Mas todo este fulgor esmaece e se apaga. /Tímido, o olhar do sol bóia de vaga em vaga, /Porque uma sombra investe a sua concha enorme./É a noite: como um polvo, insidiosa, se eleva./ Desenrola os seus mil tentáculos de treva: /E o sol, vendo-a crescer, fecha as valvas e dorme.
Ocaso no Mar, Arthur Gonçalves de Sales
O novo disco de Caetano Veloso, Cê (Universal), contêm no título uma apócope. É a linha evolutiva do “vossa mercê” de Machado de Assis, tornado “você” no tempo de Oswald de Andrade, evoluindo para o “ocê” do dialeto caipira e agora o “cê” de Caetano e do nosso cotidiano. Um strip-tease fonético. O disco, assim como o pronome, nos deixa numa inquietação em que podemos perguntar: o que virá depois?
Caetano contou, num especial de 93, a propósito de seus cinqüenta anos (na rede Manchete) que viu uma grande vitalidade no programa de Roberto Carlos e na Jovem Guarda em geral. Suponho que agora Caetano busca no rock um elixir da juventude. A canção “Rocks”, do novo disco, proclamou que foi uma personagem feminina que, tatuada e usando botox, exigiu os tais rocks letais e totais.O eu-lírico deslocou, portanto, o desejo de fazer rock como vindo de um Outro.
Caetano Veloso disse a João Gordo na cadeira de entrevistado no Gordo A Go-Go, da MTV que, se ele não tivesse feito a tropicália, não existira o Sepultura. Essa banda de trash metal virou, no imaginário de Caetano, um fetiche do gosto jovem (inacessível aos pais). No entanto, Dick Farney já fazia músicas em inglês nos anos 50. A indústria é muito forte. De uma forma ou de outra, o rock viria a partir da política das multinacionais de divulgar por todo o mundo a música do país onde está a matriz ou uma música mais próxima daquela produzida na matriz. Vale a ressalva que, se não ficaríamos sem Sepultura, com certeza sem a tropicália a banda não teria a grande aceitação que obteve no início dos anos 90.
Há algum tempo, Caetano inverteu aquele canto da musa presente em Tigresa e Você é Linda e, no disco Livro, a canção que exorcizou a figura feminina foi dedicada à imprensa: “vagaba, vampira...” Em Cê, o refrão também reage com inimizade à sua musa: “Cê foi mó rata comigo”. É uma queixa aguda. Ora, como dizia Nietzsche, somos ratos e seremos super-homens. Musicalmente, o som desse disco reproduz o que há de mais característico no rock: o grito, a estridência das guitarras elétricas, as letras cruas, o sexo: “feliz e mau como um pau duro”. O disco oscilou entre a exaltação sexual e a melancolia, que seria o anti-romance existente no rock. Caetas afastou-se da postura de Glauber na Veja de 1977, para quem ele e Gil eram os anti-Beatles, anti-Rolling Stones. Caê agora é pró-Nirvana, pró-Pixies. Os rapazes da banda provavelmente ficariam orgulhosos se alguém dissesse que fazem uma variante cabocla e complexa do grunge ou do britpop.
A base estética de Caetano, no entanto, é a bossa nova. Cê, disco do cantor baiano, está chamando a atenção por suscitar discussões sempre com um único tom: isso é rock? Agora Caetano se reinventou como roqueiro, mas sempre dá sinais, nas entrevistas, que pode “trair”, fazer discos com boleros e sambas novamente. Numa entrevista recente, lembrou-nos que, quando estava no exílio em Londres, veio ao Brasil para um show e decepcionou bastante a platéia ao tocar Adeus, Batucada: eles estavam esperando Led Zeppelin. Isso pode, portanto, acontecer de novo.
Quem sabe, nessa nova reencarnação rock de Caetano, ele possa, paradoxalmente, esclarecer que a verdadeira crítica da MPB e da esquerda estudantil a Caetano era o apoio à Jovem Guarda e não contra as “guitarras elétricas” em si, o que seria uma revolta reacionária contra a tecnologia. Sérgio Ricardo, em seu livro Quem Quebrou meu Violão, afirmou que tocou guitarra em seu programa na TV Globo nos anos 70, justamente para provar que o problema não era o instrumento em si. A oposição desencadeada era basicamente contra a onda de versões de rocks estrangeiros que tomava conta das rádios, repletas muitas vezes de vozes infantilóides e letras pobres que não faziam jus a seus equivalentes internacionais. Satisfaction, dos Stones, ganhou uma versão cujo refrão dizia: “não tem jeito, sou direito!”, por exemplo. Yellow River virava “e ela é horrível”, com a maior facilidade. Quando Caetano, bossa-novista formado, passou a se apresentar com uma banda de iê-iê-iê, pareceu a muita gente uma traição ao universo emepebista do qual ele saíra. E sua atitude foi um golpe também para a Jovem Guarda. Ronnie Von fez em 1968 um disco tropicalista, com o grupo de músicos eruditos que fizera os arranjos de Panem et Circensis, do grupo tropicalista, com certeza para não se sentir superado, mas o disco foi um fracasso retumbante. Aliás, Roberto Carlos foi rock algum tempo, mas logo voltou às origens, com os bolerões e guarânias dos anos 70. Velha Guarda.
