Revista Cidade Sol
Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Rosemberg Rodrigues de Castro: “Todo Anjo é Terrível”
Rosemberg Rodrigues de Castro: “Todo Anjo é Terrível”
Eu, infelizmente, tive pouco contato com essa curiosa figura, Rosemberg, falecido em março passado aos 64 anos de pneumonia, curiosamente pouco tempo antes do amigo Célio Luquini. Esse amigo tão bem definido por essa frase de Rilke, citada pelo poeta hondurenho Fabricio Estrada: “todo anjo é terrível”. Célio e Rosemberg parecem ter combinado a partida. Rosemberg foi uma figura que faz lembrar Pantagruel, o gigante comilão da peça de Rabelais, como o amigo Laender, também já falecido. Triste isso. A gente vai envelhecendo e os amigos vão morrendo. É como Millôr Fernandes falou: “caminho aflito: tantos amigos já granito”. Anos atrás, em 2009, quando o presidente de Honduras, pequeno país da América Central, foi deposto num golpe e escondeu-se na embaixada do Brasil, criando uma crise diplomática para o presidente Lula, indiquei ao Rosemberg um blog da resistência ao golpe em Honduras, o “Bitácora del Párvulo”. Rosemberg reproduziu postagens desse blog, de autoria do poeta Fabricio Estrada, ativista “melista” (o nome do presidente era Mel Zelaya). Algum tempo depois, o presidente Zelaya saiu do país, mas tempos depois voltou e sua esposa Xiomara é hoje a presidenta do país. O poeta e dono do blog mandou o seguinte recado para mim nessa ocasião, no ano de 2009: “Lúcio: Quanto mais espalharmos a nossa voz, mais conseguiremos resistir. O Brasil precisa entender perfeitamente que Honduras é seu litoral mais próximo, um território livre que busca se aproximar a cada dia de uma América Latina praticamente fragmentada.”
Rosemberg era radialista autodidata e personalidade destacada da diminuta esquerda local. Ele no passado foi do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) junto com Célio Luquini e atualmente era lulista. Durante muito tempo trabalhou na prefeitura junto ao meu tio Bil, no tempo do Célio, bem como na rádio Difusora. Tínhamos muitas diferenças. Revendo seus vídeos e blog lembro-me que Rosemberg era apaixonado por Bom Despacho e sua política, ele a vivia intensamente. Rosemberg criticava-me dizendo que eu não tinha a paixão pela política de Bom Despacho como ele, ficava mais interessado na revolução na Nicarágua. O que não deixa de ser excelente observação! Eu retruquei chamando Rosemberg de “Montanha”, pois em alemão seu nome significa “Montanha de Rosas”. Eu queria fazer um blog que fosse Observatório da Imprensa local, assumindo o papel da odiada figura do “ombudsman”. Obtive muitas reclamações de muita gente. Ele puxou-me a orelha. Rosemberg, então, contou-me que existia uma regra de ouro de comportamento não escrita no jornalismo local: eu poderia fazer qualquer coisa, menos criticar ou fazer alguma coisa que contrariasse o professor Tadeu de alguma forma (!)
Rosemberg tinha uma forma muito curiosa de escrever. Ele fazia umas enumerações assim: “Lúcio + Tadeu + Roberta – Vander =Jornal de Negócios”. Nosso querido “Montanha de Rosas” queixou-se a todo mundo no PT, em esfera estadual, que eu falava só no imperativo, dando ordens. Rosemberg me deu o mesmo apelido de Fidel Castro, o “comandante”. Em 2015, nosso amigo, então jornalista da Câmara, gravou uma participação minha lá e falou de mim como se eu fosse vereador. Na época, por incrível que pareça, estávamos discutindo a vereança gratuita em cidades de menos de 100 mil habitantes, proposta então presente no Plano de Aceleração do Crescimento de Dilma Rousseff. Diante dos acontecimentos recentes, a proposta agora pareceu-me incrível.
A participação a favor da vereança gratuita, muito oportuna, continua no youtube (pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=LZio7O3MCyQ). Curiosamente, colegas de escola mandaram mensagens extasiadas comentando que “cheguei à vereança”, equivocados com a legenda amalucada do vídeo –colocada, como sempre, pelo amigo Rosemberg!
No facebook, a atuação de Rosemberg era destacada, era novamente o gigante guloso: quando curtíamos algo que ele postava, prontamente ele dominava nossa rede, ele nos marcava em tudo. O nosso facebook passava a ser praticamente dele, só dava ele. Rosemberg tinha tanta admiração pelo Papa Francisco que seu retrato na rede era o Papa dando uma boa risada. Bem a propósito, certa feita enviei a Rosemberg uma entrevista do antigo cardeal Bertone (publicado no site eleconomistaamerica.com.br em 2013) onde o futuro Papa, ainda cardeal Jorge Mario Bergoglio, dizia: “O império da dependência criada por Hugo Chávez, com falsas promessas, mentindo para eles ajoelharem-se diante de seu governo. Dando-lhes o peixe sem deixá-los pescar. Se alguém aprende a pescar na América Latina, é punido e seus peixes confiscados pelos socialistas. Liberdade é punida. A região é controlada por um bloco de regimes socialistas, como Cuba, Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela e Nicarágua. Quem os salvou dessa tirania?” O companheiro Rosemberg até sapateou de raiva, mas eu prezo por perder o amigo, mas não a piada. O tempo dos blogs passou, o do amigo Rosemberg também, mas fica a saudade. O poeta do Bitácora del Párvulo, do qual tanto gostou Rosemberg e até fez postagens a partir dele em seu blog, fez um belo poema que eu reproduzo em homenagem ao amigo falecido, Sou um Homem Morto:
Muito bem: como é um homem morto?
