quarta-feira, 28 de julho de 2010

Marcelo conversa com Wilson Nanini

MN: Wilson, o "poeta ainda não de todo tocado de espelho e idioma", tateando a imagem-voz poética, ensaia domar tempestades. Diante da tangibilidade do mal no mundo, explique-me como e quando a poesia pode ser exorcismo ou esconjuro. exorciza-se só o mal de dentro e a dor causada por catástrofes, ou a poesia pode roçar o coração do outro? O mal lá quer saber de poesia?



WN: Rsrs! Realmente o mal não quer saber de poesia. Mas a provoca, a intima à sobrevivência, ainda que espremida entre uma rotina aterradora e alentos cada vez mais ineficientes. A meu ver, estamos respondendo mal à quebra das instituições sociais, à constatação da falência de alicerces, antes imprescindíveis, e à tentativa frustrada de restaurar a espiritualidade religiosa dada à bancarrota, já há algum tempo. E diante desses impasses, o poeta, assim como os demais artistas, assume uma obrigação – quase social – pois testa em si ferramentas de transcendência, um caminho novo que perpasse ciladas, que perfure cegueiras, que dissolva obstáculos. Poesia me é a possibilidade de tirar o mérito do caos. Como policial militar, tento impedir intempéries. Mas como poeta, tento interagir com eles, em pé de igualdade. São a matéria-prima de minha poesia. Sem querer ser presunçoso, o poema é um ato de solidariedade: só existe porque o poeta quer pôr no mundo o antídoto, a vacina que destilou dentro de si, de que foi a cobaia.



MN: Às vezes a poesia te traz a alegria de uma mulher procurando a sombrinha cor de rosa pela casa [e achando, suponho!]. Esse vislumbre é bem interessante, porque quebra, mais-que-um-tanto, essa costumeira presunção de se imaginar que o poeta toca com regularidade a "Epifania" [sic]. Fale-me dessas pequenas alegrias de encontrar gesto-palavra, de percorre caminhos-de-palavras, de ser "quase", e estar em paz com isso.



WN: Poemas que falam do cotidiano são uma constância inevitável e muito apetecível para mim, cuja poesia tenta se dissociar de um discurso literário rebuscado – e, por vezes, vazio – e da visão caolha de que o poeta é o porta-voz do enlevo. O rumor de um avião captado em meio à insônia, a mulher correndo ao varal para salvar peças-íntimas da chuva, abraços recebidos da avó, minha esposa procurando sua sombrinha cor de rosa (rsrs), e tantos outros sinais de superfície simples, mas de cerne riquíssimo, com que o mundo me acena, depois de deflagrados, passam a habitar, em mim, num lugar entre pele e alma e, além de me fornecerem um bom material poético, são uma via para transitar em segurança pela vida.




MN: O poeta [ou prosador] morto é a alegria [e o sonho] dos Editores. Vide 2666, de Roberto Bolaño. Veremos um "auê" ainda maior com Saramago. Fernando Pessoa publicou UM livro em língua portuguesa, em vida. Os demais, em inglês. Hoje, há "conclaves intermináveis" para se estudar sua Obra. O poeta está fadado a ser póstumo? Por que? E complementando: o que significa ser um "poeta inédito" para o [por enquanto] vivíssimo Wilson Nanini?



WN: Guimarães Rosa dizia que escrever é um ato de empáfia, enquanto publicar requer humildade. Parece oportuno que as editoras ornem a morte alheia para vender alguns exemplares a mais. É até compreensível, pois os sentimentos que brotam com a morte de um querido Saramago requerem ser apaziguados com uma (re)visitação profunda à sua obra. Eu mesmo, desde que recebi a notícia de sua morte, tenho relido seus livros e é certo que se alguma editora lançar uma obra inédita póstuma, eu voarei em cima dela com o fervor do leitor fanático. Creio que no caso de Fernando Pessoa, e de outros gigantes, como Rimbaud e Van Gogh, por exemplo, as circunstâncias vitais foram maiores do que uma premissa da maldição artística.

Estou vivo e vivo quero estar. Publicado ou não. Basta-me interagir e melhorar a interação, que aprofunda o (auto)conhecimento. Embora, suspeite que seja insuperável o prazer do livro impresso, com todas as suas possibilidades estéticas, capa, distribuição do texto, etc.

