela época era um chileno de quem me lembro com muito carinho... desde então nos vimos algumas vezes, ainda somos amigos. Tínhamos um pacto entre nós, um segredo que ninguém mais deveria compartilhar: éramos comunistas... (isto é, sabíamos que havia algo diferente no nosso passado, na nossa história, e tínhamos a vaga ideia de que uma vaga o sentimento de justiça justificava essa diferença... Enfim, um trava-língua bastante infantil).
Minha mãe, meu irmão e eu fomos morar em Havana no verão de 1986 e logo depois ingressei no Colégio Carlos J. Finlay, na Línea e G, no coração de Vedado. Honestamente, foi um choque tremendo. Não tanto pelas diferenças tangíveis, materiais, mas pelas outras, pelo incorpóreo, pelas não-coisas: de utopia ou de conversa, a revolução tornou-se para mim uma realidade absoluta. Vamos nos entender, eu não entendia absolutamente nada da revolução, apenas sentia que ela era o cerne da nossa vida (da vida que vivi com minha família) e que era algo que só se falava em voz alta quando você estava em confiança. Na verdade, a minha relação familiar com Ernesto Guevara nasceu em Cuba, onde fui inevitavelmente batizado como neto de Che, e isso aos doze anos.
Foi-me difícil aprender a lidar com aquela suficiência revolucionária tão cheia de lacunas, com aquele discurso que se contradizia quando saí da sala de aula e com a maldita obsessão de alguns dos meus professores com a ideia de que eu tinha que ser o melhor. Por outro lado, lembro com especial carinho do meu professor de espanhol, a quem sempre agradecerei pela severidade com que revisou o meu trabalho; a um certo professor de Matemática com quem fiz amizade imediatamente, e a outro da mesma matéria, que era ao mesmo tempo sério e bem-humorado; Lembro-me de uma professora de Química com quem não aprendi muito mas gostei muito dela, e de uma professora de Fundamentos do Conhecimento Político que, involuntariamente, me fez pensar.
Ser neto de Che era extremamente difícil; Eu estava acostumada a ser apenas eu e de repente começaram a aparecer pessoas me dizendo como me comportar, o que devo fazer e o que não devo fazer, o que dizer e o que devo calar. Imagine, para um pré-anarquista como eu, isso era demais. Claro, insisti em fazer o oposto. Meus pais me criaram (assim como meus irmãos) com absoluta liberdade. Na verdade, às vezes penso que fui criado para ser desobediente... embora talvez esteja apenas procurando desculpas, não sei. A verdade é que logo comecei a me sentir incomodado com esta situação.
Morávamos num apartamento espaçoso e confortável (talvez o único inconveniente fosse que ficava no décimo segundo andar e o elevador raramente funcionava), mas bem longe da nomenklatura. Dos poucos contactos que tive com a "alta sociedade" cubana não tenho recordações memoráveis (e não incluo aqui os bons amigos que encontrei nessas camadas: poucos mas sinceros), excepto o gosto amargo que senti ao comparar as suas palavras e seu modo de vida com as palavras e a vida do chamado Povo. Mas eu era ainda adolescente, faço as avaliações agora, naquela época não entendia direito.
Não quero que passe pela sua cabeça a ideia de que fui uma criança superdotada ou algo parecido, fui simplesmente educado em análise, e a análise disse que algo estava errado. Digamos que ele soubesse sem compreender; ou que eu entendi sem saber ao certo o que diabos estava acontecendo ao meu redor. Porque eu não vivia fechado numa pequena bolha de vidro, de forma alguma. Meus amigos moravam no próprio Vedado, ou no Centro Habana, ou em Marianao, ou em Miramar, ou em Alta Habana, ou em Alamar ou em La Lisa. A minha vida não se limitou ao discurso oficial, embora tenha feito, consciente ou inconscientemente, parte desse discurso... Assisti a concertos de rock (semi-clandestinos mas tolerados... às vezes), vaguei pela cidade como um dos seus habitantes; Ele era jovem e, portanto, desconfiado. Suspeito de quê? Bem, sendo jovem, eu acho. Às vezes eles me paravam na rua e revistavam meus papéis e pertences, e uma vez revistaram minha bunda. Sério, lembro que estava na fila da Coppelia e um cara veio até mim vendendo comprimidos (psicotrópicos, claro). Eu disse a ele que não queria e assim que ele deu dois passos eles caíram em cima de mim. Levaram-me aos banheiros da sorveteria, obrigaram-me a me despir e a me agachar enquanto um deles, em seu uniforme civil (a eterna guayabera branca), olhava para fora para ver se havia algum comprimido saindo do meu ânus. .O que?obsessões da polícia...
Em suma, eu era apenas mais um cara peludo, "insatisfeito", "anti-social" e algo muito próximo - segundo os cânones policiais - de um vagabundo. Claro que não, mas isso não importava, e também assim que surgiu minha árvore genealógica, eles simplesmente me deixaram ir, mas não antes de me lembrar que essas não eram as atitudes esperadas de alguém como eu: Neto do Che não é que eu poderia frequentar tais empresas; Ou seja, que eu não me associe às pessoas, que não me contamine com elas. Comecei a entender que Pueblo é uma bela abstração que tem múltiplos usos, principalmente retóricos... Eu tinha uns quinze ou dezesseis anos e já havia abandonado o Pré.
