sábado, 15 de agosto de 2020

Ondulatória, o Amor é para os Fortes

 

            Esse é um livro de poesias de Eduardo Andrade (Literatura em Cena, 2019) onde o que me fascina é a imagem da onda, das ondulações. Eduardo continua na linha de valer-se do cotidiano e das falas ditas na clínica para fazer poemas e prosa poética. A moça disse que o dedo era podre, mas não era o dedo físico: era no sentido figurado. E aí Eduardo teve uma epifania: “naquele momento percebi que o podre é o abandono do cuidado interno que inclina-se a repetições cegas. Anulação própria do luxo angustiante de poder escolher. A repetição é uma prisão e a pior cegueira é a de que não olha para dentro de si”. Ele desenvolve, então, uma curiosa teoria das ondulatórias psíquicas: “era das ondulatórias psíquicas, que na tentativa de serem caladas, falavam gritando pelas pontas do dedo. O ato refaz o corpo. A existência quando calada, grita pelos poros que encontram! Não se esconde de si mesmo”. É como se uma questão, ao não ser falada pelo analisando, falasse em si em seu corpo, falasse por si própria dentro dela ou dele.

            Em resposta, sua poética fala: fala das ondulatórias das águas (“estrias líquidas”), da labirintite psíquica ao sair da sessão de análise (sair trocando as pernas?), da poesia enquanto nudes da alma. Outra imagem da ondulação: “na lisura do seu macio cabelo escorre brincando a esperança no humano; a esperança é uma criança”. O amor é uma onda que só pode ser navegável pelas sutilezas dos fortes.  Eduardo utiliza-se de uma citação do livro Mulheres de Bukowski, que diz que o sexo, para a maioria das pessoas, e só dar corda, o que nos remete à imagem de pular corda, o que também é uma imagem da onda, da ondulação.Daí que,  concluindo, o poeta reflete que o amor só é suportável para quem aguenta a sobrecarga psíquica, ou seja, o sexo pode até ser para a maioria das pessoas, mas o amor é para quem não é fraco em termos psíquicos, é para os fortes, como diz o título, como os que fazem terapia, por exemplo.

 

 

 

Ainda que o o Amor seja para todos, Amar não é para Qualquer Um

 

            Nesse livro, juntamente com o Ondulatória, ambos de 2019, Eduardo elabora uma poética que parte de observações do cotidiano, de onde tira epifanias, no sentido de revelações do sagrado, da beleza, da leveza, das lições da vida. O livro não tem poesias propriamente no formato de versos: utiliza-se do formato de crônicas, prosa poética. Ele é muito perspicaz em notar que o ódio tem sua face erótica: atrito, bater boca: “atrito. É briga, é contato”. Suas palavras e observações são mamíferas, sugam o leite das coisas. No poema a invasão das decisões, ele observa que as pessoas chegam para as outras, sem ter conquistado liberdade para isso, e já imperam pelo imperativo do dizer o que esta deve ou não fazer (...). Geralmente o resultado da justificativa é das próprias questões e não de uma acolhida da história da pessoa”. É muito curioso o trabalho da linguagem com uma frase como “seja a si mesmo”, que remete ao “torna-te quem és”, de Píndaro, ou o conhece- te a ti mesmo, de Sócrates. Eduardo observa que ninguém tem uma identidade pronta, somos verbos. Ser a si mesmo é ser plural, pois não podemos dizer que temos uma identidade una, que não somos e, a partir de um certo ponto, passamos a assumir uma determinada identidade. O que se tem é um melhor ajuste, é estar melhor resolvido ao encontrar-se enquanto pertencente a uma determinada tribo (gays, funkeiros, etc), ao descobrir em si mesmo um talento que os outros reconhecem. Eduardo contesta a ideia de beleza, em especial quando trata-se de um discurso voltado para a mulher. A feminista é sempre feia para os controladores de plantão. Chamar de feia é uma estética vazia. Ele diz a respeito: “é feio o outro escancarar assim os desejos que tanto se luta por reprimir. Feio é sentimento que brota na epiderme estética, mas que diz de como percebemos tal coisa. Nada é feio sem interpretação. Feio é estado de espírito! Nada é bonito quando se está bem consigo”. Feio, analisa ele, é um estado de espírito, ele acredita em beleza interior, feio é um nome que damos para espelhar o que de dentro temos. O que me lembra a frase de Jorge Amado para responder a Vinícius: “algumas mulheres feias são irresistíveis”.

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