sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Cultura e Política 1998-2018


 

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

 

Introdução

 

“Estamos nas ruínas misturadas de um mundo”

 Oswald de Andrade, A Morta

 

            No Brasil de 2021 vivemos um cenário dantesco. Desastres ambientais como Mariana e Brumadinho envenenam rios e contaminam populações. No Nordeste, um enorme vazamento de óleo sujou as praias, prejudica pescadores, mata a fauna marinha, mas ninguém é indenizado. A culpa, que deveria ser investigada no tocante às multinacionais que exploram o pré-sal, é atribuída a navios da Venezuela de forma quase unânime na imprensa, fazendo coro com a explicação estapafúrdia apresentada pelo governo federal. Enormes focos de queimada, originados do desastre climático, vitimam vinte e cinco por cento do Pantanal. A Amazônia sofre com secas e os povos nativos são submetidos a um cerco nunca dantes conhecido.

            Para pintar o quadro com cores ainda mais sombrias, conjugam-se a crise hídrica, a crise econômica mundial desde 2008 e a pandemia de coronavírus, diante da qual o governo federal, tomado por negacionistas, não tomou atitudes, redundando mais de 500 000 mortos.

            Num ensaio anterior datado de 1998, tratamos de Cultura e Política 1980-1998, trazendo um equívoco, a partir da abertura, pensando que Lula já tinha esgotado seu ciclo de presidente. O conflitivo período entre 1969-1980 não foi tematizado. Consideramos tal ciclo uma mera extensão do período anterior, mas tal não é, portanto há espaço aí para um outro ensaio. Quanto a Lula, era justamente o contrário. Esse ciclo aconteceu nesses vinte anos. Sendo assim, o equívoco dos contemporâneos é mais vivo.

            A Queda do Muro de Berlim reforçou o processo anterior de desmarxistização das Ciências Humanas, Artes e Letras. A mente de alguém como Lula mostra-se profundamente imersa no sistema, o que faz dele, mesmo quando pretende ser a voz da classe trabalhadora, apenas mais um representante da ideologia burguesa.

            Relendo aquele ensaio tantos anos depois, notamos o seguinte: o PT e seus aliados assumiram o projeto anterior, varguista, de conciliação entre capital e trabalho. No lugar da tão criticada aliança entre PCB e PTB, entraram o PT e PMDB. Lula tomou o papel de Vargas, tanto em termos de projeto reformista quanto no imaginário. E, de certa forma, repetiu o drama anterior de uma forma piorada: evidentemente, ele fracassou no papel de “pai dos pobres, mãe dos ricos”, dando origem a uma volta dos militares ao poder, desta vez sem tanque na rua (embora eles estejam desfilando diante do parlamento), pela via parlamentar.

            E, repetindo do drama tematizado por Roberto Schwarz no clássico artigo de 1969, em 2018, entram no poder, pela via eleitoral, os militares de uma linha semelhante a que chegou ao poder em 64, o que nos traz a assustadora ideia de que a história gira em círculos. Agora não voltam mais com tanque na rua, mas pela via do voto.

            Se antes os militares tinham ganho pela violência, em 64 e 68, agora dão a volta por cima e ganham pela via eleitoral. Conseguem que as pessoas repitam sua visão de mundo, coisa que não tinham a menor ilusão que a juventude dos anos 60 iria aceitar, daí as prisões e torturas, por exemplo.

            Se no final da ditadura militar houve uma vitória simbólica da esquerda, entre 1998-2018, finalmente, o capital simbólico da esquerda, acumulado entre 1964-1998, é consumido em meio ao governo Lula e também no de Dilma Rousseff.

