domingo, 30 de agosto de 2020

Lukács e o Realismo Socialista de Soljenitsin

 

Lukács e o realismo antissocialista de Soljenitsin

 

Adriano Alves

Andreza Vale

 

Resumo

 

Esse artigo busca investigar um ensaio de Lukács sobre o dissidente russo Soljenitsin, motivado por comentários recentes a respeito de um possível paralelo entre Soljenitsin e a dissidente cubana Yoani Sánchez. Lukács considerou, ao analisar os romances de Soljenitsin, que esse escritor era um renovador do marxismo, ou ainda, um renovador que estava trazendo o realismo socialista de volta aos primórdios. O tempo não confirmou essas expectativas de Lukács, traçadas em 65. Outra hipótese a respeito de Soljenitsin foi elaborada por Abraham Rothberg em seu livro Herdeiros de Stálin: o escritor russo seria um entusiasta da liberdade de expressão e tinha sido apoiado por Kruschev. Seria, então, um dissidente liberal, não um marxista ou realista socialista. Mesmo essa hipótese deve ser deixada em suspenso diante das atitudes de Soljenitsin depois da queda da URSS, quando ele se manifestou a favor de um regime que ligasse a igreja ortodoxa ao regime czarista, apresentada em texto de Mário Sousa e do norte-americano Eric Margollis. Assim, a hipótese com que finalizou-se essa pesquisa foi que Soljenitsin elaborava um realismo antissocialista, buscando principalmente através de sua ficção apoiar o seu projeto político de extrema-direita, embora ele não assumisse diretamente essas posições reacionárias em seus primeiros tempos de União Soviética.

 

Palavras-chave: dissidência, liberalismo, realismo socialismo, Lukács, Soljenitsin, crítica literária

 

Abstract

 

This paper investigates an essay by Lukács on Russian dissident Solzhenitsyn, motivated by recent comments about a possible parallel between Solzhenitsyn and Cuban dissident Yoani Sánchez. Lukacs considered when analyzing Solzhenitsyn's novels, which this writer was a renovator of Marxism, or even a renovator who was bringing socialist realism back to the beginnings. The weather did not confirm these expectations Lukacs, drawn in 65. Another hypothesis about Solzhenitsyn was drafted by Abraham Rothberg in his book Heirs of Stalin: Russian writer was an enthusiast of free speech and had been supported by Khrushchev. It would then be a dissident liberal, not a Marxist or socialist realist. Even this hypothesis should be left open on the attitudes of Solzhenitsyn after the fall of the USSR, when he came out in favor of a system that would link the Orthodox Church to tsarist regime, presented in text Mário Sousa and American Eric Margollis . Thus, the hypothesis that ended up with this research was that Solzhenitsyn elaborated antissocialista realism, seeking mainly through his fiction support their political project of far-right, although he did not directly assume these positions reactionary in their early days of the Soviet Union .

 

Keywords: dissent, liberalism, socialist realism, Lukács, Soljenitsin, literary critics

 

Introdução

 

Recentemente, em um artigo na revista Pittacos, o teórico marxiano Luiz Sérgio Henriques comparou os romances do dissidente russo Soljenitsin aos textos da polêmica blogueira Yoani Sánchez, cuja turnê anticomunista motivou uma avalanche de polêmicas e ganhou até capa da revista Veja no mês de fevereiro [deste ano corrente de 2013].

 Henriques sugeriu a leitura dos romances do escritor russo. O motivo está presente no próprio título do artigo: deveríamos saber “O que os dissidentes dizem sobre nós”. Nós, ele quer dizer: a esquerda. A seguir, ele ainda sugere a leitura dos ensaios de Georg Lukács sobre Soljenitsin, que, segundo ele, romperam uma barreira nos anos 60. Henriques julga que são obras-primas da literatura e denúncias fundamentais do “stalinismo”.

No entanto, ao pesquisar, descobrimos que os textos de Georg Lukács sobre Soljenitsin não foram publicados em português. Esse artigo busca debater um desses textos, Soljenitsin e o Novo Realismo, aproveitando a provocação lançada por Luís Sérgio Henriques. Supomos que essa leitura poderia trazer surpresa até mesmo para  autor que os recomendou.

