Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior
Introdução
“Estamos nas ruínas
misturadas de um mundo”
Oswald de Andrade, A Morta
No Brasil de 2021 vivemos um cenário dantesco.
Desastres ambientais como Mariana e Brumadinho envenenam rios e contaminam
populações. No Nordeste, um enorme vazamento de óleo sujou as praias, prejudica
pescadores, mata a fauna marinha, mas ninguém é indenizado. A culpa, que
deveria ser investigada no tocante às multinacionais que exploram o pré-sal, é
atribuída a navios da Venezuela de forma quase unânime na imprensa, fazendo
coro com a explicação estapafúrdia apresentada pelo governo federal. Enormes
focos de queimada, originados do desastre climático, vitimam vinte e cinco por
cento do Pantanal. A Amazônia sofre com secas e os povos nativos são submetidos
a um cerco nunca dantes conhecido.
Para
pintar o quadro com cores ainda mais sombrias, conjugam-se a crise hídrica, a crise
econômica mundial desde 2008 e a pandemia de coronavírus, diante da qual o
governo federal, tomado por negacionistas, não tomou atitudes, redundando mais
de 500 000 mortos.
Num ensaio anterior datado de 1998, tratamos de Cultura
e Política 1980-1998, trazendo um equívoco, a partir da abertura, pensando
que Lula já tinha esgotado seu ciclo de presidente. O conflitivo período entre
1969-1980 não foi tematizado. Consideramos tal ciclo uma mera extensão do
período anterior, mas tal não é, portanto há espaço aí para um outro ensaio.
Quanto a Lula, era justamente o contrário. Esse ciclo aconteceu nesses vinte
anos. Sendo assim, o equívoco dos contemporâneos é mais vivo.
A
Queda do Muro de Berlim reforçou o processo anterior de desmarxistização das
Ciências Humanas, Artes e Letras. A mente de alguém como Lula mostra-se
profundamente imersa no sistema, o que faz dele, mesmo quando pretende ser a
voz da classe trabalhadora, apenas mais um representante da ideologia burguesa.
Relendo
aquele ensaio tantos anos depois, notamos o seguinte: o PT e seus aliados
assumiram o projeto anterior, varguista, de conciliação entre capital e
trabalho. No lugar da tão criticada aliança entre PCB e PTB, entraram o PT e
PMDB. Lula tomou o papel de Vargas, tanto em termos de projeto reformista
quanto no imaginário. E, de certa forma, repetiu o drama anterior de uma forma
piorada: evidentemente, ele fracassou no papel de “pai dos pobres, mãe dos
ricos”, dando origem a uma volta dos militares ao poder, desta vez sem tanque
na rua (embora eles estejam desfilando diante do parlamento), pela via
parlamentar.
E,
repetindo do drama tematizado por Roberto Schwarz no clássico artigo de 1969,
em 2018, entram no poder, pela via eleitoral, os militares de uma linha
semelhante a que chegou ao poder em 64, o que nos traz a assustadora ideia de
que a história gira em círculos. Agora não voltam mais com tanque na rua, mas
pela via do voto.
Se
antes os militares tinham ganho pela violência, em 64 e 68, agora dão a volta
por cima e ganham pela via eleitoral. Conseguem que as pessoas repitam sua
visão de mundo, coisa que não tinham a menor ilusão que a juventude dos anos 60
iria aceitar, daí as prisões e torturas, por exemplo.
Se
no final da ditadura militar houve uma vitória simbólica da esquerda, entre
1998-2018, finalmente, o capital simbólico da esquerda, acumulado entre
1964-1998, é consumido em meio ao governo Lula e também no de Dilma Rousseff.
O
ensaio de Schwarz, que trata de uma hegemonia de esquerda em meio a um governo
de direita, introduz essa temática: a direita sempre fala de uma suposta
hegemonia cultural da esquerda, o que a incomoda profundamente. A direita, ao
praticar seu terrorismo cultural, alega estar apenas acossada, defendendo-se do
terrorismo cultural da esquerda, daí a repetição insistente que ela faz da
ideia de hegemonia cultural dos adversários. O fato que ela teme, na realidade,
é a “invasão de baixo para cima por parte dos pobres”, ou melhor, o fato de que
não há mais como ignorar os pobres em termos de mercado cultural, o que gera
constrangimentos para a direita, mas é fato irreversível.