Hoje os maiores inimigos de Caetano não são os nacionalistas de esquerda, os quais ele se orgulha de ter derrotado. Tanto que Verdade Tropical falou insistentemente neles, esquecendo de fazer qualquer referência à AIDS ou ao PT, por exemplo. São neoliberais à la Paulo Francis, partidários de uma total “americanização” do Brasil. Na internet eles são legião: Diogo Mainardi, Bruno Garschagen, Olavo de Carvalho, entre outros.
E por falar em golpe, o de 64 foi um “preparador de clima” muito importante para o tropicalismo. Sem o clima de angústia, medo e busca de rumos, o “movimento” tropicalista não teria tanta repercussão; um movimento que buscava conciliar rock e MPB, num outro contexto, talvez se apresentasse bem mais conciliador. Raramente Caetano parece perceber que foi preso em 1969 porque ocorreu o golpe de 64. As parcerias e letristas fizeram falta a Caetano, que soube se cercar de músicos jovens, mas não de jovens poetas e letristas. Ele poderia musicar poemas de Eucanaã Ferraz ou mesmo chamar o excelente Marcelo Camelo, ex-Los Hermanos, para compor junto a eles. Outra sugestão seria regravar canções como É Um Tempo de Guerra, fazendo uma homenagem (já que se homenageou justamente Waly e Raul) a Gianfrancesco Guarnieri. A canção brechtiana, embora não seja rock, foi incluída no filme cinema-novista O Desafio e tinha uma batida pesada e uma letra agressiva, bem precursora do tropicalismo: “É um tempo de guerra, é um tempo sem sol”. Assim como nosso tempo.
Curiosamente, o disco coletivo do qual Raul Seixas participou em 1971, Sociedade da Grã Ordem Kavernista, nunca foi valorizado pelo grupo tropicalista. Caetano, ao tornar-se mais roqueiro, fica menos Glauber Rocha e João Gilberto para se tornar Raul Seixas. Compartilha com Raul um certo pseudo-revolucionarismo tal como definido por Lukács a respeito de Nietzsche: é alguém que contestou o sistema capitalista com os valores do capitalismo (competição, livre iniciativa, etc.), não porque quisesse um sistema socialista e sim um capitalismo desenvolvido. Nietzsche não é só isso (nem Caetano e Raul), seu romantismo o leva a ser anti-burguês, mas essa é uma explicação interessante para a extinção dos hippies, do esfriamento da “revolução pop” e para que possamos entender determinadas posturas dos músicos brasileiros.
Caetano colocou-se como interlocutor do rock and roll como Raul Seixas, a quem “homenageou” na canção Rock and Raul. Inclusive, nessa canção ele caricaturou o que Raul tinha de pior: as drogas, a rejeição da cultura regional (Oxóssis e não sei o quê...), uma suposta vontade de ser norte-americano. Deixou de lado a face positiva de Raul Seixas: sua tendência ao surrealismo, sua contestação risonha e mística, seu saudável anarquismo.
Ao contrário da tradição brasileira, na qual dialoga com Orestes Barbosa, Assis Valente e Ary Barroso, Mr. Veloso dialoga não com os gospels, spirituals, contry and westerns e blues das raízes. Caetano se aproxima do rock de Nirvana e Pixies: é preciso, para conhecer essa tradição, retornar a Leadbelly, Hank Williams, Woody Guthrie, para conhecer bem essa tradição musical estrangeira e melhor devorá-la.
A canção Aluga-se o Brasil, de Raul Seixas, surpreende ainda hoje, pois anunciou o neoliberalismo com dez anos de antecedência. Raul a cantava como um profeta à la Antônio Conselheiro e anunciava: “a solução para o nosso povo eu vou dar...” Era algo assim como um udenista de cabelos compridos, uma espécie de Carlos Lacerda anarquista. Os Titãs retomaram a canção, provavelmente pensando em seu potencial sarcástico em relação à atualidade, com o Brasil todo “hipotecado ao imperialismo estrangeiro”, como dizia Oswald de Andrade em O Rei da Vela.