Quem é que vê e prefere ver um homem morto?
Sou um homem morto.
Um poeta aniquilado.
Um poeta esfumado (bela conquista de Da Vinci - sfumato)
Muito bem: tenho poucas horas. Me procuram.
Sou uma espiral galáctica que se encerra e busca o núcleo, que se desfaz sobre si mesma, que se contém e logo explode.
Sou um homem morto e todos esperam a notícia. Apenas feito menor pela pobreza dos detalhes, a pobreza do obituário...me arde a pouca beleza do meu epitáfio.
Não mandarei cartas e revisarão de maneira póstuma o que agora escrevo.
Pouca profundidade deu o tempo ao fóssil e assim, os ossos foram pasto de museus, estudo para os sábios, folclore para os humanóides.
Levanto cedo e simulo ser cidadão. Mostro a todos a cicatriz dos cravos. Santo Tomás toma de novo sua lança, escava e apenas crê que a morte é o final de uma ilusão.
Sou um homem morto.
E ninguém acredita.
terça-feira, 13 de maio de 2025
Dona Sebastiana
O documentário A Filha de São Sebastião (Caturra digital, disponível no youtube no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=6nHORCY-EEE), datado de 2013, focalizou Dona Tiana (Sebastiana Geralda Ribeiro da Silva) matriarca do Quilombo “Carrapatos da Tabatinga”, falecida há alguns anos (2019), na fase madura de sua trajetória. A equipe que realizou o filme foi: Juliana Braga, Luciana Katahira, Larissa Cardoso, José Francisco Duarte e Ana Paula Ferreira de Lima. O documentário contou também com a colaboração de Sandra Maria da Silva, Gabriela Gois, bem como de toda a comunidade Carrapatos da Tabatinga.
Em Bom Despacho existem três matrizes afro-brasileiras: Dona Fiota (já falecida) e Marquinhos Bacará com a Língua do Negro da Costa (pesquisada mais a fundo por Benício Cabral e Sônia Queiroz), a matriz de Tiana, Sandra e Graça Epifânio e a de Zé Geraldo. Um dos indicativos de que existiu um quilombo aqui na região é a presença, bastante rara, da Língua do Negro da Costa, a chamada “língua da Tabatinga”. Anos atrás, eu, Tânia Nakamura e equipe da antiga UNIPAC (hoje grupo UNA) e colocamos Dona Tiana em contato com a Fundação Palmares, que já existia desde 1988. Foi uma sintonia maravilhosa, com a comunidade seguindo adiante com suas próprias pernas e prescindindo de nós pesquisadores e intelectuais para travar suas próprias lutas. Sandra, em especial, está organizando um museu em homenagem a Tiana, já foi candidata a deputada pelo PSOL e foi objeto de estudo de dissertações. A Fundação Palmares parte do pressuposto de que todo lugar onde há resistência negra pode ser chamado de quilombo. Desde 2008 ela reconheceu a região da Tabatinga como um território quilombola. Uma das dissertações que enfocou a comunidade é a de Ana Carolina Oliveira Teixeira Vertelo em sua dissertação O Processo de Constituição Identitária dos Moradores do Quilombo Carrapatos da Tabatinga.
Em 1966, convidada por Dona Elisa Queiroz, chegou em Bom Despacho no longínquo ano de 1966, em uma das antigas “jardineiras” (antigos ônibus). Ela tinha vindo fazer trabalho de assistência social e sentiu carência de eventos culturais. Passou a morar aqui e montou peças teatrais e grupos de dança. Fundou o corte de reinado Moçambique de São Benedito, bem como uma escola de samba que em 1988 obteve o primeiro lugar no carnaval de Bom Despacho.
Esta mulher chamava-se Sebastiana Geralda Ribeiro da filha de São Sebastião, sincretizado na umbanda como orixá Oxóssi. Oxóssi é o grande orixá das florestas e das relações entre o reino animal e vegetal. Sebastião era um soldado que teria se alistado no exército romano por volta de 283 d.C. com a única intenção de afirmar os corações dos cristãos, enfraquecidos diante das torturas. Por volta do ano 286, a sua conduta branda para com os prisioneiros levou o imperador a julgá-lo sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua execução por meio de flechas, que se tornaram símbolo constante na sua iconografia.