Aliado
a isso, existia um enorme problema para a direita ao final da ditadura militar:
desde 64, ela não tinha militância, enquanto o PT tinha uma militância, o que
do ponto de vista da dominação é um constrangimento. Entre 1998-2018, a direita
conseguiu contornar esse problema, mobilizando principalmente a classe média
insatisfeita, chamada “aberração cognitiva”. É um Brasil de aberrações
cognitivas que o PT alegou querer: um Brasil de classe média.
A
classe média tende sempre a desaparecer no capitalismo, a proletarizar-se, daí
que essa classe busca sempre girar a roda da história para trás. Essa classe
viu os pobres aproximando-se e os ricos afastando-se, no decorrer do governo
Lula, o que gerou o pavor da proletarização iminente. A tendência é sempre o
esmagamento posterior, mas há um momento de “Baile da Ilha Fiscal”. O baile da
Ilha Fiscal das ideias burguesas brasileiras foi o final da era Lula e Dilma,
tanto que até mesmo a ideia da monarquia voltou à baila. Findo experimento, a
esquerda revolucionária maoísta fez a seguinte síntese:
Um
partido, que pela ausência da direção revolucionária proletária no país,
golpeada profundamente e afundada pelo revisionismo, pôde galgar degrau a
degrau, como a coligação das forças mais rancorosas da pequena-burguesia,
sindicalistas treinados pelo IADESIL, grupos trotsquistas, guerrilheiros
arrependidos, aliança galvanizada pelos intelectuais financiados pela Fundação
Ford (CEBRAP), protegidos pelo véu clerical e abençoados pela Santa Igreja
Católica Apostólica Romana e seu papa Carol Voitila, pôde contar até mesmo com
um Lech Valessa da Silva. Para dar tintura ao discurso radicalóide e aval de
esquerda, o PT trouxe o selo do revisionismo cubano e suas teorias de
"frentes de esquerda", "revolução socialista de um só
golpe" e "luta armada" somente como meio de barganha para a
capitulação e enganar incautos. Este partido pôde fazer carreira rapidamente,
passando de temerários inimigos da "patronal" e do capitalismo,
"bolcheviques trotsquistas" e "perigosos castristas-guevaristas"
que a reação agitava em seus meios, aos mais conciliadores e descarados
defensores do capital. Já a partir das primeiras administrações municipais e
estaduais conquistas puderam por à prova de fato o que representavam, trazendo
à superfície sua verdadeira essência oportunista reacionária, que se achava
soterrada pelas frases ultra-revolucionárias e que hoje expõem sem o menor
pudor. De fato, um partido que granjeou apoio e credibilidade em amplas camadas
sociais através de uma oposição sistemática às políticas aplicadas no país, conquistou,
com o voto popular o topo da máquina de Estado, fundiu-se com ela, se
identifica com ela, torna-se ela própria. Pela primeira vez na história de
nosso país, forças políticas, que se opunham (ainda que somente em aparência)
ao Estado reacionário, conquista sua direção pelas vias definidas e permitidas
pelo próprio Estado em nome de promover reformas, que possam dar uma sobrevida
à esta maquinaria de opressão secular sobre nosso povo. Isto marca o fim de
todo um ciclo da luta de classe no país e o início de um outro e novo: o da
revolução proletária através da revolução de nova democracia.
Essa
reflexão faz sentido à luz de 2013: se a sobrevida da maquinaria de opressão
esgotou-se, tem sentido o contragolpe preventivo de 2016, a prisão de Lula (a
máquina prescinde, agora de reformas, nesse novo ciclo de luta de classes).
Lembremos
que, em 64, ninguém levantava a bandeira da intervenção militar. Surgiam as
bandeiras da democracia contra o comunismo, contra a corrupção e a subversão
etc. A intervenção militar foi negociada às escondidas com os militares
golpistas. Levantar a bandeira da intervenção militar, ou seja, do golpe
militar, é denunciar esse mesmo golpe militar. Levantar essa bandeira só foi
possível devido a um avanço absurdo do processo de colonização e alienação.