Ainda não tenho nada impresso e, portanto, me considero inédito. Sinto-me ainda em “fase de berçário”, bastante devedor às poéticas e às demais obras de arte que me impeliram até aqui.




MN: Estando longe das grandes metrópoles, como você enxerga "o movimento que há por estas plagas"? [Não se esqueça que eu te entrevisto de São Paulo, cidade babélica]. O poeta [matéria escassa?, perguntaria você...] concilia, na alma, "pedra e vidro", silêncio e petardo? Há algum glamour na balbúrdia metropolitana vista de longe [claro, com a "efervescência cultural" aparecendo, aqui e ali, como corolário ou sub-produto], ou só susto?



WN: As maiores vantagens de uma São Paulo são as possibilidades de exposição do já feito e do contato in loco com seus pares criadores. Moro em uma cidadezinha (Botelhos/MG), cuja população urbana e rural não soma dezesseis mil habitantes. Jamais participei de um sarau, de uma mesa de discussão, de um varal poético. Mesmo as raríssimas pessoas ligadas à arte, em minha cidade, não tem o mesmo enfoque que almejo, não propiciando, portanto, nem mesmo uma produtiva conversa de bar. Minha conversa sobre literatura e artes se dão com minha esposa, sempre a primeira leitora e crítica de meus poemas. Se não fosse pelo advento da internet, creio que jamais teria estabelecido diálogos preciosos com poetas admiráveis, como Cláudio Daniel, Renato Mazzini, José Aloise Bahia e Micheliny Verunschk, por exemplo, cujos contatos foram tão fundamentais para meu aprendizado, quanto seus versos.



A efervescência cultural, com seus museus, teatros, oficinas literárias, me faz falta. Por outro lado, minha poesia se alimenta da sintaxe de riachos, falas feitas de uma mistura de arame farpado, roseiras e poentes, rezas de benzedeira, totens domésticos, gemidos de facas. Pois, um poeta é um poeta em qualquer âmbito: a noite o habita.



MN: Qual o lugar da Melancolia e do Quebranto na tua escrita [as vezes te vejo murmurar algo, como que farto de quebrantes e quebrantos!]? Que outros sentimentos te lapidam com ênfase [homem-escrita]? Qual o lugar do Asco na escrita? Que poema te arranca contemplar um corpo morto, tantas vezes arrancado-da-vida [a poética do assassinato]?



WN: Sou uma pessoa, até certo ponto, melancólica, nostálgica. Sou devedor da ancestralidade, da própria e da alheia. Detenho um gosto ao saudosismo, mas apenas pela alegria já vivida.



Como policial militar, lido com a morte alheia e com a possibilidade da própria morte, rotineiramente. Centenas de vezes estive à frente de pessoas com arame farpado e sangue nos olhos. Inclusive um considerável número de meus poemas foi esboçado de manhã, após noites de intensa labuta no meu ofício profissional. O repúdio ao distúrbio está disseminado em quase todos os meus poemas. Mas nunca fiz algo específico, como faria um Poe, um Baudelaire ou um Augusto dos Anjos.




MN: Você faz declarações de amor não tão esporádicas, à sua esposa. Isso é bonito, na minha opinião. Declame e explique, aqui, o lugar do outro amor [amor de musa-poeta]: teu amor por Adélia Prado.



WN: Minha mulher não é apenas minha mulher: é uma parte minha que vive fora de mim. Não tomo nenhuma decisão sem consultá-la e vice-versa. Tem todas as características que sempre busquei em uma mulher e outras que nem pensava que existissem, antes de conhecê-la há mais de onze anos. Juntos, temos enfrentado a vida e vivido um amor, ao que minha poesia não poderia passar sem beber de suas águas.



