Revista Cidade Sol
Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Por que Vargas Pode ser Chamado de Fascista?
Muito embora eu considere Vargas uma figura complexa e fascinante, a hipótese de que ele foi fascista deve ser levada a sério. Devemos trabalhar com ela e refutar vigorosamente o que diz Frederico Krepe.
Primeiro, Krepe ao definir o fascismo não utiliza nenhum autor marxista, apenas outros burgueses liberais como ele. E nos basearmos, então, em Gonzalo:
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O que entendemos por fascista e corporativo? Para nós, o fascismo é a negação dos princípios demoliberais, é a negação dos princípios demoburgueses nascidos e desenvolvidos no século XVII na França; esses princípios tem sido abandonados pela reação, pela burguesia no mundo, assim como já na I Guerra Mundial nos fez ver a crise na ordem demoburguesa, por isso é que posteriormente o fascismo surge como insurgência.”
“Consideramos também o fascismo como uma ideologia eclética, feita de retalhos, que recolhe aqui e ali o que lhe convém (...). Ele toma o que estiver mais à mão”.
“O corporativismo seria organizar a economia em corporações. E seria a negação do parlamentarismo” (GONZALO, 1988).
Vargas preencheu todos esses elementos: seu sucesso durante sua carreira implicou em pegar o que estava mais à mão. Embora ele leia Saint-Simon, é na ditadura de Júlio de Castilhos é que está sua identidade. E essa ditadura, embora modernizadora sob alguns aspectos, nega desde sempre a divisão em três poderes estabelecida pela revolução francesa, concentrando os poderes no executivo, criando absolutismo presidencialista que é sempre presente no fascismo. Krepe sabe disso:
O projeto de Vargas, desde o início, é de modernização do Estado e de centralização do poder (KREPE, 2025),
E também nega o direito de liberdade de expressão democrática perseguindo a oposição e reorganizando o sistema político e, com sua ideologia eclética, essa colcha de retalhos que possibilita disfarces (positivismo, socialismo utópico, castilhismo, doutrina social da igreja católica, fascismo e nazismo). E ao chegar ao poder, Vargas nega o parlamentarismo, dissolvendo o congresso, não governando inicialmente nem sequer com aquela apodrecida fachada liberal de latifundiários e assumindo a ditadura burguesa sob a forma do absolutismo presidencialista. Ele nega também a ideia de ser regulado por uma constituição, ele só a promulga depois de um outro levante e logo a seguir coloca em seu lugar uma constituição de corte fascista, abertamente copiada da ditadura militar polonesa.
Vargas mesmo advogava por soluções dentro do sistema, até que, de ministro da fazenda de Washigton Luís, assumiu o poder numa quartelada que insistia em chamar de “revolução democrática”.
Vargas, como Alvarado no Peru anos antes, fez reformas e trouxe direitos trabalhistas apenas para poder corporativizar as massas em seu favor. Alvarado falava em reforma agrária apenas para fazer evoluir o semifeudalismo. E o varguista Darcy Ribeiro trabalhou ativamente para Alvarado, identificando-se com ele como se identificou com Vargas anteriormente —e não por acaso! Por isso Vargas fala em reforma agrária nos anos 50, bem como Jango e Brizola, apenas para corporativizar as massas no campo. Mesmo quando realiza estatizações, sua finalidade é corporativizar toda a sociedade. Ele levanta a bandeira do nacionalismo, mas é sempre no sentido de negar a luta de classes, de negar os “elementos dissolventes do caráter nacional”. A nação como a negação da bandeira vermelha dos trabalhadores, a nação como conciliação do trabalho e do capital. Esse elemento reaparece até mesmo no fascismo bolsonarista. Krepe “esquece” a repressão brutal do levante antifascista da ANL em 35 e isso é intencional. E esquece que esse PC que ele detrata como “stalinista” rachou o exército nessa episódio e fez com que o comunismo fosse altamente levado a sério pelo exército e por todo o aparato de repressão brasileiro até hoje. E lembremos que Brizola e Jango não conseguiram efetivamente rachar esse exército em 64. Em 35 houve embate entre grupos no exército, em 64 não.
Fausto Arruda, sociólogo, considerou-o o fundador do capitalismo burocrático brasileiro. Em outras palavras, do capitalismo selvagem brasileiro, esse capitalismo associado ao capital estrangeiro e ao latifúndio, em um importante artigo publicado em A Nova Democracia.
Em primeiro, Vargas é uma figura muito mais oligárquica e conservadora do sistema do que Krepe imagina. Ele não foi contra as elites. Ele mesmo era uma figura da oligarquia gaúcha castilhista. Advogou, conforme Fausto Arruda, pela mudança dentro do pacto das oligarquias, até que não foi mais possível. Mas depois de sua quartelada, logo fez pacto com as oligarquias e imperialismos estrangeiros, optando pelo imperialismo yankee, que preferiu descartá-lo em 1945 em uma nova quartelada feita pelos mesmos generais reacionários que apoiaram sua ditadura fascista em 37. Os generais fascistas e os USA recusaram sua jogada perigosa com a URSS e os comunistas, pois só aceitam o serviçal por inteiro.