No
entanto, como poderia acontecer algo assim, se existe a Rede Globo, se existe
indústria cultural? A hegemonia, para Lênin, é sempre hegemonia de classe. Há hegemonia cultural da classe trabalhadora
entre 1964-69? E entre 1998-2018? Acreditamos que não.
O que jornalistas como Torquato Neto e Nelson Motta
chamaram de tropicalismo a partir da instalação de Hélio Oiticica, de Terra em
Transe de Glauber e da canção Tropicália de Caetano foi, no campo musical,
expressão da semana de 22 no campo da música popular.
Se a Semana de 22 afirmou o direito de pesquisa
estética, a atualização da intelectualidade e a estabilização de uma
consciência criadora nacional, o tropicalismo musical só realmente diverge
nesse último item. Nesse quesito, além de atualizar a música popular com as
conquistas de 22, ele se decidiu a violentar e desestabilizar a consciência
criadora nacional, afirmando o "som universal". Nesse sentido, ao
mesmo tempo em que atualizou a música popular com 22, o tropicalismo musical
rompeu com um dos princípios e se projetou para a pós-modernidade.
Lembremos que na Semana de 22 não houve música
popular, apenas erudita, com Villa-Lobos. A atualização veio, em parte, nos
anos 60, inspirada no movimento de atualização do cinema liderado por Glauber
Rocha, pois já havia acontecido com Noel Rosa, Orestes Barbosa, dentre outros,
além do próprio movimento de bossa nova nos anos 50. Os ingredientes da
tropicália já existiam nos anos 50 e
início dos 60: o Cinema Novo com Rio Quarenta Graus (Nelson Pereira dos
Santos), a bossa nova com João Gilberto e a bossa engajada de Sérgio Ricardo, o
neoconcretismo de Ferreira Gullar e Oiticica, a poesia concreta de Haroldo de Campos
(já inspirada por Oswald de Andrade). Na literatura, o poema Sujo do Gullar, o
Pessach a Travessia do Cony e o Quarup de Antonio Callado aconteceram ao mesmo
tempo do movimento, mostrando que a literatura estava totalmente de acordo com
os princípios citados acima: pesquisa estética, consciência criadora nacional,
atualização da intelectualidade.
Ao misturar bossa nova, rock and roll e poesia
concreta, traduzindo a mistura com sons e letras que misturavam marchinha de
carnaval com guitarra e orquestra erudita, músicas latinas sobre Che com
brincadeiras citando Nouvelle Vague e Cinema Novo, o tropicalismo musical
causou sensação por sintetizar muito do que vinha toda uma década antes,
apresentando tudo como a última novidade! Virou, então, referência até hoje não
ultrapassada, pois muitos supõem em sua absoluta originalidade.
Tudo isso estava no ar, mas o tropicalismo musical
colocou marchinhas com guitarra elétrica e roquinhos anarquistas em festivais
que deveriam ser para proteger a MPB e o público universitário do avanço do
rock nos meios de comunicação de massa, daí a reação negativa dos estudantes.
A polêmica que se seguiu turbinou a carreira de
Caetano e Gi, que viraram ícones de geração. Uma década depois, a indústria
cultural passou a pressionar pela superação da estética original do Cinema Novo
em prol da estética subroliudiana da Globo, obtendo adesões como a do
cinemanovista Cacá Diegues, que ainda em 1979 proclamou "um cinema
popular, sem ideologias". No transe que se seguiu, morreu Glauber Rocha,
poucos anos depois a Embrafilme.
Cacá Diegues direcionou a pressão contra o modelo
estatal e a estética nacional para um ataque genérico ao PCB e à esquerda.
Falava em dissidentes na URSS presos em hospícios, mas os dissidentes eram
gente como Zhores Medvedev, que escreveu um texto provando que Stálin era
continuador de Lênin, o que arrebentava com os fundamentos do namoro
eurocomunismo/URSS. Até hoje, Medvedev poderia ser considerado louco, por
defender essa tese, pela intelectualidade do mundo ocidental.