Dona Sebastiana recebeu o seu nome em homenagem ao guerreiro mártir, foi batizada pelos seus avós como filha de Oxóssi. Ela era também capitã da guarda de Moçambique, posto que, segundo ela, era apenas ocupado por homens. Dona Sebastiana era mãe-de-santo, revelava verdades sem meias palavras. A fé e a terra eram fontes de força para o dia-a-dia da sua comunidade, que hoje ainda vive com poucos recursos financeiros.
Sua primeira atitude foi construir a casa para abrigar seu santo de proteção: São Sebastião, ou Oxóssi, senhor das matas. Dona Tiana alegou que precisou ir até o bispo em Belo Horizonte para poder participar da festa de Reinado local da Igreja Católica (tudo indica, motivado pelo fato de que ela fundou o seu próprio centro espírita de orientação afro), conforme ela alegou em seu depoimento no documentário. Quem teria enfim revertido a situação teria sido Dom Serafim Fernandes de Araújo, que finalmente deu a autorização para que ela pudesse rezar onde queria. A ideia do documentário foi recolher histórias como essa e mostrar a cultura do povo de Tiana através da luta política e assistência social, além da religião, canto e dança.
O filme mostrou como Dona Sebastiana aprendeu e criou táticas de sobrevivência para enfrentar a sociedade à sua volta. Ela apresentava-se como líder de comportamento polêmico. Tratava-se do equilíbrio entre alegria, angústia e lutas constantes. Tiana definiu-se como “nêga véia de senzala”. Era uma alma plural, múltipla, que representava um universo curioso de sabedoria. O filme marcou ao mostrar, com bela fotografia, as danças, cantigas, rezas, bençãos, entre tantos outros elementos da cultura popular afro-brasileira.
A figura desta mulher inspirou o equilíbrio entre a fé nos milagres, bem como e a triste luta da vida sem esperar por eles. O dilema entre a sabedoria dos santos e a realidade de nunca ter tido a oportunidade de aprender a ler e escrever, retomando aquele debate de Dona Fiota no documentário Eu Tenho a Palavra: Tiana tinha a palavra, o belo discurso e o conhecimento da tradição, mas não tinha o domínio da cultura letrada.
Saulin du Corte: A Importância de Apoiar Nossos Jovens
Saulin du Corte: A Importância de Apoiar Nossos Jovens
Recentemente, tivemos e ainda teremos fatos relevantes para a cultura bom-despachense. Estou fazendo aulas de pintura com Carlos Madeira e estarei expondo e vendendo meus quadros em uma exposição no Espaço do Hipermercado Fidélis São José nos dias 10, 11, 12 e 13 de abril. Bem como o lançamento do livro “Doce Vida” de Toninho Saudade, dia 10 de abril, 19 horas, na Biblioteca Pública local. Nos dias 11 e 12 de abril, uma feira literária no Mineirão da Praça da Matriz. Estou otimista com a abertura de novos espaços como Coliseu (antigo Austin), Oie, pizzaria Maragon, bem como ocorreu uma festa preparatória para a Parada LGBTT de Bom Despacho na STA Floricultura: a Parada desse ano promete. Os organizadores afirmaram que a Parada desse ano promete. Nessa conjuntura, é muito importante dar apoio a novos estabelecimentos e iniciativas dos jovens.
Há anos dei uma entrevista para o amigo Gustavo Menezes no youtube, muito antes de que eu tivesse um canal nesse meio de comunicação como tenho agora (canal Professor Lúcio Júnior). Nele eu falei dos nomes curiosos de alguns estabelecimentos comerciais em Bom Despacho: a barbearia do Leninho (escreve-se Lênin, o que faz pensar numa homenagem ao revolucionário russo, mas na verdade é apenas um diminutivo carinhoso), a finada “Borracharia do Amor”, dentre outros. E eis que surge o “Saulin du Corte” que é uma barbearia fundada por um jovem barbeiro: Saulo César de Paula Mendonça nasceu em 30 de maio de 2007. O pai chama-se Washington Couto e é mecânico, a mãe chama-se Elaine Silva. Saulo começou em casa a cortar cabelo sozinho. Os pais apoiaram a ideia da barbearia. O primeiro curso foi o que fez com Gleisson Junio Silva, “Sô Gleisson”, barbeiro do São José (Arraial). O curso chamava-se “Fade pigmentação freestyle tesoura e finalizações. O barbeiro educador foi esse mesmo Gleisson, a quem Saulo admira muito. Depois fez curso em Nova Serrana, com Mateus Nogueira. Foi um workshop: “barbearia, um negócio de sucesso”, ministrada por Matheus, Lucas Andrade, Renato Silva, realizado em dezembro de 2023.