            O ensaio de Schwarz, que trata de uma hegemonia de esquerda em meio a um governo de direita, introduz essa temática: a direita sempre fala de uma suposta hegemonia cultural da esquerda, o que a incomoda profundamente. A direita, ao praticar seu terrorismo cultural, alega estar apenas acossada, defendendo-se do terrorismo cultural da esquerda, daí a repetição insistente que ela faz da ideia de hegemonia cultural dos adversários. O fato que ela teme, na realidade, é a “invasão de baixo para cima por parte dos pobres”, ou melhor, o fato de que não há mais como ignorar os pobres em termos de mercado cultural, o que gera constrangimentos para a direita, mas é fato irreversível.

            Aliado a isso, existia um enorme problema para a direita ao final da ditadura militar: desde 64, ela não tinha militância, enquanto o PT tinha uma militância, o que do ponto de vista da dominação é um constrangimento. Entre 1998-2018, a direita conseguiu contornar esse problema, mobilizando principalmente a classe média insatisfeita, chamada “aberração cognitiva”. É um Brasil de aberrações cognitivas que o PT alegou querer: um Brasil de classe média.

            A classe média tende sempre a desaparecer no capitalismo, a proletarizar-se, daí que essa classe busca sempre girar a roda da história para trás. Essa classe viu os pobres aproximando-se e os ricos afastando-se, no decorrer do governo Lula, o que gerou o pavor da proletarização iminente. A tendência é sempre o esmagamento posterior, mas há um momento de “Baile da Ilha Fiscal”. O baile da Ilha Fiscal das ideias burguesas brasileiras foi o final da era Lula e Dilma, tanto que até mesmo a ideia da monarquia voltou à baila. Findo experimento, a esquerda revolucionária maoísta fez a seguinte síntese:

 

Um partido, que pela ausência da direção revolucionária proletária no país, golpeada profundamente e afundada pelo revisionismo, pôde galgar degrau a degrau, como a coligação das forças mais rancorosas da pequena-burguesia, sindicalistas treinados pelo IADESIL, grupos trotsquistas, guerrilheiros arrependidos, aliança galvanizada pelos intelectuais financiados pela Fundação Ford (CEBRAP), protegidos pelo véu clerical e abençoados pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana e seu papa Carol Voitila, pôde contar até mesmo com um Lech Valessa da Silva. Para dar tintura ao discurso radicalóide e aval de esquerda, o PT trouxe o selo do revisionismo cubano e suas teorias de "frentes de esquerda", "revolução socialista de um só golpe" e "luta armada" somente como meio de barganha para a capitulação e enganar incautos. Este partido pôde fazer carreira rapidamente, passando de temerários inimigos da "patronal" e do capitalismo, "bolcheviques trotsquistas" e "perigosos castristas-guevaristas" que a reação agitava em seus meios, aos mais conciliadores e descarados defensores do capital. Já a partir das primeiras administrações municipais e estaduais conquistas puderam por à prova de fato o que representavam, trazendo à superfície sua verdadeira essência oportunista reacionária, que se achava soterrada pelas frases ultra-revolucionárias e que hoje expõem sem o menor pudor. De fato, um partido que granjeou apoio e credibilidade em amplas camadas sociais através de uma oposição sistemática às políticas aplicadas no país, conquistou, com o voto popular o topo da máquina de Estado, fundiu-se com ela, se identifica com ela, torna-se ela própria. Pela primeira vez na história de nosso país, forças políticas, que se opunham (ainda que somente em aparência) ao Estado reacionário, conquista sua direção pelas vias definidas e permitidas pelo próprio Estado em nome de promover reformas, que possam dar uma sobrevida à esta maquinaria de opressão secular sobre nosso povo. Isto marca o fim de todo um ciclo da luta de classe no país e o início de um outro e novo: o da revolução proletária através da revolução de nova democracia.

 

            Essa reflexão faz sentido à luz de 2013: se a sobrevida da maquinaria de opressão esgotou-se, tem sentido o contragolpe preventivo de 2016, a prisão de Lula (a máquina prescinde, agora de reformas, nesse novo ciclo de luta de classes).