Sim, como tantos outros estudantes da minha geração, abandonei a escola. Naveguei sob a bandeira do NadaMeImporta, entre outras coisas, para minimizar a minha importância ou, melhor ainda, para minimizar a imagem que se esperava de mim (se é que se esperava alguma coisa de mim neste momento). Durante esses anos adquiri o hábito de discutir, mesmo que superficialmente, sobre o real e o simbólico, sobre a substância e a forma, sobre a essência e a aparência. Comecei a me apaixonar por palavras e ideias. Fiquei apaixonado por Kafka e – admito com vergonha – o primeiro pensador que realmente “me alcançou” foi Schopenhauer, tão antitropical. Eu estava igualmente interessado no rock e no mito de Trotsky, nos dadaístas e no som eletrônico; e ao mesmo tempo, tudo não importava para mim. Fui um menino um tanto calado: não fiquei triste nem nada parecido, pelo contrário, sempre fui feliz; Quer dizer, era bastante introspectivo: Existencialista, disseram meus amigos mais velhos, e embora não estivesse muito claro para mim o que isso significava, gostei da palavrinha.
Comecei a me interessar por formas culturais, a ler sobre pintura e música, a mergulhar em romances e filmes, ensaios filosóficos e teorias artísticas; Não sei, basta pesquisar. A minha luta, começo a perceber, sempre foi cultural: digamos que o homem é um homem apesar de si mesmo, mas ele se torna plenamente humano acima do seu ser. Ser o que somos é natural; O cultural, então, é nos perguntarmos o que somos, para onde vamos e também de onde viemos. E quando digo que sou um homem “culto”, não me refiro ao sentido aristocrático que se esconde por trás do termo; Entendo por homem culto aquele que sabe que além da sua cultura existem outras, nem melhores nem piores, apenas diferentes. E em Cuba a ditadura também é cultural. Ou, sobretudo, talvez... (Lembro-me agora de um acontecimento que, como tantos cubanos, me marcou como um ferro em chamas. Refiro-me ao julgamento telenovela do General Arnaldo Ochoa, dos irmãos De la Guardia e de outros envolvidos no tráfico de drogas, marfim, diamantes e moeda.
Se uso o termo “novela” é apenas para acentuar a forma como a vivi: através da televisão, noite após noite, às oito horas, à espera de um desfecho que sabíamos de antemão, com a morbilidade exacerbada e aquele tom desagradável de inquisição que permeou todo o (pré)julgamento... Entendamos, não estou insinuando que esses homens eram inocentes, mas sim que seus superiores sabiam claramente de tais ações. Ninguém poderia imaginar (a menos que o cérebro deixasse muito espaço livre dentro da cavidade craniana) que o próprio Comandante não tivesse conhecimento de todo o assunto.
Evidentemente foi uma operação de Estado, como tantas outras que testemunhamos; uma operação destinada a obter preciosos dólares do governo cubano... Ninguém em sã consciência poderia aceitar tamanha loucura, tamanha farsa, tamanha piada de péssimo gosto. Porém, muita gente perdeu a cabeça nesses meses... Eles agiram como loucos, para dizer o bom cubano; Eles admitiram completamente a mentira judicial, mas o que mais poderiam fazer? Também não falei em voz alta o que pensava, discutimos entre amigos, nada mais.
Discutimos isso como um dos muitos temas que nos interessavam naquele momento: os peitos da Fulanita ou a festa de amanhã, a exibição de Metrópolis ou o show do Carlos Varela, não sei... Discutiu-se muito mas nada foi dito: Como expressar a ausência de expressão; aquele que silencia o indivíduo e o transforma em um zumbi falante?)
Mais tarde morei em El Cerro, num minúsculo apartamento a poucos quarteirões da Biblioteca Nacional, onde aliás trabalhei: restaurei livros. Esqueci de contar que entre os quinze e os dezessete anos fui aprendiz de fotógrafo, primeiro na Juventud Rebelde e depois no Granma (além de me aprofundar no que, com algum auto-elogio, se chama fotografia artística). Junto com alguns amigos editei uma pequena revista fotocopiada dedicada ao rock (alguns exemplares, nada mais) e comecei a escrever. Devo dizer que fiz tudo isso com a maior engenhosidade do mundo, não como parte de um plano diretor, mas com a espontaneidade do capricho. Interessei-me pelas vanguardas artísticas, culturais e estéticas, e também, claro, pelas ideológicas e políticas. Afundei em ismos, tenho que admitir. Comecei a me dedicar ao design gráfico, ao mesmo tempo em que fazia fotografia, compunha músicas e escrevia terríveis poemas “abstratos”. Tornei-me um bom leitor e, aos poucos, um editor.
Em 1996 deixei Cuba, um ano depois da morte da minha mãe e dez anos depois da minha chegada a Havana – o meu irmão deixou Cuba logo após a morte de Hilda. Saí com o coração partido e com as ideias mais confusas do que quando cheguei: morei lá dos doze aos vinte e dois anos. Eu me fiz em Cuba: amei e odiei como só se pode amar e odiar algo valioso, algo que é parte fundamental de alguém...
Agora moro na cidade de Oaxaca, no México, afastado voluntariamente da comunidade cubana neste país, e do exílio em geral – devo admitir, me canso da simples ideia de me dedicar a falar de Cuba: Estou interessado em muitas coisas. Sou designer, editor, às vezes promotor cultural ou crítico cultural, conforme o caso. Colaboro com algumas publicações culturais ou políticas; Continuo compondo músicas e me envolvendo em discussões artísticas. Estou editando uma revista cujo número 0 vai aparecer em breve (chama-se El Ocio Internacional e vai aparecer no papel e na internet ao mesmo tempo - avisarei): uma revista dedicada à análise e discussão cultural; E também estou escrevendo um romance, A Imortalidade do Caranguejo, do qual tenho cerca de 280 páginas. (Em 1996 publiquei um livrinho intitulado Diário de Yo - que para piorar não é nem diário -, texto que em breve colocarei online caso algum desavisado se interesse... A publicação foi realizada por um editora muito pequena que já desapareceu e, pelo que eu sei, não foi vendido um único exemplar, o que aumenta o meu orgulho anticapitalista... Heh.)