Saulinho é muito criativo e a barbearia tem uma página no instagram. Gostei bastante de um “reel” de humor que Saulinho fez com um amigo sobre os pensamentos contraditórios do barbeiro e de seu cliente adolescente, o barbeiro quer cobrar um preço que julga baixo e o adolescente acha muito caro e o “reels”, que teve mais de 4000 visualizações, mostra de forma muito bem humorada esse conflito. E fizeram uma produção “ficcional” bem sucedida nessa rede social. A barbearia de Saulin, mais do que um local de prestação de serviços, tornou-se um ponto de encontro. A maioria dos clientes de Saulo são jovens. Saulo sabe fazer os cortes de cabelo da moda, com riscos e desenhos na sobrancelha. A primeira barbearia foi no Jardim dos Anjos, próxima da cadeia. E a segunda, a atual, está no Shopping Assunção.
A toda comunidade: apoiar a luta de nossos jovens, apoiar novos estabelecimentos é fundamental. A esse meu jovem amigo, todo sucesso em sua empreitada!
sábado, 8 de março de 2025
O Arquiimperialismo: O Novo Paradigma do Imperialismo
O professor César Aprile da Silva Aprile definiu, nesse livro publicado pelo próprio autor em 2023, um conceito que julgo muito importante: o arquiimperialismo. O livro, editado pelo próprio autor e que comprei na internet, traz reflexões extremamente necessárias.
A tese dele é que, depois da Segunda Guerra Mundial, o que emergiu não foi meramente um império convencional do capital, mas algo mais complexo e abrangente, que expandiu a definição do imperialismo, a fase superior do imperialismo. É uma forma de imperialismo nunca antes vista. É um arquiimperialismo, um imperialismo que comanda os outros imperialismos. Isso não acontecia no tempo de Lênin e mesmo no de Stálin não foi identificado com essa intensidade, pois Stálin temia uma revanche de Japão e Alemanha ainda depois da II Guerra Mundial. Curiosamente, o arquiimperialismo impediu que isso acontecesse e inclusive mantêm até hoje tropas yankees nesses dois países. A situação de um imperialismo depender de outra potência imperialista é inédito. Os Estados Unidos não se unem a outros imperialismos para dividir o mundo, são autossuficientes, o que é intrigante.
Igualmente César avança bastante ao caracterizar a China como social imperialista usando autores chineses que caracterizaram a União Soviética dessa forma. Ele explica o papel de Cuba em aterrorizar os militares latino-americanos com o perigo do comunismo, focando no exemplo de Cuba, que aliás é bastante eficaz por ter surgido de uma conjuntura aparentemente ingênua de populismo e terminou numa aliança com o social-imperialismo soviético. Cuba é caracterizada como capitalismo burocrático pintado de vermelho. Laos e Vietnã teriam menos conflito com o arquiimperialismo. Coreia Popular seria país de capitalismo burocrático vermelho com uma relação de dependência semicolonial em relação ao capital chinês.
César Aprile desmistifica os Brics, explicando que estão, em diversos graus, ainda submetidos ao arquiimperialismo. A Rússia ainda tem contradições internas ligadas ao capitalismo burocrático. O debate sobre a desdolarização ganha relevância, mas não é uma ameaça real para a hegemonia norte-americana. Além da pressão que os Estados Unidos podem fazer ao dominar o dólar, eles também têm um aparato repressivo internacional que exerce poder sem recorrer a uma forma direta.
Em determinada altura, Aprile chega a conclusões opostas às de Jabbour: a China ainda não está pronta para eclipsar os EUA como maior economia do mundo em breve. Para superar a hegemonia norte-americana, ela precisaria tornar-se um arqui-social-imperialismo. A China ainda não é uma superpotência no entender de Aprile. Ela também obedece ao arquiimperialismo, aceitando implantar sanções contra Coreia do Norte, prejudicando seus próprios interesses, mas satisfazendo o arquiimperialismo norte-americano. Um conflito entre os USA e a China terminaria em prejuízo econômico para os dois países, mas para a China especialmente. A superação dos Estados Unidos pela China é uma tarefa monumental e incerta. Jabbour, ao exaltar essa situação iminente, foca apenas em dados econômicos e cai no revisionismo. Exalta que a URSS produziu Kruschev, mas a China produziu Deng Siaoping (para ele, esse último seria um salto de qualidade incomparável, um desenvolvimento admirado por ele do revisionismo). Jabbour defende o modelo de capitalismo de estado degenerado chinês como a única saída.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Sobre Cuba
Sobre Cuba
O presidente Lula comentou que os operários não participaram nem da revolução cubana e nem da russa e sim classe média. Lula voltou ao velho “obreirismo” que, inclusive, é um problema que ainda retorna nas posturas de um Galo de Luta, que acaba recaindo em algo semelhante: colocar que classe trabalhadora é só o operário industrial e esse setor seria privilegiado em relação aos demais. O fato de Galo de Luta retomar esse mesmo tema em outra clave mostra a incrível persistência desse tópico. Galo de Lula, em debate com Ian Neves, retoma esse obreirismo, chamando Ian Neves, que é professor, de “playboy”, tendo ao lado Chavoso da Usp. Chavoso, posteriormente, retoma o mesmo tema e pondera que pior do que o pobre de direita é o playboy de esquerda. Difícil debater com essa criação tipológica hegeliana pobre sob a égide de Jessé de Souza, cuja ciência social é enviesada para o lulismo e para o âmbito eleitoral.