No fim das contas, foi altamente perniciosa a aproximação dos comunistas com o social-fascismo varguista em 1945 e depois de 1954. Faltou realizar uma análise mais rigorosa do fenômeno desde sempre, o que não foi feito. Foram atraídos para um abraço de afogado em 1945-47, sendo ridicularizados “queremistas” e querendo “constituinte com Vargas”, para depois serem surrados em 54 por não apoiá-lo. Apanharam por apoiá-lo, apoiaram por não apoiá-lo. Constituinte com um inimigo da constituição, um espertalhão que advogava que “as constituições são como as virgens, nasceram para ser violadas”. Atacados pelas massas lumpen incitadas pelo varguismo —afinal, os varguistas sabem que os comunistas são seus inimigos e, com sua queda, poderiam se beneficiar —fazem aliança novamente, apenas para naufragar novamente em 64, apenas para perceber que, sem o líder, o projeto varguista já estava acéfalo e com a validade vencida desde 54.
Os comunistas confundiram burguesia burocrática varguista com burguesia nacional. Não podemos reclamar porque até mesmo até hoje o equívoco continua e Frederico Krepe traz água para esse moinho, sem dúvida. E com o lulismo o erro continua vigente até a exaustão.
Krepe apenas insiste em repor o varguismo como horizonte para pensar um projeto nacional, repor todos os equívocos sem aprender nada, enquanto o único horizonte possível é a nova democracia: no horizonte do país surge o dilema: nova democracia ou subcapitalismo (autocracia burguesa). Isso é querer girar a roda da história para trás devido à falência do projeto petista. Krepe sonha, em seus delírios platônicos e idealistas social-fascistas, que uma nova autocracia burguesa varguista possa assumir o poder e aí ele “galgar o caminho florido das posições”.
Durante o período Vargas estavam vigentes leis que proibiam a imigração de pessoas de origem semita, ou seja, judeus. A ideia era trazer imigrantes para um projeto de embranquecer o país, imigrantes como os italianos, que se misturassem para que a raça branca fizesse valer sua superioridade “natural”. Daí que os judeus ficavam sendo esse grupo que não se integrava e não se prestaria ao projeto racista. A eugenia estava na Constituição de 34.
O varguismo foi um projeto com data de validade. Na atualidade, o projeto petista assumiu seu lugar e, sob alguns aspectos, assumiu uma face de UDN operária, ligada a igreja católica (a doutrina social da igreja novamente, desta vez com liberais católicos criando o MST e tomando a bandeira da luta pela terra das mãos dos comunistas). Ao contrário do confronto anterior entre burguesia burocrática e burguesia exportadora, quando encenava-se um confronto entre desenvolvimentismo e entreguismo tendo como pivô a figura de Vargas, o confronto já é mais rebaixado: entre a UDN operária que congrega trotskistas, católicos liberais ligados ao partido democrata e burocracia sindical, opondo-se a UDN abertamente entreguista de Collor, FHC, Bolsonaro, Temer. Embora assuma faces grotescas de combate, não há projeto algum em disputa, bem menos do que antes. O que antes era esporte radical virou jogo de porrinha.
Em termos de gerar confusão e divisões no seio do partido comunista brasileiro, o varguismo foi incrivelmente bem sucedido, bem como o sr. Darcy Ribeiro ao desenvolver na UNB as teses trotskistas. Krepe também apresenta essa face: por um lado flerta com Aldo Rebelo, hoje um bolsonarista mais abertamente fascista que advoga a anistia, por outro comunga com Jones Manoel em convescotes trotskizantes e bolivarizantes, tendo ao lado outros órfãos do lulismo. A evolução de Aldo Rebelo do PC do B revisionista ao fascismo aberto é digna de ser estudada por Elias Jabbour. Jabbour por um lado trabalha contra o Brasil para o imperialismo chinês e por outro para a degenerada burguesia burocrática carioca, com Eduardo Paes. Nada de bom pode sair de algo assim. Os revisionistas costumam, como o passar do tempo, assumir posições mais abertamente burguesas. Jabbour advoga tolices como “Lula se conciliou com Vargas na cadeia”. Absolutamente não ocorreu tal. Lula intui sabiamente que o projeto anterior da burguesia burocrática está falido, ao contrário das tolices de Krepe —até porque ele veio para parasitar sua carcaça. Lula não instaurará uma autocracia burguesa, abrirá alas para ela, como por pouco não aconteceu em 2022. .
Foram todos muito bons nisso, desde Brizola falando em “socialismo moreno” e na prática seguindo o castilhismo fascistizante e autoritário.
O trabalhismo, por sua natureza social-fascista, em suas alas à direita se aproxima do fascismo e à esquerda, liga-se ao trotskismo. Mesmo Nildo Ouriques e Jones Manoel apresentam essa oscilação, alternando-se entre os polos do bolivarianismo e do trotskismo em suas inúmeras variantes.
Júlio de Castilhos gerenciou o estado do Rio Grande do Sul com reeleições sucessivas, concentração do poder no executivo e perseguição aos seus opositores. E o resultado de sua longa ditadura no poder foi uma guerra civil sangrenta. É bem curioso que o varguismo quase levou a essa guerra civil em 64 e o lulismo em 2022. As frações da burguesia sabiamente preferem a conciliação, pois a guerra civil sempre acelera a história; com ela, ambas terão muito a perder.
Vargas assumiu um lado naquela guerra, era ligado a Borges de Medeiros e aos centralistas contra os federalistas que usavam lenço vermelho. O pai de Brizola era desse grupo que usava o lenço vermelho como símbolo, mas foi morto pelos seguidores de Borges de Medeiros, mas mesmo assim conciliou-se com eles. Tanto Vargas quanto Brizola utilizaram o lenço vermelho simbolizando uma conciliação local. Tanto Brizola e Vargas não deixaram a herança autoritária castilhista, pelo contrário, eles a dvogavam.