Quanto a mim... o que posso dizer? Sou apenas um egoísta que aspira ser um homem livre. Um egoísta que sabe que o egoísmo pertence a todos nós e que deve ser solidário para ser completo: ou seja, que a minha liberdade só é válida se a sua também for válida, se a minha liberdade não esmagar a sua liberdade ou a sua .para o meu... Como disseram os ---- Pistols: E eu sou anarquista...
14 de julho de 2006
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http://lisdb.blogspot.com/2006/03/clebres-pero-por-otra-cosa-7.html
Hilda Guevara (1956-1995).
A filha mais velha de "Ché" Guevara. Foi bibliotecária da Casa de las Américas em Havana (Cuba). Ernesto "Ché" Guevara conheceu Hilda Gadea no México em 1954, onde ela o doutrinou no marxismo; Casaram-se na Guatemala em 1955 e Hilda o apresentou a Raúl e Fidel Castro. Em 1956 nasceu sua filha primogênita, Hilda "Hildita" Guevara. Ele tinha 11 anos quando seu pai morreu na selva boliviana. Ele aparentemente viveu uma vida tranquila em Cuba, em um importante centro de propaganda oficial e ansiando por ver chegar “a face humana do comunismo”. Ele morreu aos 39 anos de um tumor cerebral. Numa famosa carta póstuma de Ché aos seus filhos, ele lhes disse: "Cresçam como bons revolucionários. Estudem muito para poder dominar a técnica que lhes permite dominar a natureza. Lembrem-se que a revolução é o que importa e que cada um de nós , sozinho, não vale nada." Acima de tudo, ser sempre capaz de sentir profundamente qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário." Tenho aqui uma bela nota escrita de Cuba para o seu aniversário. Seu filho, o mexicano Canek Sánchez Guevara, neto mais velho de Che, diz: "A revolução em Cuba não foi democrática e também não é comunista agora,mas um capitalismo de estado vulgar também chamado de “fidelismo”.
domingo, 20 de outubro de 2024
Adélia Prado Lá em Casa: Gísila Couto
Adélia Prado Lá em Casa: Gísila Couto
Recentemente, a poeta, filósofa e romancista Adélia Prado ganhou dois prêmios muito importantes: Prêmio Machado de Assis e Prêmio Camões. Eu, tio Bil e mamãe fomos em busca de seus rastros em Divinópolis. Ao contrário do que pensávamos, Adélia Prado não é objeto de culto em sua cidade natal. Não havia cartazes, nem faixas ou pôsteres pelas ruas. No centro cultural ali ao lado da Catedral há uma frase em uma placa na entrada. Fomos, então, a uma livraria no shopping Bom Pastor. Os livros de poesia –que não estavam na vitrine, reparei-- dela estavam disponíveis em um combo, mas não sua prosa reunida.
Adélia Prado tem muita afinidade conosco. Como é de uma cidade vizinha, há sintonias com a poesia dela, que utiliza expressões coloquiais usadas por nós, tais como “é na mesma toada”, no sentido de “canto monótono”. E ela foi capa de revista aqui, graças ao meu amigo Alex “Musquito”, poeta autor de Arraial dos Lobos, hoje policial civil vivendo no Paraguai. A revista, infelizmente extinta, chamava-se Tipura, um verbo de origem banto que pode ter vários significados conforme a frase, o que chamamos “passe-partout”. Nessa época, Adélia protagonizou uma palestra na Academia Bom-Despachense de Letras. Alex gravou essa palestra em DVD, mas não consegui acesso a el. Ainda quero ter.
Cheguei a entrevistar Gísila em 2006, grande admirador de Adélia Prado, num artigo chamado Gísila Cecilane Couto: A Poesia Como Janela da Alma, num finado jornal local. Hoje ela utiliza mais o nome “Gísila Couto”. Gísila escreveu desde os quatorze anos. Em 1998 ela publicou o livro de poesias Eterna Procura. Gísila admira Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais. E sua poesia, conforme ela mesma disse, nasce do contato com a natureza. Gísila passa os textos para o irmão Iru, que lê e dá opiniões a respeito. Depois de Eterna Procura, Gísila publicou Janela dos Olhos. Depois que nasceu seu filho Gabriel, ela voltou-se para o público infanto-juvenil e publicou Fazendinha, livros de poemas em que fala do gato Toró e do cão Napoleão: “Napoleão é um cão muito esperto,/vigia toda a fazenda/e os animais, bem de perto./ Adora caçar com seu dono,/brincar com a criançada,/correr, pular/mas só não gosta do banho,/que às vezes, tem que tomar./Quando vê a água e o sabão,/corre logo para outra direção./Mas não tem jeito não, é só pulga que salta/do coitado do Napoleão”.
Gísila Couto, com a nossa Adélia Prado, é advogada, autora consagrada da Academia bom-despachense de Letras, empresária e autora de vários livros (Eterna Procura, Padre Júlio Maria de Lombarde e Rua do Céu). Nesse último livro, homenageou esse momento mágico em um poema no livro acima supracitado:
Adélia Prado lá em Casa
Da cidade mineira de Divinópolis para o mundo,
A escritora Adélia Prado. Contista de estilo único,
Cujos textos encantam pela forma que retratam
O cotidiano, pela espiritualidade e fé cristã
Que norteiam seus versos saídos do interior
De Minas para espalhar poesia mundo afora.
