Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sábado, 17 de dezembro de 2011
Dias de Nietzsche em Turim
Dias de Nietzsche em Turim, esse sofisticado filme de Júlio Bressane (2001) não é um filme sobre Nietzsche. É um filme-Nietzsche em Turim em 1888, onde o diretor é um ouvinte-artista, lugar onde muitas vezes a câmera assume o lugar da subjetividade do filósofo e a obra assume sua estética, marcada principalmente pelas cores amarelo ocre e azul. Lento, contemplativo, filosófico, causa estranhamento naqueles que estão acostumados com tiros e perseguição californicadoras e orgias emocionais vulgares, mas de fina estampa. É para paladares aguçados, para poucos. O roteiro é da esposa de Bressane, Rosa Dias, professora de estética na UERJ.
Mais do que “sobre Nietzsche”, o filme se faz “com Nietzsche”, é sua filosofia que se sobrepõem à obra, que também assume ângulos inusitados, fragmenta a narrativa com paisagens da natureza, imagens de chafarizes que se tornam mulheres sensuais, estátuas homéricas que evocam sons do mar, curvas de colunas que lembram curvas sensuais de mulheres, chegando a filmar do teto, do chão e finalmente, inverte-se todo um plano para ilustrar a filosofia de Nietzsche, mestre em inverter perspectivas. Não é o conteúdo que ilustra a filosofia de Nietzsche nesse filme, é a linguagem cinematográfica, que busca um “cinietzsche”. No período de Turim, Nietzsche escreve Ditirambos de Dionísio, Crepúsculo dos Ídolos e Anticristo, sentindo-se, ademais, realizado em escrever essas obras.
Fernando Eiras é um Nietzsche em estado “outonal”, Mariana Ximenes é Julia Fino, Leandra Leal é Julia Fino, Tina Novelli é Cândida Fino, Paulo José é David Fino, todos componentes da família italiana que hospedava o professor alemão em sua pensão e que foi o seu contato humano naqueles últimos tempos. Foi também Cândida Fino, dona da pensão em Turim, quem observou Nietzsche dançando enlouquecido em seu quarto, com um cacho de uvas na mão e uma máscara de Dioniso. Pascoal Villaboin é o alfaiate que o filósofo encontra, a propósito de vestir-se com um terno que se ajuste bem a seu corpo. A propósito de fazer um terno sob medida, o alfaiate se espanta com o terno malfeito que Nietzsche estava trazendo, não acreditando que existissem tão maus alfaiates. Nietzsche, a propósito dessa passagem, emite sua famosa reflexão: “toda a filosofia ocidental é um mal entendido a respeito do corpo. O corpo é o pensador.”
O filme em si é também uma enorme inversão de perspectivas, que conforma a ironia dramática: de início, mostra Nietzsche feliz com o início de sua repercussão, (tradução de Zaratustra para o francês, cartas de Karl Nortz, Strindberg, palestras de George Brandes em Kopenhague), com a saúde melhorada pelo clima de Turim e da cidade de Nice (que associa com a deusa vitória e com seu próprio nome; a cena em Nice ficou de fora do filme, mas entrou no DVD). Após muitas imagens idílicas, a narrativa cria ao final uma forte reversão negativa de perspectivas com o “effondrement” (enlouquecimento) de Nietzsche.
Como a estética de Nietzsche é muito voltada para a música (para ele a música é a expressão da vontade pura; as coisas são música corporificada), o filme é harmonizado pelas músicas de Nietzsche ao piano, imagens e sua própria voz, uma voz quente e irônica, na verdade uma conversa com o espectador. As imagens/vozes são também complementadas com árias de Wagner (Liebestod), que abre os passeios de filósofo pela bela cidade de Turim, ou por Carmen de Bizet, que ilustra reflexões do texto O Caso Wagner, dentre outros. A música é uma personagem do filme.
É um filme onde o personagem Nietzsche (Fernando Eiras) não fala, apenas dialoga em off numa livraria, com uma vendedora de frutas, mas nunca há diálogos, apenas monólogos, ressaltando a enorme solidão de Nietzsche, mas aproximando a narrativa do espectador, que sente que a voz em off é uma voz amiga, que fala para um ouvinte, é profundamente inspiradora. O motivo-guia do filme é a voz interior do filósofo, sempre lendo trechos de seus livros e cartas.
A respeito de Nietzsche, é sempre preciso interpretar e escolher a sua perspectiva. O meu Nietzsche é esse do filme de Bressane, um Nietzsche compatível com o humanismo marxista: dialética (no sistema de Nietzsche, foi recusada formalmente, mas está presente e rebatizada com o nome de perspectivismo. É a necessidade de contextualizar e relativizar o conhecimento humano); uma estética aristocrática e radical, para a qual tudo que é divino se aproxima com pés leves; uma ética tropicalista para qual um lugar de mistura de raças é lugar de grande cultura, por isso o antissemitismo e o racismo lhe dão vontade de vomitar; para essa ética, quem pode nos libertar das falhas trágicas de um sistema político e social decadente são os lá de baixo: os negros, os judeus alemães, os párias, os índios, as mulheres, os operários, os caipiras. Há subsídio em Nietzsche para contrariar esse meu Nietzsche? Há. Mas não me interessa e contra essa outra interpretação, se aparecer, vou oferecer agônica oposição. Finalizando, algumas de suas frases no decorrer do filme (todas tiradas de Ecce Uomo):
Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano, era lícito sepultá-lo –o que nele era vivo está salvo, é imortal. O primeiro livro da Tresvaloração de todos os valores, as Canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos Ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo –tudo dádivas desse ano, aliás de seu último trimestre! Como não deveria ser grato à minha vida inteira? –E assim me conto minha vida.
A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais rasteiro degrau da vida, a um tempo décadent e começo.
A idéia suprema de poeta lírico me foi dada por Heinrich Heine.
Naquele dia em caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana: detive-me junto a um imponente bloco em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me esse pensamento [Do eterno retorno. O filme de Bressane ilustra essa passagem com uma imagem dos seios de Mariana Ximenes em preto e branco].
Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo –de uma crise como jamais houve sobre a terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite.
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3 comentários:
Excelente postagem Lúcio. Acabei de lê-lo e, confesso gosto muito de sua maneira de escrever. Percebe-se paixão, alento e muita energia. Tratando-se de Nietzsce é notório como você o faz com grande maestria.Vi esse filme, uma vez, na Tv e fique impactado. A experiência causou-me, ainda mais, respeito por este filósofo. Um abraço, companheiro. Até...
Sim. Obrigado pela dica dos livros. Um abraço...
Abraços Maxwell: tb vou sempre ao sapere aude e adoro.
Abs do Lúcio Jr.
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