Brizola, fundador do PDT onde pontifica o filósofo Krepe, advogava claramente que seu objetivo era transformar o Brasil num país como a Austrália, um país imperialista, ou seja, algo inatingível. Brasil jamais será país imperialista, ou será subcapitalista ou socialista. Krepe insiste em um hipotético “estado de bem-estar social brasileiro” que só seria possível se o país pudesse se tornar um país imperialista como a Austrália, país, inclusive, que mandou tropas para o Vietnã, segundo a ativista vietnamita Luna Oi comentou em vídoe recente. Por outro lado, Brizola, como o Kuomintang de Chiang Kai Shek, nunca escondeu que queria esmagar com uma mão o imperialismo yankee e com o outro o comunismo de Moscou. Para tanto, escudava-se na doutrina social da Igreja Católica (assim como fizeram ditadores fascistas como Mussolini e Dolfuss, da Áustria). Mesmo Hitler também conseguiu essa conciliação com a religião.
Darcy Ribeiro, um trânsfuga do PCB que passou ao trabalhismo, igualmente serviu a essas ideias quando trouxe um não-marxista pernicioso e trotskizante, André Gunder Frank, para a UNB e disseminar teorias trotskiszantes contra o PCB de Nelson Werneck Sodré. Foi incrivelmente bem sucedido. Teorias semelhantes são até hoje hegemônicas na universidade brasileira em seus poucos núcleos que estudam marxismo. Francisco de Oliveira diz que o país não é subdesenvolvido, é um “ornitorrinco”, enquanto Florestan Fernandes chegou à absurda conclusão de que aqui temos um “capitalismo completo”. Todas teorias nessa linha de achincalhar as teorias do velho PCB que, apesar de tudo, elaborou hipóteses que devemos repensar, mas jamais levando em conta hipóteses tolas. Apenas porque o país tem industrialização dependente (e mais e mais, retrocede para economia agro-exportadora), é que devemos deixar de lado a hipótese de que é um país semifeudal e semicolonial.
Vargas ao chegar ao poder aboliu a fachada podre de liberalismo e adotou no governo federal uma ditadura bastante similar ao seu castilhismo natal. E podemos dizer que nunca governou bem sem ela. Um dos motivos para seu suicídio em 54 foi não conseguir governar sem ser dessa forma ditadorial com a qual estava acostumado.
Frederico Krepe liga-se ao PDT, partido que até bem pouco tempo estava na base do governo petista. E escreve na blogosfera petista, em blogs como O Cafezinho, Disparada, etc. Dialoga alegremente com o petucano Haddad em podcasts conservadores, etc. E defende que não chamemos Vargas de fascista. Mas o que dizia de Vargas o professor Marco Aurelio Garcia, um importante intelectual petista já falecido? Vejamos sua fala citada numa coletânea de Martha Hornecker:
No caso brasileiro, a única forma pela qual a classe operária tinha aparecido na política brasileira tinha sido através do mecanismo do populismo, muito submissa ao Estado. Alguém poderá dizer que na Argentina também houve populismo, mas na Argentina surgiu através de um movimento operário já muito organizado e forte, que tem uma certa capacidade de negociação com o líder, o Perón. O presidente argentino tem que fazer mais concessões aos sindicatos e, por isso, o peronismo é muito mais radical que o varguismo. No caso brasileiro, o varguismo tem uma inspiração fascista muito mais pronunciada, a idéia de paz social, de equilíbrio, de modelo corporativo. (Garcia, Marco Aurélio. Apud: HONECKER, 1992: p. 28)
Essa posição era a predominante nos primeiros tempos do PT. Ela só mudou a partir de quando Lula chegou ao poder em 2002. Sua posição passou a ser simpática a Vargas, mas simpática principalmente a uma de suas práticas: corporativizar os sindicatos com o nosso velho estado.
Autocracia Burguesa ou Nova Democracia
Krepe não verá realizados seus sonhos mofados de uma nova autocracia burguesa que caminhe para um “projeto nacional” (quando em realidade é da burguesia burocrática) e que saiba “mediar conflitos sociais” corporativizando as massas. O que surgiu no horizonte desde 2013 é uma autocracia burguesa que garanta a situação semicolonial, o semifeudalismo. Krepe não verá um outro autocrata burguês que como aquele que “(…) suspendeu a ordem liberal para construir instituições de Estado”. Ao dizer isso, depois não adianta reclamar que é ruim “associar nacional-desenvolvimentismo a autoritarismo” —se você acaba de fazê-lo. O dilema do Brasil em nosso tempo é entre autocracia burguesa ou nova democracia, subcapitalismo ou socialismo. A tentativa de reviver PTB de Vargas é uma tentativa de arregimentação dos trabalhadores em prol dos interesses de um setor da burguesia burocrática-latifundiária no capitalismo selvagem. Seus rótulos e apelos ao estilo desse de Krepe sobre Vargas sempre os tornarão massa de manobra para seus objetivos.
Frederico Krepe https://fredkrepe.substack.com/p/por-que-getulio-vargas-nao-foi-um/comments?utm_source=post&comments=true&utm_medium=web>>
Memórias do Subdesenvolvimento
Memórias do Subdesenvolvimento
	Para Glauber Rocha, o filme Memórias é a execução do intelectual pequeno burguês. Vejamos o que ele diz: “o melhor filme cubano, e esta é a opinião mundial unânime, é Memórias, porque é a execução do intelectual burguês com o rigor antimoralista capaz de convencer os inimigos do comunismo à revolução” (ROCHA, 1997, P. 466). Lembremos, no entanto, que há uma ambiguidade em centralizar a narrativa em um contrarrevolucionário –ele não deixou de ser o herói do filme.