Poeta que embala suas poesias junto ao fogão,
Cozinhando, poetando, dizendo verdades,
Vasculhando, cutucando a vida na sua forma
Mais íntima. Adélia com suas poesias nos faz enxergar
O que o cotidiano às vezes nos oculta, recriando a vida com originalidade e lirismo, valorizando-a nos mínimos detalhes, sem ostracismo.
E do alto de sua generosidade, Adélia Prado nos honrou com sua ilustre presença na diplomação dos 22 fundadores da Academia Bom-despachense de Letras, no dia 10 de agosto de 2012, no Sesc/Laces Bom Despacho.
Momento de encantamento e magia, que contagiou a todos os presentes
Amantes da poesia e uma comunidade eclética
E vibrante que aplaudiu de pé a dama primeira da poesia primeira
Findado o evento no salão do Sesc, Adélia Prado
Nos presenteou com sua permanência entre nós
Por mais algum tempo, participando de um coquetel
Oferecido a ela pela Academia Bom-despachense
De Letras em minha residência
Guardo em minha memória com carinho:
Adélia Prado em minha casa, roda de viola,
Prosa da boa, cantoria até altas horas
E a alegria da confraternização entre Acadêmicos
E uma das maiores poetas do Brasil e do mundo,
Muito nos enriqueceu com sua presença entre nós
E os momentos mágicos foram eternizados
Na memória de cada um dos acadêmicos.
Hoje, aos 88 anos de idade, Adélia se faz representar nos eventos por sua filha. Gísila representa Bom Despacho com brilho e elegância, na luta, como ela mesmo escreveu em seu poema Realidade, que aqui relembro para fechar essa crônica: “somente a vontade, não mais do que a vontade, de vencer a batalha sangrenta da vida”.
domingo, 22 de setembro de 2024
Dr. Clodomiro Anaya: Pátria e Coração Grande
Dr. Clodomiro Anaya: Pátria e Coração Grande
A história de Dr. Segundo Clodomiro Anaya Rojas me impressionou. Eu o conheci há muitos anos quando meu tio Rodrigo Anaya Rojas se casou com minha tia Denise, ainda nos anos 80. “Segundo” Clodomiro tem esse nome devido ao fato de ter o mesmo nome do pai, o que seria equivalente ao “Júnior” aqui. Viveu parte de sua infância em sua cidade natal ao sopé dos Andes e outra parte com os avós no Departamento de Cajamarca, no norte do Peru, pois perdeu a mãe com sete anos de idade. Depois estudou no prestigiado Colégio San José, em Chiclayo, no litoral norte, se mudando depois para Lima, a capital, onde viviam seu pai e três irmãos, em busca de novas oportunidades de estudos e trabalho e a família, apesar de unida, vivia com sacrifícios. Sobre a região onde passou a infância, Rodrigo Rojas, seu filho, contou-me um dia que ali existiu uma civilização bem anterior aos incas. Falou também da guerra entre Peru e Bolívia contra o Chile no final do século XIX, guerra da qual sabemos pouco aqui no Brasil.
Clodomiro trabalhou como “segurança” por dois anos em uma siderúrgica recém inaugurada há cerca de duzentos quilômetros ao norte de Lima, onde juntou uma certa quantia e resolveu mudar-se para o Brasil em busca de seu sonho. Clodomiro sonhava em estudar Medicina, mas a universidade era muito elitizada em Lima. Tentou, então, uma vaga na Argentina e não conseguiu. Soube, então, de um intercâmbio do governo Juscelino Kubitschek e veio para o Rio de Janeiro. Lá ele ouviu falar em Belo Horizonte.
Uma vez na faculdade de Medicina da UFMG, conheceu Rafael de Araújo Cançado. Foi através desse colega, tio de sua atual esposa, que ele conheceu a doce Ângela, da distinta família Lopes Cançado, que conhecemos como Dona Ângela, com quem se casou. Ela é parente da escritora Maura Lopes Cançado, autora de Hospício é Deus, comentada por mim aqui em várias crônicas, tais como Maura Lopes, a Maior Escritora que já Viveu Aqui. Ela o fez prosseguir no Brasil e constituir família. Entre idas e vindas, Dr. Clodomiro é um médico muito querido aqui em Bom Despacho, trabalhou como pediatra, tendo recebido o título de Cidadão Honorário, inclusive. Sempre foi uma pessoa progressista, é muito politizado e informado, acompanha muito as notícias, especialmente do Peru e da “Pátria Grande”, a América Latina. Para quem não sabe, o primeiro capítulo de nossa Constituição, especialmente importante e claro no parágrafo único, aquele que estabelece os princípios fundamentais da Constituição, explica que:
A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Os filhos são: Rodrigo, Tânia, Rogério, Cláudia e Felisa. Fomos junto com Cláudia ao show de Caetano Veloso e Betânia, graças também à minha cunhada Felisa, que gentilmente cedeu o ingresso. Felisa Anaya é a minha querida cunhada, esposa de meu irmão Mário. Doutora em Sociologia, aprovada em concurso pela Unimontes, foi morar em Montes Claros, estudou em Belo Horizonte, mas vem sempre a Bom Despacho, onde passou a infância. Tânia Anaya Segunda, filha de Dr. Clodomiro, procura, através de seus filmes e outras expressões artísticas, valorizar a cultura indígena e afro-brasileira. Em 2005, realizou um calendário que citou a Tabatinga; em 2006 projetou e lançou outro, intitulado Meu Brasil Africano (Minha África Brasileira) junto ao Ministério da Educação. Atividades culturais como as desenvolvidas por Tânia Anaya permanecem iniciativas de indivíduos isolados em nossa região. Recentemente, Tânia esteve em Montes Claros elaborando um novo trabalho cinematográfico.