O assunto tropicalismo rende rios de tinta na
academia. O melhor analista, a meu ver, é o Marcelo Ridenti, da UNICAMP, que
observa que o tropicalismo musical é fruto do mesmo contexto do teatro
engajado, do cinema novo, mas é diferenciado. Também acho. Ele se lança muito
mais como afirmação de uma indústria cultural então nascente, acabando com os
festivais como resistência para a música nacional e popular. E o que a
indústria cultural queria era uma música mais afinada com o que era produzido
na matrix, tal como Beatles e Jimi Hendrix. Por isso Caetano e Gil foram esse
sucesso, cada vez maior, de mídia. É o prêmio da indústria.
A polêmica Schwarz X Caetano é desdobramento de
duas polêmicas anteriores:
Antonio Candido X Haroldo de Campos e Glauber Rocha
X Schwarz.
Haroldo de Campos rompeu com Antonio Candido por
causa do barroco baiano
Gregório de Matos, que não apareceu na história da
formação da literatura
brasileira do Candido.
Glauber Rocha começou a briga dele com o CEBRAP em
1977, quando respondeu a
um artigo de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo,
chamando o artigo de
"judeu, alemão, colonialesco". Para
Glauber, o ponto de vista de Schwarz não
era brasileiro. O que se pode notar é que Schwarz
dá primazia ao
tropicalismo musical. O tropicalismo na música foi
inspirado no movimento do
Cinema Novo e teve, nos anos 60 mesmo, muito mais
repercussão e sucesso do
que as músicas.
O artigo de Schwarz sobre o tropicalismo tem o
defeito de imaginar que
cineastas, músicos e diretores teatrais deveriam,
nos anos 60 mesmo, ter
levado mais a sério as análises pós-relatório de
Kruschev que fez o grupo de
leitura de O Capital na USP. No entanto, Glauber,
Zé Celso e Caetano não
davam a menor bola para o seminário de O Capital e
nem para o CEBRAP. O PCB
da época, sim.
O artigo de Milton Ohata na Revista Piauí serve
como uma espécie de apêndice da polêmica travada entre Schwarz e Caetano
recentemente.
No entanto, ele recoloca e agrava os mesmos
problemas, principalmente advindos da teorização de Schwarz.
O fato é que Roberto Schwarz e sua trajetória são
um enigma. Roberto, citando faceiro Brecht, Lênin Guevara e Marx, consegue
fazer carreira nos USA em plena Guerra Fria.
E no discurso, tanto de Roberto quanto de seu
seguidor Milton Ohata, ainda ecoa, em alguns pontos, o discurso dos vencedores
da Guerra Fria, como quando diz que as experiências socialistas foram
"catástrofes".
O que confirma minha hipótese sobre o artigo de
Schwarz sobre os anos 60: depois de fundado o CEBRAP, Roberto se apressa em escrever
a história dos anos 60 a partir de um prisma a seu favor, muito embora Glauber,
Zé Celso e Caetano ignorassem solenemente as abstrusas teorias desse grupo em
meados dos anos 60. A participação de Roberto Schwarz no PCB também me parece
ser sempre no sentido de inocular o veneno da explicação marxianista pelega e
traíra por todo o lado: entre artistas, entre partidos, estudantes, etc. E o
pior é que, no começo, os estudantes não
pegavam o recado de que o negócio é a torre de marfim abonada e muitas vezes
partiam para a luta armada, acreditando que o grupo marxianista estava é
propondo a morte do reformismo, enquanto estava propondo na verdade o relax do
novo liberalismo e a manutenção de um Marx domesticado, universitário,
"láite", manso.
O grande problema de Roberto é que ele deseja,
ávido, criticar em Caetano as pequenas diferenças que existem entre o músico e
ele, crítico. Mas Caetano despreza o crítico, a quem aparentemente lê pouco ou
com desprezo (tem preguiça?)