 

1. Lukács e sua crítica a Soljenitsin

 

Em primeiro, é preciso começar essa polêmica contextualizando para os leitores quem foram Georg Lukács (1885-1971) e Alexander Soljenitsin (1918-2008). George Lukács era considerado um intelectual comunista herege, mas ao mesmo tempo, também era considerado no Ocidente como um teórico do realismo socialista. Em seus ensaios sobre Soljenitsin, confrontam-se Lukács, um marxista supostamente atualizado e heterodoxo (mas que também fora preso duas vezes, uma vez em 1940 e depois em 56), e Soljenitsin, um oponente público do partido soviético. Curiosamente, o que se deu é que os pontos de vista de ambos se aproximam.

Lukács, mesmo em seu livro recém traduzido no Brasil, Ontologia do Ser Social, é um autor que está sempre no meio de uma discussão muito técnica sobre o marxismo, que ele prefere chamar de “crítica marxiana”. Em seus ensaios sobre Soljenitsin, pode-se dizer que Lukács expressa com fervor a aversão que sentia pelo “stalinismo”. Sobre Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, Lukács se entusiasma e escreve que "o campo de concentração é um símbolo da vida cotidiana stalinista”. E ainda vai mais além. Lukács apresenta-se convicto de que os romances de Soljenitsin contribuíam para o verdadeiro marxismo ao combaterem as distorções stalinistas:

 

E, é evidente que a verdadeira maneira de manter a fé é rejeitar distorções stalinistas e, desse modo, consolidar e aprofundar todos os realmente marxistas, com convicções socialistas realmente, ao mesmo tempo, preparando-os para enfrentar problemas novos (LUKÁCS, 1965, p. 214).

 

Embora o próprio Soljenitsin tenha sido, durante algum tempo, apoiado e editado pelo líder soviético Kruschev e a república popular húngara, nos anos 60, enfeitasse muita coisa que editava com citações do próprio Lukács, as diferenças entre Stálin e os que o sucederam são negadas. Lukács aparentemente repudiou também Kruschev e Brejnev, "com todas as suas mudanças que preservam os métodos essenciais do stalinismo, com apenas modificações superficiais". E há uma série de passagens assim, afinal, bastante reveladoras do que pensa Lukács. Ele sempre fala de Soljenitsin como alguém com grande estatura moral, aprovando-o como alguém que mostra independência e coragem. No livro O Primeiro Círculo, Lukács praticamente aceita como típico um personagem que, prisioneiro na União Soviética, ainda permanece um marxista ortodoxo. Soljenitsin narra que considera o personagem decente, mas ainda marxista. Para Lukács, os “campos de concentração eram símbolo do dia a dia da vida stalinista”. Mas Lukács admira também o Soljenitsin escritor. Lukács, programaticamente antimodernista, admira o escritor que não faz utiliza técnicas experimentais em sua narrativa. Tanto como Pasternak quanto Soljenitsin voltam às formas realistas do século XIX, daí a simpatia de Lukács pela narrativa bastante tradicional de Soljenitsin.

Lukács compara Um Dia Na Vida de Ivan Denisovich com as novelas curtas de Conrad e Hemingway. Ele escreve que esses romances falam de um indivíduo colocado em uma situação extrema. O sanatório dos tuberculosos descrito por Soljenitisin é associado a Thomas Mann e A Montanha Mágica. Depois de associar Mann e Soljenitsin (comparação bastante lisonjeira para com o autor russo), Lukács ainda afirma que “as obras de Soljenitsin aparecem um renascimento dos nobres primórdios do realismo socialista.” Como referência de realismo socialista, Lukács considera como referência o escritor soviético Makarenko. Essa é a hipótese de Lukács, que julgamos desmentida pelos fatos posteriores. Pode-se supor que Soljenitsin fez justamente o contrário: realismo anti-socialista.