	Gutierrez Alea focalizou seu filme em um contrarrevolucionário, Sergio. E não foi o único filme em que ele fez isso: Os Sobreviventes também é focado em uma família de contrarrevolucionários; o filme mais famoso de Gutierrez Alea, Morango e Chocolate, nos anos 90, também tem como eixo a relação entre um militante e um gay religioso que lê Vargas Lhosa (rompido com Cuba por ocasião do caso Padilla, em 1971). Sergio também ressalta o subdesenvolvimento que, apesar da revolução, em Cuba continua existindo. “Nada mudou”, diz ele. “É uma Tegugigalpa do Caribe”, diz ele, ou seja, cidade pequena, provinciana, subdesenvolvida. E de fato continuou: mudou de caudilho (de Batista para Fidel) e mudou de amo (do imperialismo russo para o social-imperialismo soviético), mas continuou dependente, subdesenvolvida.
Sarcasticamente, Sérgio comenta que é cômodo ser comunista em Paris, como Neruda. Esses comodistas deveriam “ir para Cuba” – lema hoje onipresente no Brasil. A queixa dos cubanos em relação ao discurso dos estrangeiros do esquerda é muito recorrente e também aparece nos textos de Alina Hernandez, professora de História de centro-esquerda, no Centro Cívico de Cuba. Essa consigna reapareceu depois com Reinaldo Arenas, o romancista de Antes que Anoiteça, no filme Conduta Impropria e, possivelmente, a partir daí ganhou o mundo.
O filme Memórias passa das falas de Sergio sozinho vendo Havana à distância para uma fala mais alinhada com o castrismo a respeito do desembarque dos dissidentes em Playa Girón (Baía dos Porcos). Não eram os homens de Batista que chegaram ali e sim os liberais que se sentiam traídos por Fidel, com objetivo de ajudar a guerrilha liberal em Camaguey que começou em 1961 e foi até 1965, mais, inclusive, do que a guerrilha de Sierra Maestra. No filme, analisa-se que os homens que chegavam a Baía dos Porcos era uma miniatura de uma sociedade burguesa: havia um padre, um empresário, um filósofo e, finalmente, um torturador. Calvino, o torturador, traz a verdade do grupo: “sou parte de um grupo”, enquanto o padre diz: “não é porque fiz parte da conspiração que sou um conspirador, meu papel foi somente espiritual”. A verdade do grupo burguês estava no assassino. Vale ressaltar que a abordagem do desembarque em Playa Girón é engajada com a versão oficial. O que se pode dizer, no entanto, é que os camponeses de Camaguey e os camponeses em geral queriam terra, mas não foram atendidos, passaram a trabalhar em fazendas estatais ganhando pouco dinheiro. É muito importante esse ponto, pois comprova a teoria da revolução da nova democracia e nega as ideias trotskistas: a coletivização é um processo gradual, sem atender aos camponeses numa primeira etapa de nova democracia. O desembarque em Playa Girón era para dar força para a guerrilha liberal em Camaguey e, não obstante, essa guerrilha continuou até 1965.
	A abordagem dos acontecimentos de Playa Girón de forma a coincidir com a propaganda do castrismo a respeito foi uma passagem conflitante e inverossímil do filme. Um contrarrevolucionário não poderia dizer aquilo.
Fidel e os Tempos do Gatilho Alegre
	Ramos Grau San Martin estava no seu segundo mandato, no ano de 1945. O primeiro tinha sido nos anos 30, o governo dos cem dias. Cuba tinha propensão a resolver as coisas na base do revólver. Em 46, a corrupção já estava muito disseminada. A violência política virou o pão de cada dia. De 1944 a 1948 foram 64 assassinatos políticos. Centenas desses revolucionários eram pagos pelo estado, como no ministério da educação. Essas pequenas organizações (MSR, UIR) matavam antigos policiais de Batista e Machado. E também se matavam entre si em rixas armadas violentas. A universidade de Havana era um epicentro dessa violência política. Enrique Ovares, antigo líder estudantil, comentou que, para essa geração de Fidel, era bastante válido o assassinato politico.
	Nessa conjuntura é que chegou a Havana para estudar Direito o jovem Fidel Castro, um rapaz superdotado e ambicioso, mas complexado por ser filho bastardo. Ele de início entrou no MSR, Movimento Social Revolucionário. Eles exigiram um atentado como ritual de iniciação. Ele e seu grupo supostamente o fizeram, mas não mataram Leonel Gomez Pérez, o líder estudantil rival, líder da União Insurrecional Revolucionária. No entanto, eles erraram o alvo e feriram outro estudante e um menino de doze anos. A UIR marcou Fidel por isso.
	Fidel passou então a desenvolver a obsessão com segurança –e com bastante razão. E também a tendência a recorrer ao terrorismo individual contra os seus rivais, assassinando-os, resolvendo as diferenças na base do assassinato, mesmo na esquerda. Ele não tinha conseguido entrar no MSR e tinha se queimado com a UIR. Poderia, então ser morto e ficou preocupado com isso. Procurou, então, graças a um amigo em comum, o líder da UIR, Emilio Tro Rivero, veterano da Segunda Guerra Mundial. Fidel pediu perdão a Emilio Tro e foi aceito na UIR.