Já Roberto Schwarz é crítico e secretamente fã de
Caetano. Parece que ser o tropicalismo musical que o eletriza e estimula a
escrever de modo quase totalmente favorável a respeito de um grupo que, aliado
aos seus rivais Haroldo e Augusto de Campos, ele deveria hostilizar mais
duramente. Schwarz cita Caetano em um poema de Corações Veteranos. Em O Pai de
Família, o tropicalismo é quem esboça que as ideias estão fora do lugar no
Brasil. Para ele, se Gil canta formiplac e céu de anil, denunciando que o
Brasil ainda não tinha TV a cores nos anos 60, isso seria indicativo de que as
ideias estão fora do lugar no Brasil. Schwarz cita Caetano em Ideias Fora do
Lugar (há um artigo nesse blog sobre isso). Ao sair Verdade Tropical, Schwarz
afirmou que Caetano aceitava o comercialismo da música brasileira atual e ainda
satirizou a canção "how beautiful could a being be", de Caetano,
dizendo na Folha que "o cu da bimbi é o verdadeiro beautiful".
Assim, Schwarz é fanzoca de Caetano, que sempre que
possível o esnoba e assim leva farpas. Esse é o drama.
Cita-o em
Sequências Brasileiras, esboçando mais claramente sua intenção de ver no
tropicalismo o marxianismo social-democrata de seu grupo uspiano traduzido em
música. E agora, finalmente, quando o PSDB não mais esconde que, acuado, terá
que elaborar um discurso cada vez mais a favor da ditadura militar, quando
monarquistas, integralistas e conservadores religiosos fanáticos apoiam Serra
em termos histéricos totalmente tirados da Guerra Fria, agora Schwarz pode mais
tranquilamente criticar Caetano. Se o fizesse em 1997, talvez fosse recebido
como um ataque ao amigo FHC.
Eu queria dar por encerrada essa polêmica Schwarz X
Caetano, a propósito do lançamento de um livro de Roberto Schwarz, mas a
incrível repercussão da polêmica na web me assustou. A briga do tucapeta com o
petucano assumiu dimensões épicas no meio daquela que Marcos Augusto Gonçalves
bem definiu, não sem um certo sabor autobiográfico, como sendo a nossa
"buritsia".
Paulo Henrique Amorim, citado por Caetano como um
blog que ele não lê e acha ruim, chamou Caetano de camaleônico.
Os tucanos se aproveitaram da ocasião para uma
ofensiva contra Schwarz e PT, pois afinal são dias de revelação da
promiscuidade da tucaníssima Veja com o crime organizado, dias de Cachoeira:
Nelson Ascher requentou o velho tema da patrulha ideológica, chamando Schwarz
de justiceiro e policial; não menos arrogante e afoito, Euler Belém repetiu
besteiras como a acusação de jdanovismo e realismo socialismo (cai sempre bem
os babacas falarem sobre figuras do período Stálin, embora eles não saibam nada
sobre o assunto). Muitos outros professores, jornalistas e historiadores seguiram
nessa mesma trilha. Um deles, Jalder, comparou Verdade Tropical com os
clássicos livros de interpretação do Brasil como Gilberto Freyre.
E pensar que Glauber Rocha chamou o artigo de
Roberto Schwarz sobre o tropicalismo que saiu na Temps Modernes de "burrice sob a forma
de leis" na Veja de 77! E lembrar que o livro celebrado como já sendo um
clássico por um historiador já foi chamado de "calhamaço mal escrito que
dá no saco" pelo professor Gilberto Vasconcellos em 1997!
Seguindo
nessa trilha azul e amarela, os emplumados cronistas Francisco Bosco e Hermano
Viana e outros tomaram partido de Caetano em O Globo. Hermano pelo menos
observou que Schwarz tem muito em comum com Caetano, o mesmo estilo ambíguo,
barroco. E notou também a pompa vaidosa e arrogante e o lugar de poder de onde
fala Schwarz.
João Cezar
de Castro Rocha, também professor, resenhou o livro de Schwarz no Estadão,
fazendo as vezes de apresentador chique de todo esse circo. O grande acerto do
professor Castro Rocha é comparar Roberto Schwarz com Simão Bacamarte,
personagem do médico maluco O Alienista de Machado de Assis, que é alguém que
quer, com um simples princípio, resolver todos os problemas do mundo. Isso é
verdade, se pensarmos que Schwarz tem uma fixação em provar que as ideias estão
fora do lugar no Brasil e acaba colocando tudo nesse mesmo saco. O médico
maluco descobre no final que quem está fora do lugar e é maluco é ele. Não
espero que Schwarz seja capaz de tamanha lucidez...