De um ponto de vista predominantemente favorável, assim mesmo Lukács fez críticas a Soljenitisin no sentido de que o escritor escreve do ponto de vista de uma mente “plebéia” e não de uma consciência socialista. Mas, logo em seguida, ele associou esse suposto ódio plebeu ao privilégio social ao personagem Platon Karatayev de  Guerra e Paz (de Leon Tolstoy). Soljenitsin foi aproximado a Tolstoi em suas inclinações religiosas. A respeito de quais são verdadeiramente as inclinações de Soljenitisin, vale a pena incluir uma observação sobre o que disse o colunista Eric Margollis quando da morte de Soljenistin em 2008, finalizando um artigo claramente elogioso, intitulado a Morte de um Titã:

 

Em seguida, ele [Soljenitsin] publicou um livro sobre um assunto até então tabu, o papel proeminente de judeus russos no Partido Comunista e na polícia secreta. O livro provocou uma tempestade de críticas na América do Norte. Solzhenitsyn foi marcado como antissemita e rapidamente se tornou uma não-pessoa pela segunda vez. Solzhenitsyn retornou à nova Rússia, após a queda do comunismo e tornou-se o principal expoente do culto revivido e reacionário do século 19, o nacionalismo pan-eslavo. Ele defendia a Igreja Ortodoxa da Rússia como guardiã da alma da nação, proclamou o destino manifesto da Rússia e defendeu uma forma de czarismo moderna, que se parece muito com aquela levada adiante hoje no Kremlin por Vladimir Putin e Dimitri Medvedev (MARGOLLIS, 2008).

 

Assim, o “plebeu” era na verdade um reacionário ortodoxo, cuja escrita aparentemente reforça o seu projeto, ainda que, nos anos 60 (ou seja, no período que estamos tratando), ele não pudesse ainda mostrar quem realmente era. Pelo contrário, Soljenitsin é lido como um autor que defende a linha adotada por Kruschev no congresso onde começou a desestalinização e que deseja o aprimoramento –e não a derrocada – do regime. Mas agora, de acordo com Margollis, sabemos qual é a verdade. A avaliação de Lukács, em seu texto Soljenitisin e o Novo Realismo, não poderia ser mais equivocada, quando a lemos à luz dos acontecimentos de 1965 para cá:

 

O mundo socialista, hoje, está às vésperas de um renascimento do marxismo, que não é chamado simplesmente a restaurar o sistema original, distorcido de modo grave por Stalin, mas que será dirigido em primeiro lugar a uma plena compreensão dos novos dados da realidade pela luz dos conceitos, do ao mesmo tempo novo e velho, marxismo genuíno (LUKÁCS, 1965, p. 203).

 

Aqui já temos que fazer uma observação: o pensamento de Stálin é ligado ao marxismo-leninismo. É também marxismo genuíno. Essa suposta dissociação entre “bolchevismo e stalinismo” foi primeiro realizada por Leon Trotsky em um famoso ensaio e generalizou-se como uma convicção no chamado “marxismo ocidental”, mas não encontra base na realidade. Lukács vai ainda mais longe. Ele atou o destino de seu marxismo ao realismo de Soljenitsin. Será que ele sabe que Soljenitsin era um realista anti-socialista, como mostrou posteriormente? Não há como responder a essa questão em termos simples. Pode-se dizer que possivelmente Lukács achou conveniente não ser objetivo a respeito a aderir a uma nova onda:

 

No campo literário, uma cobrança idêntica enfrenta o realismo socialista. Qualquer continuação do que foi elogiado e homenageado na era Stalin como realismo socialista seria inútil. Mas estou convencido de que eles [os críticos liberais] estão igualmente equivocados em profetizar uma sepultura precoce para o realismo socialista, e querem rebatizar como "realismo" praticamente tudo, desde a [o que se produz na] Europa Ocidental até o expressionismo e futurismo, assim como abolir todo o uso do termo "socialista". Quando o socialismo retoma sua verdadeira natureza, e sente-se mais uma vez sua responsabilidade artística em face dos grandes problemas da sua época, forças poderosas podem ser colocadas em movimento para a criação de uma nova literatura socialista da atualidade. Em meio a um processo de transformação e renovação que implica para o realismo socialista uma brusca mudança de direção daquela da era de Stalin, a história de Solzhenitsyn constitui, na minha opinião, um marco no caminho para o futuro (LUKÁCS, 1965, p. 203).