Há pouco tempo, reencontrei Clodomiro numa festa de família, a festa de aniversário de minha cunhada Felisa, uma festa com uma banda cubana. A música preferida de Clodomiro é uma cumbia peruana chamada Cariñito, cantada originalmente pelos “Hijos del Sol”. Carinito significa “Queridinha”:
Cariñito
Lloro por quererte, por amarte, por desearte
Ay cariño, ay mi vida
Nunca, pero nunca me abandones, cariñito
Nunca, pero nunca me abandones, cariñito
Sendo assim, viva Segundo Clodomiro Anaya Rojas, representante da Pátria Grande em Bom Despacho!
Orgulho, Preconceito e Vampiros
Orgulho, Preconceito e Vampiros
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Fiztwilliam Darcy e Elizabeth Bennett são dois adolescentes de Derbyshire, Inglaterra, que vão passar férias, coincidentemente, em Manaus, no estado brasileiro do Amazonas. Bennet é uma gótica atéia que curte ouvir bandas como The Cure. Já Darcy é de origem protestante, um nerd em férias. Bennet ainda está no esquema escola-cinema-clube-televisão, enquanto Darcy escreve poemas românticos, faz luta marcial, participa de um partido político de centro-esquerda, Bennet gosta de shows de rock e cemitérios. Encontraram-se então num parque da cidade, por acaso, mas identificam-se por serem ambos ingleses. Darcy chama Benett para ver Netflix em seu quarto de hotel, mas ela recusa e diz que, se possível, evita Netflix, pois gosta de sair para festas de rock gótico para se libertar. Benett ia passar duas semanas idílicas em Manaus, visitar o teatro Amazonas, ver o encontro do Rio Negro e do Solimões, passear de barco e visitar uma tribo indígena. Fiztwillian Darcy viajou para ver uma ópera Dido e Eneas, de Purcell, encenada no teatro Amazonas.
No entanto, por azar, Manaus e o mundo inteiro são assolados por uma misteriosa pandemia de vampiros e eles não conseguem retornar para Derbyshire, os voos são cancelados. No contexto da pandemia, os dois ficam presos em um mesmo hotel, e, temendo a morte, Darcy, encantado em encontrar alguém que o entende e com medo de morrer, pede Benett em casamento e ela aceita. Eles combinam de casar-se e morarem em Derbyshire, no interior da Inglaterra.
No entanto, logo em seguida, a pandemia de vampiros acaba e os dois conseguem voltar para Derbyshire na Inglaterra. Uma vez na Inglaterra onde há crise imobiliária e está difícil alugar um apartamento, os dois adiam o casamento. Darcy vai para Londres estudar para tornar-se funcionário público, enquanto Benett prossegue em Derbyshire onde, apesar da troca de cartas, esse amor vai esfriando. Por fim, Darcy rompe e encontra uma gatinha comunista. Por sua vez, Benett passa da fase gótica. Ela passa a frequentar a igreja do pastor Collins e, por fim, aceita um pedido de casamento dele, que se separou de Charlotte.
Herbert Magalhães: Escritos Vivos
Herbert Magalhães: Escritos Vivos
“O resgate de nossas origens é de fundamental importância para as futuras gerações. Garimpar e guardar aquilo que nos representa tem um valor sem preço.” Essa frase –poderia ser o lema de minha coluna – é que abre o livro Escritos Vivos (Divinópolis, 2021, Editora Adelante), de autoria do recentemente falecido coronel Herbert Magalhães. O nome “Geração Pita” é o título do capítulo inicial, uma homenagem ao pai, Epitácio, apelidado Pita, jogador de futebol na juventude (considerado um craque na cidade). São muito encantadoras essas crônicas, que são uma verdadeiras cápsula do tempo:
Naqueles anos 50, correr para detrás do muro da Vila, ver o carro de bois gemer; assistir às jardineiras que transitavam na mesma estrada poeirenta com destino a Abaeté, Dores e Martinho Campos; fugir dos deveres escolares para jogar bola e ficar na espera do Pita aparecer para buscar-me pelas orelhas; fugir até o goiabal para colher frutas, enfim muitas saudades.
Herbert guardava a lembrança do bangalô onde viveu com a família, Chalé 06, rua Tenente Garro, Vila Militar. Mudaram-se para um bangalô. Herbert recolhe a doce lembrança de sua mãe, dona Nenzinha, a costurar junto a seus filhos. Como eram nove irmãos (!) ele recorda como a situação da família era apertada, inclusive tinha de comer, por vezes, mamão verde “afogado”, pois nem sempre comiam carne. O pai, curiosamente, tentou criar porcos em casa, mas isso trouxe mosquitos e mau cheiro. Muito emocionante para mim foi reencontrar no livro de Herbert a lembrança de um personagem que com que meu pai, Lúcio do Espírito Santo, iniciou seu breve período como cronista aqui no Jornal de Negócios, o “Fidirico”, o “Alemão da Colonha”. Esse personagem foi homenageado numa crônica chamada Bolo do Fridrico:
Também não esqueço do Fidirico, o “Alemão da Colonha”, quando aparecia no final da rua, montado em seu burro vindo entregar o leite, na porta de cada um. A meninada atrás cobrando o bolo por ele prometido. Às vezes premiava um deles (MAGALHÃES, 2021, p. 15).
