sexta-feira, 14 de março de 2008

A Elite da Tropa sob o Signo da Perversão: Tropa de Elite


Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior[1]

Lúcio Emílio do Espírito Santo[2]

Tendo em vista as inúmeras análises correntes sobre o filme Tropa de Elite, baseado em um “romance-reportagem” de Luís Eduardo Soares e dois ex-capitães do BOPE carioca (o livro Elite da Tropa), pensamos ser necessário desmistificar e problematizar alguns pontos desse debate, enfim, colocá-lo em outros termos mais apropriados do que aqueles que estamos testemunhando, principalmente no momento em que o filme está representando o Brasil em inúmeros festivais de cinema no exterior.

Em primeiro lugar, vale responder a uma questão: o filme traz ou não o olhar do policial? Ora, ainda que seja o olhar do policial, mesmo assim não é de forma alguma um olhar policiológico. Afinal, se forem calcados em fatos reais, tanto o livro quanto o filme são uma extensa confissão e encenação de crimes. Ora, um policial que se preza não pode aceitar crimes sem denúncia e investigação. Uma polícia que não faz valer a lei é uma instituição minada em suas bases. Será que alguém está investigando os crimes ali anunciados? E se os acontecimentos graves ali relatados e registrados não passarem de representações sem referência, uma mera “sociologia da bravata”, “casca de general” agenciada em busca do brilhareco superficial da mídia?

Mas passemos a olhar o filme como um produto cuja origem foi apagada, assim como os depoimentos de policiais que ele citou de início. Analisemos Tropa de Elite enquanto obra de arte sem referência. Em primeiro, temos alguém que se apresenta, em falas em off didáticas, como um ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais que está cansado da guerra contra o tráfico. Mais adiante, apareceram inserções narrativas em inglês, incluindo uma que se refere ao BOPE como “SWAT” (special weapons and tatics, sigla da tropa de elite norte-americana que inspirou uma série de TV). Essas inserções são de um narrador onisciente, que sabe inglês e que não é, provavelmente, o Capitão Nascimento. No final do filme, existe também uma fala muito ambígua, à guisa de conclusão, deixando claro que, na realidade do Brasil de hoje em dia, não se sabe mais quem é polícia nem bandido. Ora, esse ato de fala conclusivo não pode ser atribuído ao Capitão Nascimento, pois o personagem construiu-se com base no horror letal a bandidos.

No entanto, ao assistirmos ao filme uma outra vez, vemos que essa fala final está salpicada aqui e ali, em vários pontos do filme. Ela significa que a polícia está pervertida e igualando-se aos bandidos; ela confirma, indiretamente, a fala do professor na faculdade de Direito: existem instituições sociais perversas, entre as quais a polícia. Em vários pontos de Tropa de Elite podemos encontrar perversões do discurso de esquerda: os “soldados armados de armas na mão”, aos quais Nascimento referiu-se utilizando verbos no passado, pervertem a famosa canção de Geraldo Vandré (“Para não Dizer Que Não Falei das Flores”); o discurso contra o “sistema” foi usado contra a polícia, mas apenas para concluir, num raciocínio circular, que o “sistema quer resolver os problemas do sistema, não os problemas da sociedade”; o jovem universitário que vende maconha e faz passeatas pela paz é adjetivado de “burguês” e “rico com consciência social”; em meio a imprecações, um criminoso foi associado com “clínica de aborto”, mas para defender o Papa pode-se praticar à larga a pena de morte na favela; o “policial digno”, sabendo que o que faz nada tem a ver com o curso de Direito, teme assumir responsabilidades: gritou que quem mata os jovens favelados envolvidos no tráfico é o usuário, não o membro do BOPE.

O filme de Padilha, num jogo narrativo ambivalente e traiçoeiro, negou também o Cinema Novo, o cinema do tempo de Geraldo Vandré, com o qual não estabeleceu nenhuma relação: numa espécie de substituição de importações, foi realizado com base no cinema de ação norte-americano. Tropa de Elite, em linhas gerais, pode ser definido como um bangue-bangue (com trilha sonora de rock e rap) onde matam-se favelados como num filme de John Wayne se matavam índios. E não podemos resumir o filme a uma interpretação de signos visuais e verbais: a trilha sonora conflita com o núcleo regressivo e moralista do filme e afirma, indiretamente, a presença do sexo, droga, e rock and roll, tríade firmemente enraizada na cultura pop.

No final, um filme que supostamente traria o “olhar do policial” confirmou um triste e caricato estereótipo de policial; policial esse que, numa aula sobre Vigiar e Punir (texto que faz parte dos cursos e bibliografias básicas nas Academias de Polícia), demonstrou ignorar o papel educativo e preventivo da polícia, além não ter conseguido articular, diante do referido texto de Foucault, senão um frágil argumento de “honestidade”. Esse termo, em Tropa de Elite, possui somente um significado: “honesto” é aquele que não aceita o suborno dos bandidos e faz o seu trabalho, que é o combate violento na favela. Quem é honesto pode ditar sua própria lei, como um tirano, ditador, Deus.

Capitão Nascimento, louvado por adolescentes em sites do Orkut como um novo herói brasileiro, não é um forte, uma vez que não é um espírito livre e pensante. Nascimento apenas reproduz, em cursos coisificantes, o movimento no sentido de tornar-se mero braço armado de um organismo maior, ligado ao estado. Estado que tem, por um lado, esses interventores armados para fazer valer suas proibições contra os pobres, apesar de possuir, aparelhada, uma administração que se diz “de esquerda”. No entanto, pouco pode o estado contra as forças da livre iniciativa: o exército de reserva, cuja mão de obra pouco valor possui, descobriu no tráfico uma forma de sair de sua irrelevância de séculos de senzala. Agora, a favela pode abastecer seu consumidor e possui, finalmente, um peso social, ainda que, por ora, negativo.

No final, esse “Charles Bronson brasileiro” revelou algo de importante para nós, nessa transposição do justiceiro dos guetos norte-americanos para as favelas brasileiras: a alienação em relação ao País em que vivem certos “guerreiros que acreditam no Brasil”. Em Tropa de Elite, a única verdadeira metáfora do Brasil – infelizmente referencial -- são os barracos em ruínas de uma favela conflagrada.



[1] Doutorando em Estudos Literários (UNICAMP).

[2] Coronel reformado (PMMG). Especialista em Ciências Sociais (PUC/MG).

Nenhum comentário: