Uma carta inédita de Maura Lopes Cançado, publicada na tese de Maria Luisa Scaramello, UNICAMP, 2010.
Rio, 15 de agosto de 1974.
Quero antes de qualquer coisa, agradecer a V. Excia. pelo muito que me tem feito.
Sobretudo por me haverdes livrado da idéia infantil de que um Juiz não era exatamente um ser humano, mas qualquer coisa que se me escapava, algo acima de minha
compreensão, do meu alcance – e principalmente do meu afeto. Ao constatar vossa
humanidade, admiti também que, como ser humano eu vos podia amar. No sentido em
que os seres, verdadeiramente humanos, são amáveis. E V. Excia o sois, sei-o, e sinto-me muito feliz com isso porque assim não vos temo, quero-vos bem, muito bem – ainda vossa lembrança deixa-me comovida. Creio associá-lo ao “Grande Pai”, o Adam
Kadmon dos cabalistas, Aquêle que me pode dar minha própria e exata medida. Isto é
muito bonito. Sim, pois é ainda através de V. Excia. que novos caminhos se me abrem.
Descubro pessoas que me amam, têem-me como gente – e começo também a amá-las,
vendo-as e vendo-me, eu mesma, também assim. Isto é: gente. Ajudam-me a sair do meu
silencio e constatar o quanto estive perdida durante toda minha vida. Refiro-me
especialmente aos médicos da Biopsicologia, aos quais, recomendásteis-me [sic](...) Por mais paradoxal que vos possa parecer, tudo isto – quero dizer: o crime e suas
conseqüências – tornaram-me melhor. Aproximou-me de pessoas lindas (incluo quem
vos leva esta carta (...)), deu-me uma segurança que eu antes desconhecia. Não
imaginais V. Excia. o que significa para mim ouvir do Fernando: - Sua necessidade de
dar e receber foi e é tão grande, que você matou. Já que não podia conter durante mais tempo, dentro de você, tanto amor. Ele devia irromper-se de qualquer maneira. E o seu crime foi um gesto desesperado de amor, Maura. Então eu entendi. E admitindo a dor, parece também que comecei a admitir o amor. (...) Muito obrigada também por me haverdes apresentado o rosto de um Juiz que não saiu de um livro de Kafka. Obrigada porque sois gente. Tudo isso é deveras surpreendente. Eu esperava um Juiz terrível, um semi-deus, cruel em sua frieza. E vos associava a idéia de Deus que me foi imposta na infância. V. Excia. Aparecesteis-me. Julgáveis-me. Mas principalmente buscáveis entender-me. Eu que fui julgada cruel e injustamente durante toda minha vida, não sabia então como existir. As coisas sempre me vieram por caminhos imprevisíveis. Precisava dizer-vos tudo isto. Muito mais ainda. Não o faço para não cansar-vos. Falo-ei em meu livro. Peço-vos perdão por não conseguir manter-me reverente como geralmente se entende reverência. Perdoe-me dizer-vos o que sinto e ano pensais que vos adulo antes de fazer-vos um pedido. Não pode ser adulação porque é verdade. Sr. Juiz faça de conta que lhe escrevo outra carta. O tratamento Excelência limita-me, é-me insuportável, dispense-mo, lhe peço. Eu tentarei escrever como sei fazer porque assim sou mais eu. Há um curso de Tragédia e Comedia Gregas (envio-lhe o recorte). Eu amo a Grécia, sou apaixonada pelo teatro grego, tenho em casa as peças de Sófocles, Esquilo, Eurípedes e Aristófanes. Meus conhecimentos, adquiri-os sozinha, jamais tive alguém que me orientasse nesse sentido. Este curso me será útil em minha literatura e tudo mais. Ate
mesmo em minha vida cotidiana. O curso começa amanhã, sexta-feira, dia 16. É apenas
uma vez por semana, às sextas-feiras, de 14 às 16horas. Não creio que minha freqüência
a esse curso possa prejudicar o sistema disciplinar da casa, levando-se em conta que
algumas presas saem semanalmente e passam ate dois dias em casa. Uma delas tem seu
carro na porta da cadeia, dirige-o, inclusive viajando para outro Estado. É uma
infinidade de coisas verdadeiramente escandalosas – que prefiro não mencionar.
Segundo pedido: lá fora eu estudava línguas, interrompi ao ser presa. Queria continuar a estudar inglês e alemão (que me são demasiados necessários),os professores viriam aqui, duas vezes por semana. (...) Se o senhor não concordar com meus dois primeiros pedidos, atenda-me pelo menos um deles. (...)Escrever-lhe-ei outras cartas num livro. Já comecei, seu título é Cartas a um Juiz. Trata-se de um livro de contos, cada conto é uma carta dirigida a um Juiz. A propósito, tenho lutado para arranjar um local onde possa escrever aqui. Davam-me uma sela só para mim. Agora tiraram-ma. Meu filho está lutando para que ma dêem de novo. Mas isto é ainda secundário, não posso pedir-lhe mais. Não sou datilografa, escrevo às carreiras, a pessoa que deverá levar-lhe esta carta está esperando. Não posso passá-la a limpo, peço desculpas por estar bem escrita. Queira-me bem – é o meu pedido mais insistente. Maura Lopes Cançado (Processo
penal, fls. 157, 158 e 159).13
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