sábado, 18 de junho de 2016

A Moral da Moral das Horas: Velejando os Mares do Não


 A moral do livro de poemas de Antônio Siúves (Manduruvá Edições) parece-me uma moral ligada a Proust e a Pedro Nava: o autor demonstra uma sensibilidade ligada ao que a cidade –Belo Horizonte, que aparece como “Belizon” em “Ruas de Belizon”—tem de mais poético, mais ligado a um passado em que a vida nessa que agora é uma grande cidade era mais humana. Enquanto a cidade é destruída mais uma vez pela especulação imobiliária, ao poeta resta lembrar o odor das damas-da-noite nas ruas de Belo Horizonte e preservar esse odor. Esse odor das damas-da-noite do passado está salpicado, aqui e ali, nas luas de Moral das Horas. O poeta exemplifica sua poética ligada à cidade em Olavin Testino (MD): “a arquitetura para sempre farisaica da cidade [vinte vezes destruída em um século] conserva o vetor determinista do arremedo. Arquitetos cortam moldes baratos nos magazines da corte e praticam colagens” (SIUVES, 2013, p. 88). Siúves cita diretamente Shakespeare, T. S. Eliot, Galáxias de Haroldo de Campos, Mario Vargas Lhosa, dentre outros. Há um travo de melancolia que lembra, por vezes, Drummond. Mas nesse departamento o poeta parece ir muito bem: Siúves veleja bem nos mares do não.
Seu apego a Belo Horizonte faz lembrar Amanuense Belmiro, de Ciro dos Anjos, mas ao contrário do romancista, que na verdade celebra não a cidade, mas os tipos curiosos que compõem sua roda de amigos nos anos 30, os poemas de Siúves oscilam entre três pólos: o homem e as coisas (numa relação quase sempre fria), a solidão, a cidade.
Como sugere a lua na capa, o poeta é noturno. Ele, como diz de Van Gogh, é um mestre da luz que cultiva como musa a escuridão. O poema Ontem à Tarde Li: “Ó noite lilás, tremente, fulgente, horizontal./Dentro de si se embriagam no arraial”.
Os momentos que mais me fascinam em Moral das Horas são aqueles em que ele se volta para a própria arte: “Quem Escreve Nunca Alcança”, negação do senso comum otimista, torna-se praticamente o seu dístico e chega até mesmo a constituir uma parte do livro de poemas. O poema para o pintor Fernando Fiúza em “Os Meus Outros” é também de uma beleza plástica: é um momento em que o poeta noturno dialoga com as artes plásticas. E são parte da brilhante divisão dos poemas que estrutura o livro.

No poema Loucura e Lucidez (ou a balada da autocomiseração possível) o poeta canta essa bipolaridade com sotaque drummondiano. Para esse poeta, a vida não é diversão, ele é um trágico. Por isso a citação de Lhosa muito bem o define, em choque com uma civilização do espetáculo, em “Enojei-me dos cadernos de comida”(que são, no jornalismo, substituto da literatura): “Esta é uma realidade enraizada em nosso tempo. A partir do nascimento das novas gerações, uma maneira de ser, de viver e acaso de morrer do mundo que nos tocou, a nós, de ser afortunados cidadãos (...) aos que (...) a liberdade, as ideias, os valores, os livros, a arte e a literatura do Ocidente nos têm deparado com o privilégio de converter ao entretenimento passageiro em aspiração suprema da vida humana e ao direito de contemplar com cinismo e desdém tudo que aborrece, preocupa e nos recorda que a vida não é somente diversão”. Essa passagem é chave para entender a poética de Siúves: ele foca naquilo que incomoda, na morte, o “continente ainda não descoberto” do pós-humano que preocupa, no que é denso, profundo, no que não demanda compreensão fácil, enfim, naquilo que sobrevive ao tempo. O poeta é preciso, econômico nas palavras. Ao fazer versos brancos, não deixa também de observar a musicalidade (melopeia); ao colocar a dança do pensamento entre as palavras (logopeia), não deixa também de trazer imagens (fanopeia). Siúves parece buscar contemplar essas três esferas poéticas mapeadas por Ezra Pound em Abc da Literatura. Eu sigo o pensamento de Siúves: “se o jornal morreu, estou no blog”.

Lúcio Jr.

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