 

Mas de fato é muito surpreendente que Lukács tenha de fato analisado Soljenistin e afirmado que o material do “realismo socialista” de Soljenitsin era, agora, a avaliação crítica objetiva – e não distorcida ou reacionária-- da era de Stálin. Os personagens de Soljenitsin estão sempre esmagados pelo poder do aparelho repressivo. Lukács parece aceitá-los como ilustrativos do período Stálin – e sem fazer observações críticas. Pelo contrário, o fato de Soljenitsin abordar temas sociais e políticos em uma perspectiva reacionária e contrapor o indivíduo ao estado é visto por Lukács como uma benéfica fuga do subjetivismo de Kafka e do experimentalismo de Beckett, que para estão embebidos do niilismo da época que deu Hitler. Diferente do individualismo presente em romances de Conrad ou Hemingway, onde a luta é contra uma força da natureza, Soljenitsin traria a esperança da renovação do realismo socialista, embora fique evidente seu enfoque seja o tempo todo criticar o socialismo como um todo. Lukács arriscou uma hipótese ousada quando viu nessa perspectiva o renascimento do marxismo.

Soljenitisin transformou um dia normal em um campo anônimo num símbolo literário de um passado ainda não digerido, retratado em tons de cinza sobre cinza. Lukács citou com aprovação até mesmo frases como “o melhor lugar que se podia estar é a prisão”. E pode-se dizer também que os textos de Soljenitsin, como o romance Arquipélago Gulag, conseguiram estabelecer ligações entre os campos de concentração nazifascistas e as prisões comunistas sob Stálin. Soljenitsin pretende, em sua ficção, apresentar uma descrição autêntica da vida, dando a seus textos o cunho de denúncia política bastante didática. Se em Conrad e Hemingway, o indivíduo pode sentir simpatia pelas forças da natureza que se opõe, em Soljenistin ele não tem nenhuma simpatia pelo sistema social e político que o oprime.

Pode-se dizer, então, que o filósofo e crítico literário húngaro Lukács não só aceitou Soljenitsin como renovador do realismo socialista como associou seu reaparecimento a um suposto “renascimento do marxismo” que seria, possivelmente, orientado e reforçado pelas obras de Soljenitsin. O que se sabe, porém, é que algo de bem diferente se basou após a queda de URSS, com Soljenitsin assumindo uma posição não só anticomunista, mas também como um monarquista religioso de extrema-direita. A avaliação de Lukács mostrou-se, então, equivocada. É bem provável que Soljenitsin voltava os cânones do realismo socialista contra ele próprio, confundindo-se, nesse ínterim, com um verdadeiro realismo socialista. A seguir vamos analisar como um crítico literário norte-americano, o professor Abraham Rothberg, leu Soljenitsin nos anos 70.

 

2. Soljenitsin na obra de Rothberg: um liberal dissidente

 

            No livro Os Herdeiros de Stálin, o professor Abraham Rothberg apresenta Soljenitsin de forma diferente da leitura acima realizada por Lukács. Rotberg contextualiza o surgimento de Soljenitsin como escritor como parte de um movimento mais geral de desestalinização e de liberalização por parte de Nikita Kruschev. Soljenitsin começou, então, a ter seus livros editados não contra, mas apoiado pelo poder; no caso, pelo secretário-geral Nikita Kruschev. O primeiro texto que Soljenitsin lançou foi Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, publicado na revista Novy Mir:

 

O número da revista esgotou-se logo. Cem mil exemplares de Ivan Denisovich em forma de livro esgotaram-se também rapidamente . Ao mesmo tempo, publicações oficiais lançavam uma campanha coordenada para dar o máximo de publicidade ao romance: Soviet Literature o traduziu para o inglês; Moscou News, semanário de consumo de estrangeiros, foi autorizado a publicar uma versão em série; e Izvestia e outros jornais não literários publicaram resenhas altamente favoráveis ao livro. Pravda, por exemplo, comparou favoravelmente Solzhenitsyn com Tolstoy (ROTHBERG, 1972, p. 70).