No Martinha e Lucrécia, Schwarz, inspirado em
Gilberto Vasconcellos, percebe que Caetano é sacana, pratica a duplo jogo em
todos os aspectos, beneficiou-se do golpe da direita contra seus inimigos e
aponta isso com vocabulário chique, acadêmico. Isso o obceca porque o grupo de
Schwarz e Fernando Henrique também faz o mesmo jogo, com pequenas diferenças. É
o chamado narcisismo das pequenas diferenças.
Diga-se de passagem, Godard e Bunuel elogiaram o
Cinema Novo e Foucault e
Barthes estiveram em uma defesa de tese sobre esse
moviment
Não
há hegemonia, pois ela é sempre de classe e esse é o conceito que iremos
utilizar, mas podemos falar, sim em capital simbólico da esquerda.
Outro
ponto é a não-derrota da ditadura militar de 64. A ditadura militar não foi
derrotada, ela institucionalizou-se. Aí deciframos a charada: para poder
ocultar sua persistência, as instituições permitem o grito de vitória da
esquerda, bem como a circulação de seu capital simbólico.
Nos
anos Lula e Dilma Rousseff, o gasto do capital simbólico da esquerda é
consumado sob a forma de ocultamento do projeto neoliberal e da regressão
semicolonial.
A
política econômica de Lula, que continua Fernando Henrique Cardoso, pode ser
chamada de thatcherismo de face humana na melhor das hipóteses, ou, na pior, de
neoliberalismo com cesta básica para o povão.
A
trajetória de Fernando Henrique Cardoso, da cátedra ao poder, foi interpretada
pelo sociólogo Gilberto Vasconcellos em seu livro O Príncipe da Moeda.
Não surgiram explicações alternativas para essa trajetória.
De início, tínhamos a impressão de
que estávamos passando da social-democracia para o neoliberalismo num lento
processo, mas o que ocorreu foi justamente o contrário.
Durante
o governo PT, a direita acusava o partido de radical de esquerda, jogo que o
partido muito satisfatoriamente concordava em jogar, desejando com isso ocultar
sua verdadeira política entreguista, digna da “UDN operária”. Nunca desmentia
sua suposta radicalidade “comunista” e ainda fazia um barulho ainda maior nesse
sentido.
Consumido
o capital simbólico da esquerda, a militarização do estado pode ocorrer pela via
pacífica. Não há como não pensar que a ditadura militar nunca acabou, apenas
ficou adormecida, aguardando o momento para voltar quando fosse conveniente.
Tanto
que, quando ocorre o vagido da revolução brasileira em 2013, a direita
apressa-se em ganhar tempo depondo Dilma Rousseff pela via parlamentar, bem
como prendendo Lula em 2018. O embrião da revolução democrática é combatido sob
a forma de um contragolpe preventivo, a deposição de Dilma Rousseff pela via
parlamentar em 2016.
No
entanto, pensemos que, se não há hegemonia da classe trabalhadora, a questão
não desaparece. O que há, podemos supor, é a hegemonia dos pobres no mercado da
cultura. Essa hegemonia, sim, é objetiva e podemos falar dela. Nos anos 60 e
70, embora Chico Buarque e Caetano não vendessem, eram alvo da atenção dos
meios de comunicação de massa, enquanto artistas que vendiam muito mais, tais
como Valdick Soriano e Wando, tinham pouca publicidade e prestígio entre a
crítica, sofrendo ataques muito frequentes.
Entre
1980-1998, quem vende é que passa a ter publicidade e prestígio e a distorção
anterior é resolvida. A periferia desloca-se para o centro do mercado cultural.