	A tarefa passou, então, a atacar um líder importante da organização da qual tinha acabado de sair. E o grupo de Fidel supostamente esteve envolvido na morte de Manolo Castro (que não era parente), presidente da Federação Estudantil Universitária (FEU). Num domingo de carnaval de 1948, dois homens mascarados balearam e mataram Manolo Castro na saída de um cinema. Castro foi preso devido a esse assassinato, mas um colega do curso de Direito, Frank Balart, da família Diaz-Balart de quem era amigo e até se casou com uma deles (Mirta Diaz-Balart, sua única esposa oficial), conseguiu tirá-lo do processo. Castro foi a Colômbia para fugir do processo político, mas também envolveu-se em violência política no chamado bogotazo.
	O conflito entre MSR e UIR escalou até o massacre de Orfila, onde foi morto o líder da MSR, Rolando Masferrer, uma verdadeira campal entre as duas organizações.
	No verão de 1948, foi morto Oscar Fernandez Caral, um sobrevivente do MSR no massacre de Orfila. Castro foi indicado pelo assassinato, mas o caso foi encerrado por falta de provas. Fichado pela polícia desde 1949, Castro estava também muito marcado pela UIR, o que deixou-o paranoico e deu trabalho a seu pai, que teve de ajudá-lo a pagar sua defesa nos processos. Rolando Masferrer perseguiu Castro várias vezes, quando ele aparecia, Castro voava para outro lugar.
	A saída de Castro foi formar-se e mudar de vida, queimado como estava. Casou-se com Mirta Diaz-Balart, mulher de alta sociedade e família ligada a Batista, abriu escritório de advocacia e passou a sonhar em candidatar-se ao parlamento. O golpe de Batista em março de 52, instalando uma ditadura, fazendo com que o presidente Prio Socarrás tenha de se exilar, frustra a carreira política de Castro. E ele tenta, então, trazer sua experiência nas organizações revolucionária para a juventude de um partido legalista, o Partido Popular Cubano. E daí parte com a juventude ortodoxa de origem pobre para ação violenta em La Moncada, mas essa é outra história.
Fidel Castro e os Tempos do Gatilho Alegre, Enrique Ros.
João Carvalho e Cuba
João Carvalho e Cuba
	João Carvalho, admirável professor e ativista, editorialista de A Nova Democracia, comenta por vezes um tema muito caro a nós, a revolução cubana. Algumas de suas posições me parecem problemáticas. Ele chega a afirmar que os Estados Unidos deveriam deixar Cuba evoluir tranquilamente sem embargo, de forma que pudessem, então, verificar que o socialismo de fato funciona. Essa declaração tem dois problemas: 1) considerar que o arquiimperialismo estadunidense poderia permitir esse tipo de evolução naquele período, o que é ignorar a natureza agressiva do imperialismo, é ser kruschevista e acreditar na “emulação pacífica”. 2) Considerar que Cuba construiu efetivamente o socialismo; supomos que Cuba mais se declarou socialista do que efetivamente foi além do capitalismo de estado e completou a revolução democrática.
	João Carvalho cita o vídeo de Michael Parenti, em que Parenti começa dizendo que não se importa se chamamos Cuba de capitalismo de estado, chame da forma que quiser. Isso já é um erro grave. É muito importante termos uma análise crítica a respeito dessa experiência que se diz socialista. A partir disso, Parenti ressalta que foi a Camaguey (justamente onde houve mais repressão a camponeses devido a uma guerrilha liberal) e alega que lá disseram que, ao contrário de antes, no tempo do Batista, agora havia saúde e não havia mais analfabetismo. Mas a educação cubana é usada para a propaganda do castrismo, a educação, segundo Frank Garcia, do blog comunistas, não é dialógica como Paulo Freire pensava. Foi importante fornecer esse serviço de saúde em Camaguey justamente para debelar a rebelião que durou de 61 a 65, mais do que a rebelião de Castro em Sierra Maestra. Se Che quisesse combater, ele poderia ficar e combater essa guerrilha. Portanto, Che partiu para o exterior por outros motivos –sua excessiva criticidade foi um deles. Creio que sim, é verdade, houve melhoras desses índices, mas vendo no que deu hoje em dia, creio que é injustificável o grau de repressão contra quem pede simplesmente “energia” e “comida”.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Sobre a Entrevista de Aleida Guevara no Podcast Três Irmãos
Sobre a entrevista de Aleida Chevara: ela fez bem em criticar os Conselhos de Defesa da Revolução, pois hoje eles se tornaram uma micromáquina de repressão, alguém cobiça a mulher do vizinho, aí faz uma denúncia política contra o vizinho e consegue que ele seja preso, facilitando seu intento. Virou um lugar de fofoca e denúncia falsa. Igualmente, ao responder sobre o paredón, os fuzilamentos aleatórios, realmente vale o questionamento, pois Castro e Che lutaram não como comunistas, mas numa frente prometendo eleições e restauração da Constituição de 40. A Constituição não permitia pena de morte. Ao contrário do que disse Aleida, Che não estava cumprindo as leis, de fato, estava descumprindo suas promessas durante o período da guerra civil e, ademais, mostrando que Castro não repetiria o erro de Batista com ele, ao anistiá-lo e permitir-lhe fazer de seu julgamento um tribunal para que ele conseguisse seu intento com Moncada, que era projetar-se como uma figura de expressão nacional na oposição a Batista, coisa que ele não era em março de 1952. 