 

            Como se pode ver acima, Soljenitsin foi lido favoravelmente por Kruschev como uma peça a mais na desestalinização e liberação, ou seja, ao mesmo tempo ele foi acolhido como um liberal e como um sucessor de Tolstoy. A citação de Tolstoy é uma indício de que já se sabia do aspecto religioso da obra de Soljenitsin, aspecto que depois veio à tona mais vigorosamente (ROTHBERG, 1972, p. 71).

Um Dia na Vida provocou uma tempestade de críticas tanto ao autor quanto o periódico. Logo a seguir, a mesma revista publicou um outro romance curto, Pelo Bem da Causa, igualmente provocando polêmica: para uns, a publicação de Soljenitsin era saudada como signo de liberalização, para outros era tido como narrativa exagerada e tendenciosa, que faltava com a verdade quanto ao que foi o período retratado. Já para Rothberg, a posição de Soljenitsin seria de dissidência liberal assumida, muito diferente da posição intermediária de um Lukács. Ele não adota a hipótese de que Soljenitsin esteja querendo renovar o realismo socialista e também não o associa ao marxismo, senão ao liberalismo. Leia-se seu comentário a respeito em Herdeiros de Stálin:

 

Se Ivan Denisovich foi um impacto para os dogmatistas da velha guarda, porque revelava a injustiça e a crueldade não como matéria acidental, mas com política do estado, o romance, afinal de contas, decorria no início da década de 50, na era de Stálin, a uma distância no tempo tão longe, que os fatos poderiam ser “controlados”, atribuindo-se-lhes ao passado que não se deveria mais repetir. Mas Pelo Bem da Causa era um ataque explícito aos remanescente estalinistas ainda presentes no sistema soviético, uma investidura contra burocratas mesquinhos e arbitrários, que os retratava como carreiristas impiedosos, ambiciosos e autoritários; e tempo era o presente. O fato de Kruschev ter permitido sua publicação só pode ser atribuído à necessidade de revitalizar a economia estagnada, o que esperava pudesse ser conseguido com a eliminação da inflexibilidade dogmática dos burocratas estalinistas (ROTHBERG, 1972, p. 119).

 

            O pequeno romance (“novela”) em questão, Pelo Bem da Causa, conta a história de como um pequeno grupo de jovens ajuda a construir um novo prédio escolar poderem estudar, uma vez que o prédio anterior era velho e inadequado e como, depois de concluída a construção, eles a perdem para os burocratas e carreiristas. Um personagem em especial, Knorozov, representou, na narrativa, o burocrata stalinista.

O texto causou polêmica porque o crítico Yuri Barabash, do jornal Literaturnaya Gazeta, comentou que Soljenitsin teria criado em Knorozov uma caricatura, um símbolo irreal do período Stálin. Através das análises de Rothberg pode-se notar que havia um debate público a respeito de Stálin, literatura e política na União Soviética, ao contrário da imagem que se tenta passar nos últimos anos, de um regime tirânico, que não permitiu crítica alguma e vigia os seus cidadãos no dia a dia. O texto Os Herdeiros de Stálin registrou, inclusive, a existência de uma imprensa alternativa na URSS, os chamados “samizdats”, jornais clandestinos em que circulavam materiais não liberados pela censura, chegando inclusive ao Ocidente. Como a URSS não participava das convenções internacionais de direitos autorais, muito material era contrabandeado para o exterior. Soljetinsin era elogiado e criticado na imprensa soviética. Como se pode ler em Rothberg:

 

No início de janeiro, a imunidade de Soljenitsin ao ataque começou também a ruir. Lydia Fomenko o censurou por não ter deixado de erigir uma percepção filosófica do período estalinistas em Ivan Denisovich, e por ter deixado de compreender que o povo e o Partido andaram bem em construir o socialismo, apesar de Stálin. Era a crítica que começava numa campanha contra Soljenitsin, crítica que iria crescer e se tornar o meio de o regime tratar o problema dos herdeiros de Stálin. O socialismo, o que quer que fosse, tinha sido construído pelo povo e, por extensão, pelo Partido, mesmo enquanto Stálin cometia seus erros e suas distorções. Os apologistas apontavam para as realizações da industrialização soviética e para a vitória sobre a Alemanha nazista como provas positivas de que eles –o Partido e o povo, o Partido conduzindo o povo –tinham realizado como distinto do que ele –Stálin –tinha desviado ou distorcido. Uma vez entregue a essa apologia, os líderes do Partido tinham de reabilitar Stálin, pelo menos em parte, de modo que sua lógica e sua história, embora deficientes e deformadas, não parecessem inteiramente absurdas (ROTHBERG, 1972, p. 84).