Curiosamente, meu pai foi citado elogiosamente nesse livro de Herbert Magalhães. Essas suas memórias são preciosas como memórias do passado de nossa cidade. Ele recorda o “Tirobis”, rapaz que marcou época nos anos 60 e 70. Ele andava com estilingues pendurados no pescoço e papavento na mão. Dava um tapa no traseiro dos passantes. Tirobis foi cunhado de Herbert Magalhães e, embora desse trabalho para a família, era uma boa pessoa, temente a Padre Libério. Herbert foi a missas de Padre Libério e relata sua voz mansa e suas desventuras. Padre Libério, a seu ver, foi deslocado de Leandro Ferreira para Pará de Minas, pois a Igreja buscou reverter a situação, não acreditando em seus milagres. Dona Nenzinha, mãe de Herbert, chorou de alegria ao descobrir que havia o processo de beatificação de Padre Libério. Era marcante, para ele, a “Procissão do Enterro”. Ela acontecia depois da Procissão do Encontro. Era uma procissão que tinha imenso significado, a cidade toda participava. Ela ia da Matriz até a Igreja do Rosário. É interessante a memória sonora:
A banda do Batalhão tocando marchas fúnebres. As matracas assustando e acordando os bebês. A coleta de donativos passando continuamente. Todos fiéis com velas acesas. Alguns fiéis pagando promessas. Outros fazendo os percursos descalços, com um peso na cabeça e outro tipo de castigo. Rezar o terço e a ladainha era uma visão fantástica. Na Matriz os sinos tocando (MAGALHÃES, 2021).
Além da recordação da quarentena “infantil, doce e santa”, Herbert sente grande carinho e preocupação pelo patrimônio representado pela Vila Militar. Ela começou, segundo ele, em 1921, como Vila Operária, para abrigar os operários da Estrada de Ferro Paracatu. A Vila Militar, propriamente dita, começou com um batalhão de caçadores. Ele foi instalado em 1931 pelo governador Olegário Maciel, preocupado com as iniciativas dos paulistas, como Sétimo BCM. Ele contava que ela é constituída de “Bangalô” e “Vila”. No passado, inclusive, havia uma divisão muito notável no futebol: “era um jogo duro, mas leal, naquele campinho de terra, atrás do muro”. É muito oportuno que Herbert Magalhães tenha escrito essas crônicas e lembranças. Que Epitácio e Nenzinha, seus pais, estejam abençoando esse grande cronista Herbert Magalhães.
Recentemente, Herbert nos deixou, para tristeza de uma legião de amigos que aqui ficaram. No céu uma comitiva o esperaria, liderada por Pita e Nenzinha. Lá estaria Tirobis e o seu bodoque, uma fileira de tios e primos em revoada, amores idos e vividos, enfim uma grande e celestial recepção.
Os Retratos Absurdos de Pedro Ramos: Bom Despacho e Macondo
Os Retratos Absurdos de Pedro Ramos: Bom Despacho e Macondo
O segundo livro de Pedro Ramos, Ode, Veste, Retrato e Outros Contos Absurdos investe na narrativa curta propriamente dita. E ele dialoga com Kafka, Jorge Luis Borges, Garcia Marquez, Guimarães Rosa. Em seus contos há um mistério que não se entrega, que pede que leiamos mais uma vez, e outra, e mais outra. Não entendemos bem o que ele quer dizer, mas há algo que faísca lá no fundo e nos chama para reler os contos. A influência de Guimarães Rosa parece-nos muito bem resolvida no conto Conversa à São Camilo. A Febre do Passarinheiro me fez pensar, com suas imagens, em uma paródia do psicodélic estilo cinema catástrofe de Os Pássaros de Hitchcock, situada na Macondo de Garcia Marquez. Ou em Bom Despacho, no centro-oeste mineiro. A Morte Só Dura Trinta Dias parece tratar de vida, morte e ressurreição. Acho particularmente os curiosos e realistas os diálogos de Ode às Asas de Vidro, inseridos em meio a narrativas orientadas claramente pela lógica do real maravilhoso, da lógica do sonho, causando o efeito que chamamos de choque que, em francês dizemos que “hurlaient d´être ensembles” (gritam de estar juntas). Por exemplo, leia-se um diálogo assim em O Fado e as Roseiras do Dia e da Vez:
--Mamãe, o vovô vai ser cozido?
A mãe, abismada, lhe dirigiu um disparate:
--Cale-se, menino! Por que acha isso?
Comedido, após levar um tabefe, o menino respondeu: --o vovô é frio igual a uma galinha depenada” (RAMOS, 2024, p. 114).
Com essa técnica, Pedro consegue imagens que, por vezes, recusamos com certa impavidez, mas que falam ao inconsciente. São como poltronas aconchegantes às quais sentimos vontade de retornar.