Sobre o documentário de Eduardo Moreira, Vai para Cuba, apresento três pontos: 1) Betto fala coisas como o governo dá cesta básica para cada família; o que é  mentira. 2) Não trata da monocultura de açúcar e seus problemas, nem do fato de que Cuba hoje importa oitenta por cento dos alimentos; 3) Diaz-Canel defende-se da acusação de neoliberal. Mas quem acusou? O próprio documentário fala em “socialismo” o tempo todo.
Críticas ao Filme Vai para Cuba, Eduardo
	<i>Críticas ao filme Vai para Cuba, Eduardo
	O filme é bom em termos técnicos, mas a presença de Frei Betto é comprometedora. No jogo sujo das eleições burguesas, é muito comprometedor alguém se apresentar como representante de Jesus Cristo na Terra.
 Ele mente que o governo dá uma cesta básica para todo cubano, a realidade é o exato oposto, há escassez e desabastecimento, enfim, há fome em Cuba. Os conceitos religiosos apenas complicam. Frei Betto deveria analisar a situação de Pedro Luis Boitel, estudante católico progressista que participou na revolução e que se opôs ao corporativismo fascista que Castro ao propor chapa única na Federação Estudantil Universitária, bem como acabar com a autonomia universitária, algo que nem o ditador Batista ousou fazer. Discurso por unidade não é marxismo. Boitel ficou preso de 1961 a 1971 e não foi solto, morreu em greve de fome. Beto precisava tocar nesse mártir do liberalismo católico. Para nós, é unidade na diversidade. Beto buscou tornar a igreja católica um braço do castrismo, buscou corporativizar a igreja, que é uma opositora até hoje do regime castrista.
	Outro ponto: a questão dos alimentos. Cuba não produz os alimentos que ela consome, importa oitenta por cento dos alimentos. Ali se promete que irá conseguir, etc e tal. Não se toca na monocultura do açúcar. Para romper a monocultura, é preciso uma revolução cultural tanto lá quanto aqui. Nem o Brasil consegue superar a monocultura para exportação para obter dólares. Cuba está, então, numa situação semelhante ao Brasil nesse ponto.
	E finalmente: no documentário Diaz-Canel rechaça quem o chama de neoliberal. Na realidade, ele preocupa-se em rebater essa acusação devido ao arrocho, o pacote ao estilo neoliberal que estão vivendo em Cuba. Mas quem chamou Diaz-Canel, o líder do “socialismo” cubano, de neoliberal? A quem Diaz-Canel responde?
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Vida e Morte da Revolução Cubana
Vida e Morte da Revolução Cubana
“Impressionou-me ver tantos símbolos revolucionários atirados ao chão e pisoteados (...), inclusive um retrato enorme de Che Guevara (...). Entre os símbolos vi, por um instante, o cadáver de meu pai e de seus companheiros, estavam todos ali, pisoteados e ensanguentados.” Jorge Ricardo Masseti, O Furor e o Delírio.
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
	No ano de 2016, traduzi um texto do Partido Comunista do Equador, de linha maoista, denunciando a bancarrota do revisionismo cubano. Desde então o que o artigo apresentava está mais e mais se realizando: sem conseguir fornecer água, luz elétrica, comida e outras condições mínimas às massas, o revisionismo cubano provocou um levante das massas em julho de 2021. O desafio é entender com o marxismo o processo histórico que fez com que chegassem a essa situação degradante de hoje sem simplesmente repetir o argumento de que tudo é culpa do embargo do imperialismo estadunidense –sem deixar de lado que a guerra econômica dos Estados Unidos é um elemento, sem dúvida. De todos os desdobramentos, um dos mais trágicos foi a morte de Che Guevara, ponto que focalizaremos aqui.
	A revolução cubana foi uma esperança. No entanto, ela foi uma revolução democrática incompleta. A revolução democrática implica em se desvincular de qualquer imperialismo e criar capitalismo autônomo e minifúndio. Nossa suposição é que houve a passagem de um caudilhismo a outro, sem transitar para socialismo e sim para um capitalismo selvagem pintado de vermelho. E de um imperialismo ao outro. Há avanços em termos de saúde e educação, pois em termos de América Latina, é um estado burguês mais evoluído: legalizou o aborto, por exemplo. No entanto, em termos mais gerais, ao analisar o processo podemos dizer que revolução democrática refluiu foi decapitada pelo grupo de Castro. E esse ponto vale a pena desenvolver aqui, pois em certa medida, o próprio Che possivelmente foi um alvo, conforme os indícios que obtivemos na revisão bibliográfica.
	Che Guevara nunca participou de partidos comunistas no decorrer de sua vida e deixou bem claro que recusava neles um ponto em especial: sua disciplina. O que é bastante curioso, pois o próprio Che assume ser autoritário, mas nunca indisciplinado. E isso em dois momentos: na Guatemala e no México. Carlos Franqui, jornalista que esteve em Sierra Maestra, encontrou-se com Che naquele período pré-revolução no México e viu que ele estava lendo Fundamentos do Leninismo, texto de Stálin em que ele sistematizou o marxismo-leninismo. E logo a seguir questionou Che a respeito do relatório Kruschev. Che teria respondido, então, que Kruschev estaria iludido pela propaganda do imperialismo norte-americano. Podemos dizer que Che era um aventureiro eclético e não um marxista propriamente.