A revolução russa, inclusive, foi puxada pela classe trabalhadora de Leningrado e Moscou, já farta da guerra e das condições insuportáveis derivadas dela. A ela juntaram-se soldados e camponeses, mas foi uma revolução puxada pela classe trabalhadora que chegou a seu limite, já extenuada com o esforço da Primeira Guerra Mundial. Ou seja, Lula errou.
E errou mais uma vez a respeito da revolução cubana. Em Santa Clara, episódio lembrado no filme Che, os ferroviários, simpatizantes da revolução, atrasam o trem e conseguem que o grupo de Che intercepte a ajuda para o grupo de Batista em Havana, tornando praticamente impossível a defesa de Havana, que logo a seguir caiu. Poderíamos elencar outros exemplos: a greve geral de 1958, importante ainda que fracassada, o apoio do movimento citadino de Frank País ao foco de Che e Castro, dentre outros exemplos. Che e Castro apagaram a importância do movimento nas cidades depois da revolução, mas há muito registro da importância desse movimento nas cidades. Podemos supor que o movimento de Castro seria esmagado se o Diretório Revolucionário não tivesse atacado o palácio presidencial em 1957. O governo não podia deslocar tropas para o campo depois desse episódio.
Chavoso pensa o conceito de playboy de esquerda como o personagem que advoga transformações, mas na prática aceita e pratica neoliberalismo. Ou seja, tem o liberalismo pautando sua mente –no entanto, essa tipologia não se aplica a Ian Neves. A problemática de Ian Neves é o ecletismo, bem como o de João Carvalho.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
Jabbour: Uma Resenha de Socialismo do Século XXI
De início, Jabbour e Gabriele não conceituam socialismo conforme Marx definiu em Crítica do Programa de Gotha: ditadura do proletariado (o termo não aparece!). Nem o termo imperialismo parece lhe agradar. Para Jabbour, a referência para socialismo não são os planos quinquenais da URSS dos anos 30, uma forma de democracia direta (os sovietes e guardas vermelhas) nem as cooperativas socialistas; nem a Grande Revolução Cultural Proletária e nem o Grande Salto Adiante. Parece preciosismo, mas Jones Manoel, por exemplo, é da opinião de que existem vários socialismos –e que não é a opinião de Marx e Engels no Manifesto. Aliás, para Jabbour, há tensão entre o Marx militante político e o cientista social. Creio que há, porém, tensão ou mesmo oposição entre o projeto revolucionário de Marx com o que Jabbour pratica e teoriza. Tanto que para ele, não é preciso preocupar-se com a revolução, uma vez que existe a China (?) Essa conclusão é no mínimo mirabolante para um marxista, mas Jabbour a repetiu em uma live com Dilma Rousseff – está presente nesse livro. Talvez não seja para um “marxiano” –mas “marxiano” é, por excelência, um acadêmico que não acredita no projeto. Ou para um marxólogo de Boitempo. Contrariado nesse ponto importante por Jones Manoel, chamou o militante do PCBR de “delinquente político”.
O termo “socialismo de mercado” já é inexato. O sistema mercantil sempre existiu na China maoista, ou seja, antes do marco da “modernização” de 1978. O mercado existe desde a antiguidade. Jabbour parece confundir mercado com capitalismo, um equívoco primário, diga-se de passagem.
O correto é supor que na China existe um arranjo social-imperialista semelhante à URSS de Kruschev até Gorbachev. Socialismo de boca, imperialismo de fato. Esse arranjo mostrou-se historicamente frágil: quando se destrói o socialismo, restaura-se o capitalismo, aumenta o mal-estar e o sofrimento das massas. Volta a desigualdade social entre regiões, causando choques entre as etnias e grupos religiosos, etc. Ao mesmo tempo em que prossegue o clima de hostilidade com o mundo capitalista e o estado supercontrolador não impondo ditadura do proletariado, mas da burguesia ligada ao estado contra o proletariado. Para poder fazer frente ao risco de desmoronamento e implosão desse arranjo, que a era Gorbachev mostrou, o capitalismo de estado chinês parece ter colocado em primeiro lugar a criação de um ambiente de estar de bem estar social, com oportunidades de emprego.
Jabbour tem um título em que diz algo como “não voltamos à estaca zero depois de 1989”. Esse parece ser mesmo o problema. Difícil encarar que não existem países socialistas hoje, bem como Lula não é de esquerda. Postular o oposto é não aceitar a derrota de 1989, é ser nostálgico. Jabbour, na verdade, liga-se a burguesia burocrática, elogia o desenvolvedor do capitalismo burocrático que foi Vargas e outro expoente que representa essa burguesia burocrática, Lula.