Pedro, nesse livro, retorna a histórias de fantasmas, do sobrenatural, contadas pela família, retrabalhando-as à luz de sofisticadas leituras. Pedro fez, com dom de poeta, uma bela palestra na Biblioteca Pública Jacinto Guerra, introduzindo seu livro. Nela falou das inspirações de seus textos:
Jorge Luis Borges uma vez disse, em sua obra, o livro busca muito mais do que ele realmente retrata em suas páginas. E, muito mais do que um objeto, ele, sim, contém dentro a vida e também a realidade de quem escreve. Jorge Luis Borges a quem eu tenho entremeado a minha obra Ode, Veste e Retrato. Em alguns contos, em alguns, não todos. E também a sua realidade mais sobrenatural, que se faz tão presente, entre as palavras, entre os títulos. E também entre as histórias. Uma vez Borges, quando já estava cego, uma de suas obras chamada O Outro, um conto, ele é levado a refletir sobre si mesmo. Ele, que estava numa cadeira, de outro passado. E, de outro passado, ele mesmo, diz como seria ficar cego. Do que se trata a cegueira? Ele faz um viés muito poético, muito realista, ele mesmo carregava desde criança. Ele carregava uma patologia hereditária chamada glaucoma. Seu avô ficara cego, seu pai ficara cego e ele sabia que um dia ficaria cego. Ele, diante do outro, diante do pôr-do-sol, ele explica que ficar cego não é nada mais do que um lento pôr-do-sol, não era tão ruim assim. Ele associou o ambiente com a realidade de sua doença. orges, além do livro, escreveu um conto, talvez seu conto mais caricato. Seu conto mais famoso é a Biblioteca de Babel. Em cada obra, está dita uma realidade que pode dizer milhões e milhões, pode-se sobrescrever. Além de Borges, vou citar Garcia Marquez, um escritor já conhecido, Vander talvez já conheça, um escritor colombiano, um dos primeiros a se enveredar pelo real maravilhoso, corrente que surgiu na Alemanha, não só na literatura, mas também na arte essencialmente, ele e sua Obra Cem Anos de Solidão, uma obra que para mim é uma das obras mais brilhantes já escritas, que me lembra essencialmente a minha família, lembra a realidade de minha família, dos causos sobrenaturais que tanto cortam o espaço, o tempo, o que nos faz pensar a realidade do que se passa no outro, é pensável, do que é escrito e, posteriormente, do que se leva a crer. Não posso dizer que Garcia Marquez é um escritor cem por cento brilhante. Cada um de nós escritores busca o brilhantismo, refletindo em cada de um de nós seu espírito, por vezes abusando das figuras de linguagem. Garcia Marquez diz muito mais do que parece ser, um caso de uma mulher que conversa com espíritos, um caso de um senhor que procura a guerra, mas depois vira um ourives. Ou também de um homem que ficou louco e se amarrou numa árvore e passou a falar latim. Nas histórias de Garcia Marquez, há esse espírito da corrente mágico-realista, cada escritor tem seu espírito, cada escritor tem seu estilo próprio, dentro daquilo que convêm. Há uma vertente que hoje está em declínio, mas que eu quero fazer ressurgir, ressuscitar na minha obra. Eu digo: o ato de escrever também é um ato de rebeldia, quem escreve se rebela contra si mesmo. Diante desse ambiente que nos circunda. Escrever é mais do que aparecer, é se encontrar em meio aos outros. Escrever é transmitir, não só histórias, não só ditos, mas transmitir e deixar transmitir a si mesmo aquilo que é próprio. Ser um livro aberto para os outros. Alguns escritores se escreveram para se esconder, mas apareceram diante de todos. Muitas vezes eles, aturdidos por problemas pessoais. Podemos citar Voltaire, Chopin, que ficaram doentes. Escrever passa a ser mais do que uma atitude, mas também o pensamento transpassa aquilo que ocorre, não sei se algum de vocês já tentaram escrever um livro, é uma experiência libertadora. Escrever para mim é uma catarse. O ato de catarse é expurgar de si aquilo que é ruim. A catarse é uma limpeza da alma. Escrever para ser o deus de si mesmo. Não digo isso de maneira antirreligiosa. Também podemos citar Ernest Hemingway, sua obra O Velho e O Mar, muito mais do que uma obra sobre pesca, sobre um velho que se joga diante do mar, é uma obra inspirada na passagem de Mateus, evangelho de Mateus, em que Pedro se encontra diante do rio sem poder pescar nada. Essa é a realidade do escritor. Ele se faz diante do rio, diante da correnteza que flui de si mesmo e ele não encontra, para procurar um peixe mais belo. É importante que o escritor não deixe de escrever sobre si mesmo.
Como se pode ler acima, Pedro, curiosamente, também reencontrou, como aconteceu comigo, muito em comum entre as narrativas de Garcia Marquez e os casos contados por familiares. Nessa obra de contos, Pedro Ramos evoluiu significativamente em sua obra literária, encaminhando sua sensibilidade para os escritores do boom literário latino-americano, o que é um caminho afim de sua sensibilidade. E mostra-se, mais do que uma promessa, um artista local que pode, em breve, ser candidato a voar sem asas de vidro.
quinta-feira, 29 de agosto de 2024
País dos Privilégios (Bruno Carazza dos Santos, Companhia das Letras, 2024)
País dos Privilégios (Bruno Carazza dos Santos, Companhia das Letras, 2024)
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Bruno Carazza, nesse livro, resolve um problema importante, e que tinha ficado no ar na pesquisa de Raymundo Faoro: quem são os donos do poder no Brasil? Faoro não tinha entrado em detalhes, o que deixou margem para o uso oportunista dessa ideia de que existe uma casta que suga o estado: Collor falou em combater os “marajás”, Guedes atacou os “parasitas”, fazendo, então, um ataque a todo o funcionalismo público, privatizando estatais como Embrafilme, etc. Eles o fizeram em favor de um setor de empresários que podemos chamar de burguesia compradora, que tem menos interesse em um estado estruturado, contra o outro setor, o burocrático. A escolha de comentar Vargas e Fernando Pimentel do PT nessa introdução feita por Bruno fez reverberar essa disputa entre esses dois setores, uma vez que Vargas e PT são caracteristicamente ligados a esse setor da burguesia que chamamos burocrático, mais ligado ao estado. Ele elenca o funcionalismo público privilegiado: magistrados, Ministério Público, elite dos poderes executivo e legislativo, políticos, militares, cartórios. A partir dessa pesquisa rigorosa, Bruno Carazza nos fez um grande favor, pois evita a utilização demagógica desse pensamento daqui em diante. Bruno tem a consciência da autocrítica e comentou que o estado brasileiro não é inchado em relação aos países desenvolvidos do mundo (embora ainda tenha se feito presente em País dos Privilégios o termo “estado inchado”, sugere-se a sua retirada em uma nova edição). O próprio autor comentou, de forma bastante lúcida que “o tamanho do corpo dos servidores públicos do país é bem menor do que o apregoado pelos defensores do estado mínimo” (CARAZZA, 2017, p. 154).