	Como Che era eclético, ele ao mesmo tempo criticava trotskistas e adotava um pilar do pensamento trotskista, o antietapismo. Para isso, ele delimita que a revolução cubana já teria vencido a etapa nacional e democrática no período da guerra civil de 1952-59. Tanto no texto de Debray (Revolução na Revolução?) quanto na Tricontinental reaparece a concepção da “revolução socialista de um só golpe”, ou seja, “revolução socialista ou caricatura de revolução”. Podemos considerar que essa concepção foi compartilhada por Che e Castro.
	Esse ponto do antietapismo é importante, pois rompe a aliança operário-camponesa: os camponeses em geral se engajam na revolução sonhando com o minifúndio e não em trabalhar assalariado em fazendas estatais capitalistas, que foi o que ocorreu em Cuba.
	Sendo assim, Che pouco agregou do pensamento Mao Zedong, mesmo tendo visitado a China, mas há alguns pontos em que permaneceu compatível com a linha chinesa, como numa carta a Armando Hart (que chegou a ser ministro da educação em Cuba), quando montavam um programa de estudos de marxismo no pós-revolução cubana:
(...)Já está sendo feito, mas sem nenhuma ordem e faltam obras fundamentais de Marx. Aqui seria necessário publicar as obras completas de Marx e Engels, Lenin, Stalin [sublinhado por Che no original] e outros grandes marxistas. Ninguém leu nada de Rosa Luxemburgo, por exemplo, que tem erros em sua crítica a Marx (volume III), mas ela foi assassinada, e o instinto do imperialismo é superior ao nosso nesses aspectos. Também estão desaparecidos pensadores marxistas que mais tarde se desviaram do caminho, como Kautsky e Hilfering (não escrito assim) [Che está se referindo ao marxista austríaco Rudolf Hilferding], que fizeram contribuições, e muitos marxistas contemporâneos, não totalmente escolásticos.
VII). Aqui viriam os grandes revisionistas (se quiser, pode incluir Khrushchev), bem analisados, mais profundamente que ninguém, e deve estar seu amigo Trotsky, que existiu e escreveu, ao que parece. (32) (CHE, apud: KOHAN, 2025).
	Note-se, então, no texto acima, que Che mantinha uma posição totalmente compatível ao maoismo: Trotsky e Kruschev são grandes revisionistas e Stálin foi um marxista-leninista.
	Infelizmente, o antietapismo de Che parece ser um elemento que compromete seu pensamento com o trotskismo de forma grave. Em linhas gerais, podemos dizer que Che apostou tudo num revisionismo armado e, contava com isso com a linha soviética, embora tivesse essas críticas. Che Guevara, embora nunca atacasse diretamente a linha chinesa e até tivesse tentado fazer contato com essa linha em sua aventura africana, foi conivente como os absurdos que faziam Castro e Debray a respeito. Um exemplo é terem trazido Debray a Cuba depois que ele escreveu o artigo “Castrismo, a Longa Marcha da América Latina”. Ou seja: além de não concordar, as ideias de Che, Castro e Debray abertamente sobrepunham as de Mao na América Latina. A vinda de Debray consagrou esse objetivo.
Esse antietapismo juntou-se a outros fatores em Cuba e produziu uma guerrilha liberal na região de Escambray que durou de 1961 a 1966. Carlos Franqui ressaltou que o governador do PC degenerado, Felix Torres, reinstalou o regime do pagamento em trabalho (estilo corvéia ou cambão, de pagamento em trabalho não remunerado), odiado pelos camponeses, bem como criou um harém de garotas camponesas, outro elemento presente nos abusos dos senhores feudais: o uso e abuso do corpo das mulheres dos camponeses, presente no chamado direito de pernada, direito que o senhor feudal se arrogava de deitar na primeira noite de núpcias com a esposa do camponês. Um aprendizado muito importante é que o governador revisionista do PC cubano de linha soviética simplesmente recolocou esses elementos feudais e causou uma revolta camponesa armada de vários anos –o que confirmou, a nosso ver, as consequências do revisionismo e do antietapismo. Inclusive é bem importante ressaltar que o desembarque da Baía dos Porcos era em grande parte dos liberais traídos pelo castrismo e não dos homens de Batista. Esse desembarque aconteceu para ajudar a guerrilha em Escambray e foi derrotado. Ou seja, Che, se queria lutar, poderia ter permanecido em Cuba e lutando em Escambray contra uma guerrilha anticastrista.
	Em carta durante a guerrilha em Sierra Maestra, Che observou com argúcia que Castro não buscava as soluções no mundo socialista como pensava Che. Alimentava, ainda, ilusões a respeito do mundo liberal e ocidental e era um burguês de esquerda e não um socialista. Diante disso, Che avaliou que se o processo se virasse para a direita ele partiria para novas aventuras. E assim foi e por isso ele partiu em 65. Mas precisamos detalhar esse processo.
	Primeiro, Che já pensava o que apontei; Castro como um burguês de esquerda e o risco do movimento cubano virar à direita (e isso ocorreu). Uma vez como ministro da economia, Che se opôs a Rafael Rodriguez (ex-ministro de Batista e figura de proa do PC revisionista, intitulado Partido Socialista Popular) proposta vinda da União Soviética, que propunha empresas autônomas sem planejamento central. Com o passar do tempo, na União Soviética, esse modelo destruiu o socialismo, instalou capitalismo de estado e daí evoluiu para um capitalismo clássico entre 1989/91. Em Cuba parecem estar num processo semelhante. Che propôs planejamento central ao estilo dos anos 30 e terminou derrotado.