É uma
situação absolutamente trágica ou farsesca? Estaríamos repetindo como tragédia
o que antes era farsa? Como, munidos de teoria avançada, teríamos retornado aos
mesmos equívocos novamente? O “Movimento da Negação da Negação”
explicou:
A
única explicação, nos parece, é a seguinte: não só a burocracia vê suas
condições de vida como vinculadas ao PT, mas também um setor social mais amplo,
não diretamente dependente do Estado, formado por pessoas que construíram suas
vidas, carreiras, reconhecimento e prestígio nas últimas décadas de
estabilidade política e econômica. Queira-se ou não, tenha-se consciência disso
ou não, tais décadas foram estáveis graças ao papel conciliador e traidor do PT
na luta de classes brasileira. No seio da estabilidade proporcionada pelo PT à
ordem do capital floresceu a pequena-burguesia brasileira, um segmento social
pequeno, mas não desprezível, pouco estável política e economicamente (pois
localizado entre a burguesia e operariado, daí suas oscilações, histeria e
confusão).
A
pequena-burguesia é formada de proletários melhor remunerados (profissionais
liberais, autônomos), pequenos empresários ou pessoas que vivem de renda. Dada
a sua condição objetiva — de pessoas não centralizadas pelo processo produtivo,
não forçadas a pensar em si mesmas como parte de uma categoria produtiva —,
seus membros se veem em geral como autônomos e livres. Essa característica, o
particularismo, ela compartilha com a burguesia, o que a torna propriamente a
pequena-burguesia.
Assim
como o “Lulinha”, a pequena-burguesia é adepta do “paz e amor”, ou seja, da
conciliação de classes (justamente por estar entre as duas grandes classes
sociais). O que ela mais odeia é a luta de classes, pois acentua sua
instabilidade e põe em risco seus projetos pessoais e planos pré-estabelecidos.
Ela gostaria que o mundo dos conflitos parasse, para que pudesse seguir em paz
em suas pesquisas, suas descobertas e inovações técnicas ou artísticas, em suas
salinhas, escritórios, laboratórios ou ateliês. Sua teoria social é uma colcha
de retalhos de vários sistemas de pensamento: se nutre do marxismo, da
dialética e de tradições revolucionárias do proletariado, mas também do
idealismo burguês e da lógica formal. Esse ecletismo — que ela sempre pensa dar
base a um novo sistema ou “anti-sistema” científico — expressa-se politicamente
ou no utopismo ou no reformismo. Marx e Engels (nas críticas a Proudhon ou a
Bakunin, na Crítica ao Programa de Gotha, nas cartas-circulares a Bebel,
Liebknecht e Bracke e em vários outros textos) mostraram como esse tipo de
teoria corresponde exatamente a esse setor social.
O
PT representa e sempre representou essa visão de mundo reformista e
pequeno-burguesa. Ele, por si (ou seja, apesar dos sindicatos), nunca foi um
partido operário, com programa operário, mas majoritariamente pequeno-burguês e
com programa pequeno-burguês. Como todo bom partido reformista e pequeno-burguês,
sua função é tirar a centralidade do que é central; apagar a contradição
fundamental existente na sociedade capitalista — a extração de mais-valia dos
operários pelos capitalistas — e sobrevalorizar o que não deve ser
sobrevalorizado. A fórmula é sempre a mesma: o problema central é abstraído em
nome de problemas secundários. É como se a questão da mais-valia, o surgimento
do capital, já estivesse resolvida e coubesse então reformar as condições de
vida, ampliar direitos, melhorar aspectos sócio-culturais, acabar com opressões
e o discurso de ódio, o “fascismo” do regime democrático-burguês, a alienação
da população pela mídia, a crise na “pedagogia”, e tantos outros inimigos
(dezenas ou centenas!) que ela descobre cotidianamente nas “teorias” que ela
produz prolixamente (MNN, 2021)
São
muito aterradores os processos que levaram a isso. Um é a regressão
semicolonial do país, com a desindustrialização e a volta do país que antecede
a Era Vargas. Voltamos a ser um país exportador de produtos primários. Outro,
que deu razão ao velho Stálin, é a social-democracia abrindo alas para o
fascismo.
Ao
contrário de Roberto Schwarz no artigo Cultura e Política 1964-69, em
2016, quando aponta o término desse ciclo, então o intelectual uspiano Schwarz manifestou-se
querendo a continuidade do experimento. Tal não estava presente no ensaio
anterior; o machadiano não apresentava o desejo de continuidade do projeto
“populista”. Antes havia sarcasmo quanto ao projeto derrubado em 64, agora quanto
ao projeto “populista” derrubado em 2016 há melancolia.
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