sábado, 15 de agosto de 2020

O Caso Mersault


 Romance de Karim Daoud (trecho)

 

 

 

            Hoje, minha mãe ainda está viva.

Ela não diz mais nada, mas ela pode contar bem as coisas. Ao contrário de mim, que ao tentar desenterrar essa história, quase não me lembro.

Eu quero falar de uma história que remonta a mais de meio século. Ela aconteceu e muito se falou sobre ela. As pessoas falam sobre ela, mas só evocam um morto –e não ficam com vergonha em fazer isso, uma vez que existiram dois mortos. A razão desse esquecimento? O primeiro sabia contar, ao ponto de que ele fazer renunciar a fazer esquecer seu crime, então o segundo era um iletrado que Deus criou apenas para receber uma bala e retornar ao pó, um anônimo que não teve nem tempo de ter um sobrenome.

Eu te digo imediatamente: o segundo morto, o que foi assassinado, era meu irmão. Ele não tem nada, a não ser eu, assentado nesse bar, esperando os meus sentimentos que jamais ninguém me dará. Você pode rir, mas é um pouco minha missão: ser o revendedor de uma história de bastidores depois que a cena do teatro está vazia. É por isso que eu aprendi a falar esta língua e a escrevê-la; para falar no lugar de um morto, continuar um pouco suas frases. O assassino tornou-se célebre e sua história está muito bem escrita e por isso tem a vontade de imitá-la. Dar essa língua a ele. É porque eu vou fazer o que fizemos nesse país desde a independência: pegar as pedras das antigas casas dos colonos e fazer uma nossa, uma língua nossa. As palavras e as expressões do assassino são meu mal que veio para bem. O país está cheio de palavras que não pertencem mais a ninguém e que nós percebemos na fachada das velhas lojas, nos livros amarelados, nos rostos, ou transformados pelo estranho dialeto que a descolonização produziu.

Há muito tempo que o meu irmão está morto e há muito tempo que meu irmão cessou de existir –salvo para mim. Você está cansado de colocar perguntas que eu detesto, mas eu espero que você me escute com atenção, você terminará por compreender. Não é uma história normal. É uma história que começa pelo fim e volta ao seu começo., sim como um cardume de salmões desenhado a lápis. Como todos os outros, você vai contar a história que conta sobre o homem que a escreveu. Ele escreve tão bem que as palavras parecem pedras talhadas pela exatidão em pessoa. Era alguém muito severo com as nuances, seu herói, eles os obrigava quase a serem matemáticos. De infinitos cálculos à base de pedra e de minério. Você viu sua forma de escrever? Ele parece usar a arte do poema para falar de um tiro. Seu mundo é limpo, cinzelado pela claridade matinal, claro, traçado...

 

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