 

A partir desse momento, portanto, que ocorreu no ano de 1962, a suposta preferência de Kruschev por Soljenitsin se abrandou. Naquele ano, uma conferência de escritores deu um basta à liberalização e à desestalinização. O grupo dos escritores liberais tais como Yevtuchenko, Ehrenburg e Nekrassov passou a ser criticado e Kruschev ficou especialmente irritado com uma exposição de arte abstrata na URSS. Ele passou, então, a afirmar que não ia aceitar mais desvios do realismo socialista. Passou-se a criticar Ehremburg, assim como outros escritores, entre os quais Soljenitsin, pela forma como a propaganda ocidental utilizava suas obras, ou seja, como uma propaganda contra o socialismo como um todo (ROTHBERG, 1972, p. 85).

A leitura de Soljenitsin, assim, alimentava-se mais e mais de um interesse político. Outro ponto presente em sua literatura e já registrado por Rothberg foi a associação que Soljenitsin causava, entre os campos de concentração do tempo de Stálin e os campos fascistas. Esse ponto foi fortemente o ponto que foi ressaltado no Ocidente nos anos 70, quando Soljenitsin mudou para o exterior e radicalizou suas posições em O Arquipélago Gulag (ROTHBERG, 1972, P. 85).

 

3. Soljenitsin: uma literatura fascista?

 

            Embora de início associada à liberalização, Soljenitisin entrou em choque com o poder soviético no decorrer do final dos anos 60 e, no início dos anos 70, abandonou a URSS, obtendo, no entanto, grande sucesso no Ocidente. O governo soviético exigiu que Soljenitsin não participasse de uma campanha internacional de difamação da União Soviética, mas Soljenitsin negou-se a aceitar. Assim, depois de estimulados, seus livros passaram a sofrer censura.

 Enquanto isso, na União Soviética, sua peça A Festa dos Conquistadores provocava polêmica. Segundo Soljenitsin, a peça teria sido apreendida ilegalmente pela polícia política. Por outro lado, as autoridades alegavam que a peça tinha sido obtida junto a estrangeiros que contrabandeavam manuscritos de dissidentes russos para o ocidente. A peça, também escrita durante o período de encarceramento de Soljenitsin, apresentava o exército vermelho com um exército de vândalos e estupradores e simpatizava abertamente com o general Vlassov, que se passou para o lado dos nazistas durante a II Guerra. A polêmica em torno da peça fazia supor que a condenação pela qual Soljenitsin fora aprisionado em 1946 tinha sido motivada por sua simpatia aos nazistas ainda em plena II Guerra Mundial. Ao contrário do regime cubano hoje em dia, que tolera que a dissidente Yoani Sánchez mova uma campanha internacional de difamação e calúnia, tal não foi tolerado pelo governo soviético em plena Guerra Fria.

A hipótese do marxista português Mário Sousa sobre Soljenitsin é a última que iremos analisar: ele parte do pressuposto de que sua ficção reforça um projeto político de extrema-direita.

No Ocidente, Soljenitsin lançou o livro Arquipélago Gulag, radicalizando sua visão sobre as prisões ao tempo de Stálin.  Em 1970, Soljenitsin ganhou o prêmio Nobel de literatura, mas o texto passou a ser lido no Ocidente como uma peça de propaganda anticomunista e  não uma ficção. Até hoje essa leitura de sua obra é bastante comum.  Em 1974, Soljenitsin emigrou para a Suíça e depois para os Estados Unidos. Sua suposta simpatia pelos nazis não era, então, abertamente discutida.

            As posições de Soljenitsin no Ocidente eram abertamente anticomunistas: propôs atacar o Vietnã mesmo depois do fim da guerra, discursou no senado norte-americano, assim como foi orador no sindicato conservador AFL-CIO. Dentre outras posições conservadoras, defendeu a intervenção dos USA para coibir a Revolução dos Cravos em Portugal. Ele também lamentou a libertação das colônias portuguesas da África. Soljenitsin inspirou a série Rambo, ao alegar que existiam norte-americanos trabalhando como escravos no Vietnã do Norte, assim como apoiou o regime fascista de Francisco Franco na Espanha, opondo-se e prevenindo as pessoas contra as reformas democráticas depois da morte de Franco, em 1975, quando o rei começou, timidamente, uma liberalização democrática. Soljenitsin contrastou, em entrevista no horário nobre, os cento e dez milhões de russos que morreram vítimas do socialismo com a liberdade que se desfrutava na Espanha. Assim, relembrando o artigo de Eric Margollis que citamos anteriormente, Soljenitsin não ganhou inteiro apoio político em seus dezoito anos de exílio nos Estados Unidos, tendo saído paulatinamente da mídia: embora ele tenha sido uma peça importante na campanha antissoviética da Guerra Fria, mesmo os governos capitalistas não podiam apoia-lo sem constrangimentos, como quando publicou um livro abertamente antissemita nos Estados Unidos. De fato, nem os capitalistas mais radicais se interessaram em apoiar o projeto político de Soljenitsin, que é a volta do regime autoritário dos czares em ligação com a igreja russa ortodoxa.

            Assim sendo, Soljenitsin  foi lido de três formas que excluem umas às outras: como realismo socialista (Lukács), como um defensor da liberdade de expressão e um dissidente liberal a favor de Kruschev (Rothberg) e, finalmente, como um defensor da extrema-direita. Nossa hipótese é que essa última hipótese é que é a correta: Soljenitsin é um ficcionista de extrema-direita.

            Mas sua ficção é também muito lida como informação histórica no Ocidente e tratada como bibliografia a respeito da União Soviética. E isso mesmo pelos simpatizantes do marxismo ocidental (como o supracitado Luiz Sérgio Henriques, considerado referência no estudo de Lukács no Brasil e citado ao lado de José Paulo Netto, José Chasin e outros).

 

3. Conclusão

 

A obra ficcional de Alexander Soljenitsin foi esquecida nos últimos anos. Foi citada recentemente a propósito da visita da dissidente cubana Yoani Sánchez ao Brasil pelo teórico lukacsiano Luiz Sérgio Henriques, que sugeriu em artigo recente na revista Pittacos o assunto desse artigo: a leitura dos artigos de Lukács sobre Soljenitsin. Porém, Henriques esqueceu-se, possivelmente, de que esses artigos não foram publicados em português, como aliás, parte significativa da obra de Georg Lukács, cujo livro considerado essencial, Ontologia do Ser Social, só recentemente foi publicado no Brasil. Ao ler o texto Soljenitsin e o Novo Realismo e comentá-lo para esse artigo, o que foi observado é que os pontos de vista de Lukács e Soljenitsin convergem em alguns pontos. Tal não deixa de ser surpreendente, uma vez que, para muitos no Ocidente, Lukács é um marxista ortodoxo, enquanto Soljenitsin, conforme foi verificado depois da queda da União Soviética, era um antissemita, monarquista e religioso fanático, adepto da extrema-direita e peça importantíssima numa campanha de propaganda antissoviética em plena Guerra Fria que o governo da URSS não tolerou. Ao contrário do governo de Kruschev, que estimulou inicialmente Soljenitsin e depois o censurou, proibindo sua campanha antissoviética no Ocidente, o que se nota é que o governo cubano é tolerante com uma campanha semelhante desencadeada por Yoani Sánchez. Nossa hipótese é que a teoria de Lukács sobre Soljenitsin, supondo que a ficção de Soljenitsin seria na verdade um novo realismo socialista, buscando renovar o marxismo, não tem de forma alguma correspondência na realidade e foi, posteriormente, desmentida pelos fatos. A hipótese de Abraham Rothberg é mais próxima da realidade: Soljenitsin de fato era um dissidente do regime soviético. O que Rothberg não deixa entrever é a radicalidade de Soljenitsin contra a URSS, parcialidade visível no artigo Morte de um Titã, de Eric Margollis, após a morte desse verdadeiro titã do anticomunismo. O que é surpreendente que um marxista considerado ortodoxo como Georg Lukács confunda realismo socialista com algo que pode ser considerado como realismo anti-socialista. Ou que de fato teve um uso, no Ocidente, como realismo antissocialista, em meio a uma campanha da Guerra Fria contra a União Soviética. E surpreende que Lukács ainda compare, favoravelmente, mas de acordo com a visão que era também debatida na URSS dos anos 60 e 70, Soljenitsin com Tolstoy, chegando a dizer que ele seria “um novo Tolstoy”. Os elogios não param por aí: O Pavilhão dos Cancerosos, parte da obsessão de Soljenitsin pelo encarceramento, é comparado pelo marxista ocidental Lukács com a prestigiosa obra A Montanha Mágica, de Thomas Mann, pelo fato de que os dois tratam de pessoas colocadas fora de seu meio. As situações extremas são o motivo-guia que irá permitir a comparação que Lukács realiza entre Soljenitsin e Conrad, assim como o escritor russo é também comparado a Ernest Hemingway, autor de pequenos textos curtos como O Velho e o Mar e também bastante famoso e apreciado. Porém, Lukács observa que os personagens de Soljenitsin se movimentam individualmente contra um sistema opressor, com o qual eles, isolados, nunca sentem nenhuma simpatia ou ambivalência. Assim, conclui-se que a visão de Lukács observa Soljenitsin de uma forma complacente, simpática, quem sabe devido ao fato de que Lukács também foi encarcerado duas vezes durante o período Stálin, pelo motivo mesmo de não ser considerado um marxista ortodoxo. Lukács chega a atrelar sua obra a de Soljenitsin, considerado que ela seria uma expressão artística do marxismo renascido após a desestalinização e da liberalização do regime soviético. Assim, Lukács liga-se à visão de Soljenitsin predominante no período Kruschev, quando esse escritor russo foi apoiado oficialmente. E não demonstra, em 1965, estar retrocedendo da posição simpática adotada inicialmente por Kruschev diante daquele escritor e que, desde 62, registra Abraham Rothberg, estava refluindo, com Soljenitsin tendo perdido sua imunidade e tendo sido criticado na imprensa soviética. Há, portanto, três hipóteses sobre a obra de Soljenitsin, aqui inventariadas. Tomou-se partido, então, da hipótese de Mário Sousa, de que a ficção do escritor russo era de extrema-direita, em detrimento da hipótese de Rothberg de que ele seria um liberal e da de Lukács, de que ele seria um marxista e realista socialista. O fundamento para poder afirmar que o projeto político de Soljenitsin era de extrema-direita foram suas posições mais abertamente tomadas depois do fim da União Soviética.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4. Referências bibliográficas:

 

HENRIQUES, Luís Sérgio. O que os dissidentes dizem sobre nós.  <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1556>

 

HOWE, Irving. Lukacs and Solzhenitsyn. Revista Dissent. MIT Press, 1965.

 

LUKÁCS, Georg. SOLZHENITSIN AND THE NEW REALISM. Socialist register. <http://socialistregister.com/index.php/srv/article/view/5957#.UU-IvzdFseo>>

 

MARGOLIS, Eric. The Death of a Titan. <<http://www.bigeye.com/fc081108.htm>>.

 

MARTENS, Ludo. Stalin, Um Outro Olhar. Rio de Janeiro: Ed Revan, 1990.

 

ROTHBERG, Abraham. Os Herdeiros de Stálin. A dissidência e o regime soviético 1953-1970. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1972.

 

SOUSA, Mário. Mentiras sobre a União Soviética. http://republicasocialista.blogspot.com.br/2012/12/mentiras-sobre-historia-da-uniao.html. Acesso em 20 fevereiro de 2013.

 

 

 

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