Jabbour inicia citando Deng Siaoping falando em “forças produtivas”, jogada usada também por Liao Shiao Chi para fazer a contrarrevolução. Em suma, Deng Siaoping pega a frase “desenvolver as forças produtivas e fazer a revolução”, corta a frase e fica apenas nas forças produtivas, desenvolvendo a contrarrevolução graças à prosperidade econômica que lhe permite agir. No decorrer de suas explicações, não há ruptura entre Deng e Mao, ele deixa de lado o golpe de Hua Kuaofeng em 1976, a prisão da velha guarda maoista. Em 1976, no noticiário da época, era bastante corrente a ideia de que não era apenas a esposa de Mao quem estava sendo condenada e sim as ideias de Mao. Essa informação é correta, mas Jabbour passa simplesmente ao largo dela. Jones Manoel também. Jones Manoel teoriza que existe uma virada à esquerda na China de Xi Jinping e que os intelectuais terão, a partir de Losurdo, considerar que a China é socialista novamente. O partido, no entanto, rejeita o conceito de luta de classes.
Pode parecer exagero, mas Jabbour em determinado momento considera que Cuba e Costa Rica estão “próximas do ideal do comunismo” porque a expectativa de vida das pessoas dobrou, não há escassez e foi erradicado o analfabetismo. Cuba, realmente, não tem analfabetismo, mas escassez com certeza sim. O racionamento começou em 1961 e nunca acabou. Jabbour, inclusive, considera Cuba socialista e de economia planificada, mas desde 64 a Juceplan, Junta Central de Planificação, foi extinta e unificada com o Ministério da Economia e Planificação. Conforme João Pedro Fragoso, Cuba seguiu o caminho da URSS revisionista de Kruschev, com empresas autônomas, buscando a rentabilidade, sem planificação central. Jabbour, inclusive, considera que a iniciativa privada em Cuba “está prosperando”. Em Cuba, no entanto, como diz o sociólogo Frank Garcia, o modelo chinês não funcionou porque os USA não aceitaram o país no sistema financeiro internacional e não investiram capital como fizeram na China e no Vietnã. O estado tem investido em hotéis, que é rentável, enquanto o país vivencia crise em praticamente todos os domínios. Ao invés de socialismo, levanta a hipótese de que um capitalismo burocrático “vermelho”.
Para Jabbour, não existem condições de debater o “socialismo” cubano –na verdade, o revisionismo cubano muito influente no Brasil. Não sei por quê. Não se debate porque a universidade não quer debater, a intelectualidade não quer debater. O que motiva o debate sobre o socialismo chinês são as constantes denúncias de que as leis trabalhistas lá são frouxas, as jornadas de trabalho exaustivas, as denúncias de trabalho escravo constantes. Para piorar, uma denúncia aconteceu recentemente numa empresa chinesa na Bahia, não tendo sido comentada pelos entusiastas da China como Jones Manoel, Humberto Matos e outros revisionistas, tendo virado assunto apenas para o marxólogo anticomunista Luiz Felipe Miguel atacar Jabbour, que responda alegando que não se pode tomar o todo pela parte e voltando a uma habitual sinofilia (e não sinologia), ao algo estilo: “Não precisamos fazer revolução, afinal temos a China, podemos ficar na prostração colonial e neoliberal, apoiar Lula, mesmo se este aprofunda a condição semicolonial e semifeudal do país, afinal, essa prostração também beneficia o social-imperialismo chinês que favoreço”.
Sobre semifeudalidade, um escândalo: Jabbour alega que ela existe em áreas atrasadas do Vietnã e da China ainda hoje. Ele não a nomeia, mas fala em “formas pré-capitalistas” que existem no campo até hoje nesses países. Muito surpreendente, pois possivelmente, se existem, foram restauradas na restauração socialista, pois tinham sido extintas com Mao Tsé Tung.
O dirigente estatal, na prática, tinha os mesmos poderes de um burguês. Os dirigentes estatais, junto aos militares, são a classe dirigente de Cuba. Cuba não construiu, portanto, o socialismo, é apenas um capitalismo de estado. O conceito é detestado por Jabbour, mas ele existe em Lênin. Igualmente, Jabbour considera países socialistas a República Democrática do Congo, a Venezuela e o Cambodja, que é uma monarquia constitucional! Seria a primeira monarquia socialista do mundo.
Jabbour não define socialismo e considera o ideal de comunismo algo irrealizável. Quando se anula essa ideia de avançar para o comunismo, utilizando conceito frouxo de socialismo, fica difícil postular que China está numa “etapa avançada do socialismo”. Se o ideal comunista é irrealizável, se está avançando para onde mesmo? Aí se verifica o problema de retirar, como Cuba retirou de sua Constituição de 2019, o termo “comunismo”. Se não existe esse parâmetro de recuo e avanço, como considerar que avançou? O que é realmente inédito é um exemplo raro de socialismo em termos e imperialismo de fato, algo raro historicamente –e bem diferente da outra experiência em termos de sucesso econômico. O paradigma disso foi a União Soviética de Kruschev até Gorbachev.
Jabbour admite que a China exporta capital (um ponto que Lênin que define como uma das características do imperialismo). Mas há mais. A China tomou uma ilha das Filipinas recentemente, em disputas na região. A ilha historicamente é filipina. O país também avançou sobre territórios em litígio no vizinho Nepal.
Um impasse presente no livro é a questão de que a base material influencia a política. Se existem estruturas capitalistas, elas teriam de ter um reflexo na superestrutura, na política –e essa Jabbour nega. Bem como nega o aprofundamento das lutas de classe no socialismo –no que ele segue o revisionismo soviético de Kruschev em diante.
Ao tratar das privatizações no Laos e no Vietnã, que são linha soviética, Jabbour supõe que acontecem como na Chjina devido a “leis mecânicas”, não cópia ou imitação, seriam leis que atuam no caminho do socialismo. Supomos, no entanto, que é o revisionismo de linha chinesa que tomou um caminho semelhante ao de linha soviética, aprendendo com ele, por exemplo, a não atacar uma figura como Mao como fizeram com Stálin. Mao é refutado na prática, mas nas aparências segue como uma inspiração. Isso tem sido bastante eficaz para esconder a restauração capitalista.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Paráfrase
PARÁFRASE
Lúcio Emílio do Espírito Santo
Faculdade de Direito
SE CORRER O BICHO PEGA...
O cadáver de Universino Soares dos Reis, vigilante bancário,
casado, filho de Indalécio Soares dos Reis e Ana Serafina de
São José, jaz sobre a mesa gelada de aço inoxidável da sala
de autópsias.
£ quase meia-noite e a chuva não pára, como também não
param de chegar camburões com outros corpos que vão sendo
rotulados de acordo com a ordem de entrada.
Universino trabalhava na Companhia de Segurança «FORTEX» Ltda e, na manhã de hoje, ao repelir o assalto à Agência
do Banco Alvorada S/A, em Osasco, recebeu um tiro na cabeça,
falecendo antes de receber socorros médicos.
Mineiro de Bom Despacho, há tempos sonhava regressar à
terra natal, já que não suportava mais as condições de vida
na capital paulista, a miséria crescente e o dinheiro cada vez
mais curto para pagar as contas.
Universino já tinha até arrumado a casa em Bom Despacho
e só esperava juntar algum dinheiro para fazer a mudança e ir
embora de uma vez, deixar aquele inferno.
Parece que estava até adivinhando.
— Você quer saber por quê eu quero ir embora? — dizia
ele a um amigo. Eu ganho apenas sessenta mil para criar cinco
filhos. Além disso, o emprego não é garantido. Amanhã posso
ser despedido e cair na rua da amargura, como milhares de
outros trabalhadores por aí. Preciso dizer mais? Olha aqui, meu
chapa, já estou cansado dessa vida estúpida, dar um murro
danado e no fim ganhar um pontapé no trazeiro.
— Mas, no interior a coisa deve estar pior, sô...
— Engano seu. Quando meu pai mudou para cá com a
família, achava que São Paulo era o paraíso. Ele veio achando
que sua vida ia melhorar, aqui ia ter trabalho, bons salários,
escola para os filhos e casa para morar. Pois bem. Um ano
depois, ele morreu atropelado no Sumaré, deixando cinco filhos
totalmente desamparados. Minha mãe, sem condições de susten
tar a casa, entregou meus irmãos ao Juizado de Menores e eu
fui para a casa de um tio, pois era o mais novo, com apenas
dois anos de idade. Onde andam eles agora? Ninguém sabe. E
muito triste, não é?
— A vida é assim em todo lugar, companheiro. Não se
iluda não...
— Mas, em São Paulo é pior. Pra começar, não há empregos.
Quando a gente consegue um, os salários são baixíssimos, de
fome mesmo. As distâncias são enormes. A gente vive perma
nentemente amedrontado, tenso, acuado, tudo nesta cidade é
dor e sofrimento...
Na sala de espera, a viúva Marluce não chora. Cadê lágrimas?
Em seu semblante se estampa apenas o ríctus amargo de tortu
rante angústia. Seu olhar oblíquo percorre os ladrilhos sujos
da sala mal iluminada.
Enquanto não liberam o corpo do marido, bailam em sua
mente passado e futuro. Conheceu Universino num dia de chuva
como este. Ele era carteiro, ela, empregada doméstica. Todo
molhado, Universino resolveu pedir-lhe um guarda-chuva em
prestado.
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— Guarda-chuva não tenho. Tenho sombrinha, serve?
— Se for bonita como você, serve.
A partir de então tornaram-se íntimos. Alguns meses depois
estavam casados. Sempre achou perigoso o trabalho de Univer
sino, mas os encargos de família e esses tempos difíceis não
permitiam o luxo de escolher trabalho. Era o que aparecesse.
Apareceu o de vigilante, Universino não se fez de rogado. Ia
guardar o dinheiro dos outros. Ia se sacrificar dia e noite pela
riqueza de gente que nem conhecia. Mariuce jamais imaginara
que o marido terminaria assim, apesar de conhecer os riscos
do trabalho de guarda bancário. A esperança de um dia sair
daquela penúria não lhe deixava entrever estes riscos.