Já a “musa” Adélia, com quem ainda não tive a honra de travar um diálogo, inaugurou, há muito, minha paixão preponderante pela poesia criada por poetas mulheres. Talvez seja coincidência, mas Adélia Prado, Orides Fontela e Micheliny Verunschk estão entre os cinco poetas que mais visito. Os outros dois são Ferreira Gullar e Carlos Drummond de Andrade. Este último, o descobri pouco antes do Bagagem de Adélia, e os cria, dentro de minha fauna cataclísmica, esposos em uma poesia cheia de versos e avessos. A mulher católica fervorosa tornou-se, para mim, um par perfeito para o comunista de Itabira. Venho de uma premissa familiar católica, já devidamente abandonada, e a poesia de Adélia, repleta de nudez e bíblia, teve em mim terreno propício para a eclosão de uma nova poética. O sagrado permeia vários poemas meus. E o tributo que tentei prestar à musa é como o retorno da alma a Deus: “num olor inato interno que mescla/bois borboletas/ deus: todos os artefatos álacres/de escavar cosméticos/entre distúrbios//que concretos ou telúricos/noitinvadem-me às vezes”.




MN: Teus poemas [não os "poemínimos"; mas, ás vezes, até estes!] possuem um "ritmo de procissão", aos meus olhos-ouvidos. Não importa que haja uma sanfona ao fundo, um coro de beatas ou ladainhas, que haja ou não andor, ou que seja uma procissão de insetos em direção a um cadáver. Eu gostaria que você me ajudasse a entender que [com]passo é este, e porque o ouço tanto, ao fundo dos teus poemas.





WN: Rsrs. Bem apreciado, Marcelo! Minha cidade me propicia ou já me propiciou verdadeiras delícias triviais, como folia de reis, banda de coreto, fanfarra, circo, procissão de santos, desfiles cívicos. Sanfonas, violas! Botelhos nem sei onde começa e onde termina em mim. Então, aconteceu-me uma poesia que é um circo em plena missa, uma missa em plena orgia, uma orgia em plena ciranda, uma ciranda em plena procissão. O que você pode ouvir ao fundo é um réquiem, é uma ladainha, é um gemido nupcial, murmúrios de benzedeira, rezas de beatas às três da manhã, cantigas de roda, estrondo de bumbo. Por vezes, tudo misturado. Comigo à frente ou sendo evolado.





MN: Quais as bênçãos que vêm de teus avós, e como elas afagam tua poesia?



WN: Minha poesia tem um gosto pelo ancestral recente, dentro do qual transito com enorme conforto, e onde minha poesia se serve abundantemente de todos os ritos insontes que só o amor maduro e gratuito pode propor. Meus avôs paternos, filhos de italianos, foram lavradores. Eles portam o afago e o afeto próprios de uma gente de translúcido âmago tão calejado quanto as palmas das mãos, cuja humildade rarefaz-se na sociedade contemporânea. Mas foi com meus avôs maternos – já mortos – que passei a maior porção da minha infância e adolescência, e tirei a maioria das lições de vida que me tem alicerçado. De meu avô, herdei a paixão pela vida e o ofício policial. E de minha avó, a devoção ao etéreo.



MN: O que acomete a pele acaso arranha a alma?



WN: Sim. E o contrário também é glorioso. Poesia é uma espécie de víscera que habita entre pele e alma. Se o corpo encontra-se em processo de fenecimento, a alma é pungida. Mas também, se acaso o ponto mais nevrálgico da delícia é atingido com os afagos mais solícitos, a alma chega a cantar. A alma nunca sai incólume aos anseios do corpo.





MN: O que leva Wilson Nanini a retirar um poema do próprio blog? Auto-crítica? "prazo de validade vencido"? Penso que alguns bons poemas não estejam mais lá. Talvez aqueles dos princípios...




WN: Meus poemas estão em constante transformação. Não sei se um dia os terei impressos em livro. Mas até lá, quando terão uma forma definitiva, não os poupo: os trato a poder de faca, a corte impassível. O blog é um modo fantástico de expor aos olhos alheios o avesso transformado em palavras. E, consequentemente, de aferir sua relevância, diante de observações muito, muito pertinentes. Alguns dos poemas (em especial os da primeira safra) que foram publicados em meu blog já tiveram toda sua estrutura modificada. Não acredito em uma obra dada pela vida. Minha poesia nasce da pedra bruta: há poemas que venho trabalhando há anos, e, não raras vezes, pouco após achá-los bem esculpidos, se percebo algum lapso, os despoemo, os dilacero rapidamente.



MN: Obrigado, Wilson.




WN: Obrigado! Forte abraço, Marcelo!





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Wilson Nanini










Marcelo Novaes

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