            Lembremos que, em 64, ninguém levantava a bandeira da intervenção militar. Surgiam as bandeiras da democracia contra o comunismo, contra a corrupção e a subversão etc. A intervenção militar foi negociada às escondidas com os militares golpistas. Levantar a bandeira da intervenção militar, ou seja, do golpe militar, é denunciar esse mesmo golpe militar. Levantar essa bandeira só foi possível devido a um avanço absurdo do processo de colonização e alienação.

            No entanto, como poderia acontecer algo assim, se existe a Rede Globo, se existe indústria cultural? A hegemonia, para Lênin, é sempre hegemonia de classe.  Há hegemonia cultural da classe trabalhadora entre 1964-69? E entre 1998-2018? Acreditamos que não.

O que jornalistas como Torquato Neto e Nelson Motta chamaram de tropicalismo a partir da instalação de Hélio Oiticica, de Terra em Transe de Glauber e da canção Tropicália de Caetano foi, no campo musical, expressão da semana de 22 no campo da música popular.

Se a Semana de 22 afirmou o direito de pesquisa estética, a atualização da intelectualidade e a estabilização de uma consciência criadora nacional, o tropicalismo musical só realmente diverge nesse último item. Nesse quesito, além de atualizar a música popular com as conquistas de 22, ele se decidiu a violentar e desestabilizar a consciência criadora nacional, afirmando o "som universal". Nesse sentido, ao mesmo tempo em que atualizou a música popular com 22, o tropicalismo musical rompeu com um dos princípios e se projetou para a pós-modernidade.

Lembremos que na Semana de 22 não houve música popular, apenas erudita, com Villa-Lobos. A atualização veio, em parte, nos anos 60, inspirada no movimento de atualização do cinema liderado por Glauber Rocha, pois já havia acontecido com Noel Rosa, Orestes Barbosa, dentre outros, além do próprio movimento de bossa nova nos anos 50. Os ingredientes da tropicália já existiam nos anos 50  e início dos 60: o Cinema Novo com Rio Quarenta Graus (Nelson Pereira dos Santos), a bossa nova com João Gilberto e a bossa engajada de Sérgio Ricardo, o neoconcretismo de Ferreira Gullar e Oiticica, a poesia concreta de Haroldo de Campos (já inspirada por Oswald de Andrade). Na literatura, o poema Sujo do Gullar, o Pessach a Travessia do Cony e o Quarup de Antonio Callado aconteceram ao mesmo tempo do movimento, mostrando que a literatura estava totalmente de acordo com os princípios citados acima: pesquisa estética, consciência criadora nacional, atualização da intelectualidade.

Ao misturar bossa nova, rock and roll e poesia concreta, traduzindo a mistura com sons e letras que misturavam marchinha de carnaval com guitarra e orquestra erudita, músicas latinas sobre Che com brincadeiras citando Nouvelle Vague e Cinema Novo, o tropicalismo musical causou sensação por sintetizar muito do que vinha toda uma década antes, apresentando tudo como a última novidade! Virou, então, referência até hoje não ultrapassada, pois muitos supõem em sua absoluta originalidade.

Tudo isso estava no ar, mas o tropicalismo musical colocou marchinhas com guitarra elétrica e roquinhos anarquistas em festivais que deveriam ser para proteger a MPB e o público universitário do avanço do rock nos meios de comunicação de massa, daí a reação negativa dos estudantes.

A polêmica que se seguiu turbinou a carreira de Caetano e Gi, que viraram ícones de geração. Uma década depois, a indústria cultural passou a pressionar pela superação da estética original do Cinema Novo em prol da estética subroliudiana da Globo, obtendo adesões como a do cinemanovista Cacá Diegues, que ainda em 1979 proclamou "um cinema popular, sem ideologias". No transe que se seguiu, morreu Glauber Rocha, poucos anos depois a Embrafilme.

Cacá Diegues direcionou a pressão contra o modelo estatal e a estética nacional para um ataque genérico ao PCB e à esquerda. Falava em dissidentes na URSS presos em hospícios, mas os dissidentes eram gente como Zhores Medvedev, que escreveu um texto provando que Stálin era continuador de Lênin, o que arrebentava com os fundamentos do namoro eurocomunismo/URSS. Até hoje, Medvedev poderia ser considerado louco, por defender essa tese, pela intelectualidade do mundo ocidental.

O assunto tropicalismo rende rios de tinta na academia. O melhor analista, a meu ver, é o Marcelo Ridenti, da UNICAMP, que observa que o tropicalismo musical é fruto do mesmo contexto do teatro engajado, do cinema novo, mas é diferenciado. Também acho. Ele se lança muito mais como afirmação de uma indústria cultural então nascente, acabando com os festivais como resistência para a música nacional e popular. E o que a indústria cultural queria era uma música mais afinada com o que era produzido na matrix, tal como Beatles e Jimi Hendrix. Por isso Caetano e Gil foram esse sucesso, cada vez maior, de mídia. É o prêmio da indústria.

A polêmica Schwarz X Caetano é desdobramento de duas polêmicas anteriores:

Antonio Candido X Haroldo de Campos e Glauber Rocha X Schwarz.

Haroldo de Campos rompeu com Antonio Candido por causa do barroco baiano

Gregório de Matos, que não apareceu na história da formação da literatura

brasileira do Candido.

 

Glauber Rocha começou a briga dele com o CEBRAP em 1977, quando respondeu a

um artigo de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo, chamando o artigo de

"judeu, alemão, colonialesco". Para Glauber, o ponto de vista de Schwarz não

era brasileiro. O que se pode notar é que Schwarz dá primazia ao

tropicalismo musical. O tropicalismo na música foi inspirado no movimento do

Cinema Novo e teve, nos anos 60 mesmo, muito mais repercussão e sucesso do

que as músicas.

 

O artigo de Schwarz sobre o tropicalismo tem o defeito de imaginar que

cineastas, músicos e diretores teatrais deveriam, nos anos 60 mesmo, ter

levado mais a sério as análises pós-relatório de Kruschev que fez o grupo de

leitura de O Capital na USP. No entanto, Glauber, Zé Celso e Caetano não

davam a menor bola para o seminário de O Capital e nem para o CEBRAP. O PCB

da época, sim.

O artigo de Milton Ohata na Revista Piauí serve como uma espécie de apêndice da polêmica travada entre Schwarz e Caetano recentemente.

 

No entanto, ele recoloca e agrava os mesmos problemas, principalmente advindos da teorização de Schwarz.

 

O fato é que Roberto Schwarz e sua trajetória são um enigma. Roberto, citando faceiro Brecht, Lênin Guevara e Marx, consegue fazer carreira nos USA em plena Guerra Fria.

 

E no discurso, tanto de Roberto quanto de seu seguidor Milton Ohata, ainda ecoa, em alguns pontos, o discurso dos vencedores da Guerra Fria, como quando diz que as experiências socialistas foram "catástrofes".

 

O que confirma minha hipótese sobre o artigo de Schwarz sobre os anos 60: depois de fundado o CEBRAP, Roberto se apressa em escrever a história dos anos 60 a partir de um prisma a seu favor, muito embora Glauber, Zé Celso e Caetano ignorassem solenemente as abstrusas teorias desse grupo em meados dos anos 60. A participação de Roberto Schwarz no PCB também me parece ser sempre no sentido de inocular o veneno da explicação marxianista pelega e traíra por todo o lado: entre artistas, entre partidos, estudantes, etc. E o pior é que, no começo, os estudantes não  pegavam o recado de que o negócio é a torre de marfim abonada e muitas vezes partiam para a luta armada, acreditando que o grupo marxianista estava é propondo a morte do reformismo, enquanto estava propondo na verdade o relax do novo liberalismo e a manutenção de um Marx domesticado, universitário, "láite", manso.

 

O grande problema de Roberto é que ele deseja, ávido, criticar em Caetano as pequenas diferenças que existem entre o músico e ele, crítico. Mas Caetano despreza o crítico, a quem aparentemente lê pouco ou com desprezo (tem preguiça?)

 

Já Roberto Schwarz é crítico e secretamente fã de Caetano. Parece que ser o tropicalismo musical que o eletriza e estimula a escrever de modo quase totalmente favorável a respeito de um grupo que, aliado aos seus rivais Haroldo e Augusto de Campos, ele deveria hostilizar mais duramente. Schwarz cita Caetano em um poema de Corações Veteranos. Em O Pai de Família, o tropicalismo é quem esboça que as ideias estão fora do lugar no Brasil. Para ele, se Gil canta formiplac e céu de anil, denunciando que o Brasil ainda não tinha TV a cores nos anos 60, isso seria indicativo de que as ideias estão fora do lugar no Brasil. Schwarz cita Caetano em Ideias Fora do Lugar (há um artigo nesse blog sobre isso). Ao sair Verdade Tropical, Schwarz afirmou que Caetano aceitava o comercialismo da música brasileira atual e ainda satirizou a canção "how beautiful could a being be", de Caetano, dizendo na Folha que "o cu da bimbi é o verdadeiro beautiful".

 

Assim, Schwarz é fanzoca de Caetano, que sempre que possível o esnoba e assim leva farpas. Esse é o drama.

 

 Cita-o em Sequências Brasileiras, esboçando mais claramente sua intenção de ver no tropicalismo o marxianismo social-democrata de seu grupo uspiano traduzido em música. E agora, finalmente, quando o PSDB não mais esconde que, acuado, terá que elaborar um discurso cada vez mais a favor da ditadura militar, quando monarquistas, integralistas e conservadores religiosos fanáticos apoiam Serra em termos histéricos totalmente tirados da Guerra Fria, agora Schwarz pode mais tranquilamente criticar Caetano. Se o fizesse em 1997, talvez fosse recebido como um ataque ao amigo FHC.

 

Eu queria dar por encerrada essa polêmica Schwarz X Caetano, a propósito do lançamento de um livro de Roberto Schwarz, mas a incrível repercussão da polêmica na web me assustou. A briga do tucapeta com o petucano assumiu dimensões épicas no meio daquela que Marcos Augusto Gonçalves bem definiu, não sem um certo sabor autobiográfico, como sendo a nossa "buritsia".

 

Paulo Henrique Amorim, citado por Caetano como um blog que ele não lê e acha ruim, chamou Caetano de camaleônico.

 

Os tucanos se aproveitaram da ocasião para uma ofensiva contra Schwarz e PT, pois afinal são dias de revelação da promiscuidade da tucaníssima Veja com o crime organizado, dias de Cachoeira: Nelson Ascher requentou o velho tema da patrulha ideológica, chamando Schwarz de justiceiro e policial; não menos arrogante e afoito, Euler Belém repetiu besteiras como a acusação de jdanovismo e realismo socialismo (cai sempre bem os babacas falarem sobre figuras do período Stálin, embora eles não saibam nada sobre o assunto). Muitos outros professores, jornalistas e historiadores seguiram nessa mesma trilha. Um deles, Jalder, comparou Verdade Tropical com os clássicos livros de interpretação do Brasil como Gilberto Freyre.

 

E pensar que Glauber Rocha chamou o artigo de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo que saiu na  Temps Modernes de "burrice sob a forma de leis" na Veja de 77! E lembrar que o livro celebrado como já sendo um clássico por um historiador já foi chamado de "calhamaço mal escrito que dá no saco" pelo professor Gilberto Vasconcellos em 1997!

 

 Seguindo nessa trilha azul e amarela, os emplumados cronistas Francisco Bosco e Hermano Viana e outros tomaram partido de Caetano em O Globo. Hermano pelo menos observou que Schwarz tem muito em comum com Caetano, o mesmo estilo ambíguo, barroco. E notou também a pompa vaidosa e arrogante e o lugar de poder de onde fala Schwarz.