Se entendesse a fundo de rock desde 66, Caetano poderia ter usado, como banda de apoio em Alegria e Alegria, Raulzito e os Panteras e não os obscuros Beat Boys, músicos que, sintomaticamente, só faziam covers. A banda que acompanhou Caetano em Cê foi a seguinte: Pedro Sá na guitarra e produção musical junto de Moreno Veloso, Ricardo Dias Gomes no baixo e piano Rhodes, Marcelo Callado na bateria, em uma espécie de diálogo com o cenário musical vigorante nos tempos de hoje. Caetano através desses jovens músicos lança mão de novas tecnologias e possibilidades sonoras: assimilação e apropriação da contemporaneidade. Quis tornar-se "apenas mais um membro da galera".
Caetano atualmente está voltado para ouvir o grunge, entoando o rock dançante Odeio Você, com um ódio insistente, descentrado, sem alvo, será o reverso de Eu Te Amo de Chico Buarque? Caetano cantando rock é um pouco como Elvis na fase final da vida resolvesse cantar George Gershwin e Cole Porter, ou seja, é alguém adentrando uma outra tradição musical e cortejando um público roqueiro na faixa dos vinte e trinta anos, quem sabe para evitar a situação atual de Roberto Carlos, que em boa parte envelheceu com seu público sem ter o mesmo prestígio diante das novas gerações.
A canção Minhas Lágrimas foi a melancólica visão de Los Angeles, com o pensamento no terremoto possível e no onze de setembro. O tapete cor de poeira é parente da mala que fedia e cheirava mal em O Dia em Que Eu Vim-me Embora, de 1967. Já a canção Porquê, que encenou um orgasmo lusitano, parece ser uma canção-piada, assim como Oswald de Andrade fazia poemas-piada.
O reverso do homem cordial é o antropófago. O conceito de homem cordial ou “homem bom” foi tomado por Sérgio Buarque do debate entre os antropofágicos e verde-amarelistas. Contra a radicalidade da antropofagia, os verde-amarelistas propuseram a “devoração cordial”. A cordialidade seria o fundo afetivo do comportamento brasileiro. Profundamente movidas pelos afetos e desafetos, as opiniões do Caetano maduro são descompensadas: “Osama Bin Laden é lindo”, “Fagner é uma besta”. Recentemente, Fagner deu uma entrevista, atacou Caetano e disse também que o ama. Caetano retrucou, numa entrevista para o Fantástico: “Nós somos cordiais, né?” O homem cordial aprendeu a manifestar-se contraditoriamente como Caetano e atacar Caetano.
Essas mudanças bruscas de identidade não são visíveis no disco, exceto em O Herói. Nessa canção, um negro narra, num rap de conteúdo anti-rap, sua trajetória, do black power imitado dos EUA ao homem cordial que faz apologia do desenho da democracia racial brasileira. Depois do medo e da esperança, ou seja, depois da vitória do sistema de babilônia e do garçom de costeleta, o “herói” se redescobre como o homem cordial, numa transformação pouco explicada em um tipo que antes antagonizara. A letra O Herói oscilou entre duas posições extremas: o radical black power que renegou o Brasil o e o mestiço conservador, conformado em não lutar contra o racismo para não quebrar a tão propalada “democracia racial”. A menção ao governo Lula talvez remeta à trajetória de Gilberto Gil, que assumiu cargo público para fazer, no Ministério da Cultura, do-in antropológico em partes sensíveis da cultura brasileira. No governo do mesmo Lula que, quando surgiu em 1978, respondeu contraditoriamente a respeito de Gil & Caê para a Playboy: "Ah, eu não gosto, não. Não é o tipo de música que me agrada. Mas acho que a música que eles fazem ajudou a modificar alguma coisa. Mexe muito com o pessoal mais jovem. Só que eu não perco tempo ouvindo...Mas eles têm algumas músicas maravilhosas."Se alguns vêem Gil, por ser músico e funcionário público, como mariandradino, “le petit lion” Caetano pode ser melhor aproximado não a Oswald, mas a um Augusto Frederico Schmidt mais talentoso e alegórico: alguém que era ao mesmo tempo poeta, rico empresário, ex-integralista e amigo do presidente Juscelino Kubitscheck. Quem ouviu e estudou Sergeant Pepper´s em 1967 precisa agora meditar sobre o disco-paródia de Frank Zappa: “We´ re only on it for the money”.
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