	Como ministro da economia, Che anotou em seus diários, somente editados apenas recentemente nos anos 2000, que o Comecon era um “balaio de gatos”, não tinha um ideal que somente poderia se estabelecer pela verdadeira prática do internacionalismo proletário, mas este, lamentavelmente, “está ausente hoje em dia”. Ao analisar a realidade em um cargo privilegiado em informações, fatos e dados, Che chegou quase que às mesmas conclusões dos comunistas de linha chinesa. Na prática, Che verificou o social-imperialismo soviético, só não o chamou desse nome. Verificou “fenômenos de expansionismo, de troca desigual, de concorrência, até certo ponto de exploração e certamente de submissão dos Estados fracos aos fortes”. De constatação privada, Che levou um fragmento dessa reflexão a Argel, onde afirmou que os países socialistas estavam agindo de forma cúmplice com os imperialistas na exploração do terceiro mundo. A fala causou conflito com a linha cubana, mais e mais servil ao social-imperialismo soviético. Logo a seguir, já lutando no Congo, Che escutou pelo rádio, ao lado de Benigno, a famosa carta onde ele abre mão dos cargos. Benigno contou que Che ficou irritado, pois a carta era para ser lida somente se depois que ele morresse em combate. E que teria dito: “até onde [Fidel Castro] é capaz de chegar em nome do culto da [sua própria] personalidade”. Se sem ele morrer foi lida essa carta, a ideia era anunciar a ele, se estivesse vivo, que não deveria fazer críticas como as de Argel e nem retornar a Havana, era demonstrar que ele estava sendo abandonado pelo regime cubano em prol de centralizar a liderança somente em Fidel Castro com decapitação dos demais líderes de seu movimento.
	Daniel Alarcón Benigno, militar cubano que participou da revolução cubana, escreveu a respeito de seu convívio com Che. Daniel, rompido com o castrismo desde o fuzilamento do general Ochoa em 1989, alegou em seu livro Vida e Morte da Revolução Cubana que Che e seu grupo foram abandonados para morrer na Bolívia. A respeito disso, Benigno alegou que, em circunstâncias igualmente dramáticas, na selva da Venezuela, conseguiu contornar a situação com base no apoio de Havana:
Bem, eu digo que Castro nos abandonou nas selvas bolivianas. Existem muitos fatores. Primeiro, sei perfeitamente tudo o que [os cubanos teriam] sido capazes de fazer para tirar alguém de qualquer lugar. O caso de Arnaldo Ochoa (revolucionário cubano) é um exemplo. Quando Arnaldo Ochoa foi à Venezuela lutar ao lado de Douglas Bravo (revolucionário venezuelano), mas as relações entre o movimento venezuelano e o Partido Comunista Cubano se romperam, Arnaldo Ochoa teve que fugir atravessando as selvas brasileiras e Cuba parecia interessada em saber tudo o que aconteceu na Venezuela, fez tudo e se esforçou para ajudar não só Arnaldo Ochoa, mas também seu grupo, a sair pelas selvas brasileiras. E isso foi muito próximo da época.  Especificamente naquela época em que Che Guevara estava na Bolívia. E ele abandonou Che Guevara e nos abandonou (BENIGNO, 2024).
	Para nós brasileiros a citação acima é incrível, pois no período em questão, fugir atravessando as selvas brasileiros deve ter sido fugir através de Roraima e Amazonas, estados próximos da Venezuela, para algum ponto do Brasil de onde foi possível que um grupo guerrilheiro tivesse voltado a Cuba sem que ninguém descobrisse, o que não deixa de ser um feito incrível.
 Essa acima é a posição de Daniel Benigno e ele a reforça com outras observações: em Bolívia ele receberam uma emissão de rádio vinda de Havana, pois tinham um rádio comunicador, mas totalmente confusa e sem sentido. Na Bolívia, os contatos que Guevara esperava não existiam. Nem sequer a língua dos povos originários da região escolhida tinha sido informada e estudada corretamente: os nativos de Nancahuazu falavam tupi-guarani e não quéchua, língua que Che e os outros estudaram. Mario Monje, líder do PC boliviana, viajava à Bulgária, mas não tinha sido informado por Havana do porquê da vinda de Che (“para quê veio”, pergunta Monje ao vê-lo, conforme o Diário de Che na Bolívia).
Conclusões
	Che foi um aventureiro eclético e não um marxista; seu pensamento, embora tenha valor, foi comprometido seriamente por incorporar o antietapismo trotskista, pensamento que teve como consequência, em Cuba, facilitar uma guerrilha civil de direita. Castro conduziu o processo a um retrocesso, a um cóagulo histórico. De uma revolução democrática embrionária, regressou-se a um capitalismo de estado burocrático pintado de vermelho, organizado politicamente como um caudilhismo. Castro era um burguês de esquerda e sempre foi, embora tenha adotado tintas de revisionismo kruschevista, linguagem marxista-leninista. Che teve intuições do processo de transformação do socialismo em social-imperialismo, mas não se aprofundou em suas análises; igualmente, em carta considerava Stalin marxista-leninista e Kruschev e Trotsky revisionistas, ou seja, tem pontos compatíveis como o que hoje chamamos maoismo, mas são pontos isolados, no todo seu pensamento se liga ao revisionismo armado e ao trotskismo antietapista. O processo virou para a direita mais claramente depois da saída de Che, pois representou também a derrota de sua linha crítica. Che possivelmente foi abandonado por Castro na Bolívia, abandono esse que foi prefigurado pela leitura da carta demitindo-se dos cargos, carga essa que só seria lida após sua morte e significou seu abandono simbólico pelo regime cubano já no período da aventura africana.
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