O corpo de Universino já está vestido e vai ser entregue à
viúva. Na pressa, Mariuce apanhara o terno nupcial e acha
que não deveria ter feito isso. Não vai restar nada, nem a
melhor lembrança dele, pensava. Mas agora é tarde. Abre-se
a porta da sala de necrópsias, o funcionário de plantão chama
Mariuce.
— Aqui está a sua sacola e isso aqui é a certidão de
óbito. Se a senhora desejar, o velório poderá ser feito na capela
do próprio Instituto Médico-Legal.
A viúva recebe o carrinho contendo o caixão.
Alguns voluntários se oferecem para conduzi-lo à capelavelório. Mariuce prorrompe em choro convulso, baqueia, mas é
logo amparada por pessoas desconhecidas. Abrindo o cortejo,
segue uma belíssima coroa de flores, onde se lê:
«Ao Universino, com a gratidão dos clientes do Banco
Alvorada S/A».
II
...SE FICAR O BICHO COME.
O corpo de Geraldino da Silva, vinte e cinco anos, assaltante,
casado, filho de Geraldo da Silva e Maria das Dores, jaz inerte
sobre o mármore frio da sala de necrópsias.
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Já passa da meia-noite. Lá fora a chuva fina e persistente
não pára de cair. O barulho dos camburões que chegam a cada
momento se mistura com o tilintar dos instrumentos de autópsia,
manipulados com certo descaso pelo legista e seus auxiliares.
Geraldino, desempregado há quase dois anos, recebeu um
balaço no peito e outro na testa, ao trocar tiros com o vigia
do Banco Alvorada, em frustrada tentativa de assalto à agência
do banco em Osasco.
Cearense de Quixadá, nunca escondera os propósitos de
retornar à terra natal. Pensava em pegar um pau-de-arara, ele
mais a mulher e os seis filhos, e se abalar para a terra de
nascença. Ainda ontem esteve com o dono de um caminhão de
transportes de carga e sondou preço de passagem para a
família.
— Tu tá querendo voltar pro Ceará, bicho?
— Pois já vai pra dois anos que estou parado, companheiro,
pegando biscates daqui e dali, ganhando patavina, a Maria doente
dos rins, menino chorando com fome. Não, não agüento mais
essa vida, não. Não nasci pra pedir esmola, não, bicho. E
muito menos pra engolir esta vida pai-d'égua...
— Olha, num vai fazer besteira, viu? No sertão a seca
tá braba...
— Lá me arranjo sem me humilhar. Aqui num tem saída:
ou tu vê os filho morrer de fome ou você parte pro crime...
— Num diz besteira, cabra da peste. Tu vai te arruina
de vez...
Na sala de espera a viúva Aparecida não tem pressa em
rever o marido. Em seu semblante se desenha o ríctus amargo
de torturante vergonha. Não ousa erguer o rosto, encarar as
pessoas. £ viúva de um ladrão. Os filhos são filhos de um
bandido. Na ocorrência policial está registrado: profissão: assal
tante. Ora Geraldino é pedreiro e bom pedreiro. Posso mostrar
as construções em que trabalhou. Era azulejista, um verdadeiro
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artista. Porém, o que ganhava não lhe permitia dar de comer
aos filhos. Ele era bom marido, mas as dívidas crescendo
sempre, o dinheiro cada vez mais curto, começamos a descer
uma perambeira sem fim, em que o próprio humor se azedava
e despontavam acusações mútuas. Aparecida estranhava seu
homem, agora carrancudo e rude, enturmado com cheia de
má-bisca, encafuado nos botequins, procurando quem lhe pagasse
uma pinga. Acreditava que a salvação era voltar para Quixadá,
ir embora de uma vez, deixar aquele inferno.
O corpo de Geraldino está vestido e vai ser entregue à
viúva. A mulher se adianta, postando-se nas proximidades da
sala de necrópsias, que permanece fechada. Aparecida está ansio
sa, não sabe o que vai sentir quando deparar com Geraldino
morto, a única pessoa no mundo em que confiava, com quem
se sentia plenamente segura e em quem encontrava forças para
levar essa vida cada vez mais atribulada e difícil. Pensa nos
filhos. Acha que deve trazê-los para despedirem-se do pai. Afinal
somos uma família. Não posso roubar-lhes o direito de ver pela
última vez aquele que lhes deu a vida. Só porque era assaltante?
Quantos pais de família estão virando assaltantes?
Abre-se a porta da sala de autópsias, o funcionário de plantão
chama Aparecida.
— Aqui estão os pertences do morto. Isso é a certidão
de óbito. O velório será feito na Capela do Instituto Médico-Legal.
Os funcionários do Instituto conduzem o carrinho de metal,
contendo a urna. Visto o marido, Aparecida vai se refazendo de
sua angústia e de sua vergonha. No seu íntimo, ama Geraldino,
aprova sua atitude e sibila entre os lábios, comovida, «estou
contigo, amor, estou contigo»
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