Por outro lado, livro baseia-se em pesquisa empírica, traz dados, mas não consta de País dos Privilégios a bibliografia recente a respeito do mesmo tema, o texto Elite do Atraso, de Jessé Souza, bem como amplo debate a respeito de Faoro realizado por Leonardo Avritzer no site A Terra é Redonda. Visto à luz das reflexões de Jessé de Souza, o texto de Carazza adota o que Jessé chama de vira-latismo e racismo culturalista (por pensar no Brasil em um país pior do que os outros), bem como apresenta um pensamento liberal que aponta corrupção de origem cultural lusa presente no estado como maior de nossos problemas (o que, para Jessé, leva aos abusos da lava-jato). Como explicou Jessé de Souza:
A partir de Raymundo Faoro, inclusive, o mercado passa a ser visto como o céu na terra, prenhe de virtudes democráticas que apenas o estado não permite florescer. O cidadão comum é convidado a ver o mercado como competição real do mais apto, como nas padarias da esquina que disputam quem produz o melhor pão. Nada é dito sobre o grande mercado controlado por monopólios que fraudam a sociedade sob a forma de controle de preços, juros extorsivos e assalto ao orçamento público, via isenções fiscais fraudulentas, sonegação de impostos, etc (SOUZA, 2019, p. 146).
Podemos dizer, à luz de Jessé Souza, que o título colocou uma excepcionalidade do Brasil em termos de privilégios que não cabe. Se são privilegiados os funcionários públicos brasileiros, o quanto o são os funcionários do complexo industrial-militar estadunidense que presidiram a invasão do Iraque? Em todo mundo, o poder está nas altas esferas do poder e nos escritórios das multinacionais. Curioso como surge a ideia de um capitalismo já estruturado em Portugal:
Utilizando um conceito formulado por Max Weber, Faoro classifica como “capitalismo politicamente orientado” a estratégia inaugurada por D. João I e seguida por todos os monarcas que o sucederam nos séculos posteriores, de se lançarem ao mar em busca de novos negócios (CARAZZA, 2024, p. 15).
Faoro, ao nosso ver, deixa-se levar demais por autores portugueses que postulam que a primeira revolução burguesa foi a revolução de Avis, bem como a hipótese de que não existiu feudalismo em Portugal, primeiramente colocada por Jaime Cortesão, mas que parece ter se tornado hegemônica. Para Weber, existem dois tipos de “capitalismo”, o politicamente orientado, em que o estado tem um papel, e o economicamente orientado; mas nem Weber e nem Marx falaram sobre o precoce “capitalismo” português em suas obras. Como deixariam de ter detectado os fenômenos mencionados pelos portugueses, a não- existência do feudalismo (o que faz pensar que o capitalismo é o mesmo que trocas comerciais) e a tal revolução burguesa pioneira?
Portanto, “capitalismo” não nos parece um termo adequado. O melhor seria, sim, o mercantilismo, a penúltima fase do feudalismo. O capitalismo ainda estava embrionário. E equívoco veio de Faoro. Faoro pensava que o mercantilismo era o primeiro passo para o capitalismo industrial. Ao nosso ver, muito do que Carazza apontou no passado deveu-se à presença dos estamentos feudais, para os quais não havia diferença entre público e privado, bem como da exportação do feudalismo para o Brasil e suas sobrevivências atuais (restos feudais, sob a forma de latifúndio). A ideia de soberania popular surgiu no tempo do Iluminismo e procurá-la em tempos anteriores pareceu-nos anacronismo, bem como a imutabilidade desse estamento no decorrer das épocas. Quando Portugal exportava para aqui um certo número de nobres (citado por Bruno), de forma alguma ela era numerosa em relação à população da colônia. Eles eram algo bem diferente do funcionário público hoje existente. Eram grandes proprietários de terra e executavam poder de vida e morte sobre seus comandados, sempre em nome do rei e da Igreja Católica (existia fusão estado e Igreja Católica, vale lembrar, traço tipicamente feudal).
Prosseguindo, para Bruno Carazza, “após aportar no Brasil em 1500, os portugueses implantaram por aqui esse mesmo sistema extrativista” (CARAZZA, 2024, p. 15). A grande questão aqui é que não importamos o mesmo sistema extrativista e sim algo mais atrasado e, que, segundo Jessé Souza, nos moldou, o escravismo. Podemos supor que não exportou o “capitalismo”, mas predominantemente escravismo e feudalismo, embora também outros modos de produção não hegemônicos, como o capital mercantil. O açúcar no Nordeste já era plantado com auxílio de capitais holandeses.
Isto posto, pode-se esperar que tais pontos sejam debatidos nos volumes a seguir de País dos Privilégios (trata-se de uma trilogia).
Bibliografia:
CARAZZA, Bruno. País dos Privilégios. Companhia das Letras: 2004.
Raymundo Faoro, Críticas Equivocadas >.
SOUZA, Jessé. Elite do Atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
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