 João Cezar de Castro Rocha, também professor, resenhou o livro de Schwarz no Estadão, fazendo as vezes de apresentador chique de todo esse circo. O grande acerto do professor Castro Rocha é comparar Roberto Schwarz com Simão Bacamarte, personagem do médico maluco O Alienista de Machado de Assis, que é alguém que quer, com um simples princípio, resolver todos os problemas do mundo. Isso é verdade, se pensarmos que Schwarz tem uma fixação em provar que as ideias estão fora do lugar no Brasil e acaba colocando tudo nesse mesmo saco. O médico maluco descobre no final que quem está fora do lugar e é maluco é ele. Não espero que Schwarz seja capaz de tamanha lucidez...

No Martinha e Lucrécia, Schwarz, inspirado em Gilberto Vasconcellos, percebe que Caetano é sacana, pratica a duplo jogo em todos os aspectos, beneficiou-se do golpe da direita contra seus inimigos e aponta isso com vocabulário chique, acadêmico. Isso o obceca porque o grupo de Schwarz e Fernando Henrique também faz o mesmo jogo, com pequenas diferenças. É o chamado narcisismo das pequenas diferenças.

Diga-se de passagem, Godard e Bunuel elogiaram o Cinema Novo e Foucault e

Barthes estiveram em uma defesa de tese sobre esse moviment

            Não há hegemonia, pois ela é sempre de classe e esse é o conceito que iremos utilizar, mas podemos falar, sim em capital simbólico da esquerda.

            Outro ponto é a não-derrota da ditadura militar de 64. A ditadura militar não foi derrotada, ela institucionalizou-se. Aí deciframos a charada: para poder ocultar sua persistência, as instituições permitem o grito de vitória da esquerda, bem como a circulação de seu capital simbólico.

            Nos anos Lula e Dilma Rousseff, o gasto do capital simbólico da esquerda é consumado sob a forma de ocultamento do projeto neoliberal e da regressão semicolonial.

            A política econômica de Lula, que continua Fernando Henrique Cardoso, pode ser chamada de thatcherismo de face humana na melhor das hipóteses, ou, na pior, de neoliberalismo com cesta básica para o povão.

            A trajetória de Fernando Henrique Cardoso, da cátedra ao poder, foi interpretada pelo sociólogo Gilberto Vasconcellos em seu livro O Príncipe da Moeda. Não surgiram explicações alternativas para essa trajetória.

            De início, tínhamos a impressão de que estávamos passando da social-democracia para o neoliberalismo num lento processo, mas o que ocorreu foi justamente o contrário.

 

            Durante o governo PT, a direita acusava o partido de radical de esquerda, jogo que o partido muito satisfatoriamente concordava em jogar, desejando com isso ocultar sua verdadeira política entreguista, digna da “UDN operária”. Nunca desmentia sua suposta radicalidade “comunista” e ainda fazia um barulho ainda maior nesse sentido.

            Consumido o capital simbólico da esquerda, a militarização do estado pode ocorrer pela via pacífica. Não há como não pensar que a ditadura militar nunca acabou, apenas ficou adormecida, aguardando o momento para voltar quando fosse conveniente.

            Tanto que, quando ocorre o vagido da revolução brasileira em 2013, a direita apressa-se em ganhar tempo depondo Dilma Rousseff pela via parlamentar, bem como prendendo Lula em 2018. O embrião da revolução democrática é combatido sob a forma de um contragolpe preventivo, a deposição de Dilma Rousseff pela via parlamentar em 2016.

            No entanto, pensemos que, se não há hegemonia da classe trabalhadora, a questão não desaparece. O que há, podemos supor, é a hegemonia dos pobres no mercado da cultura. Essa hegemonia, sim, é objetiva e podemos falar dela. Nos anos 60 e 70, embora Chico Buarque e Caetano não vendessem, eram alvo da atenção dos meios de comunicação de massa, enquanto artistas que vendiam muito mais, tais como Valdick Soriano e Wando, tinham pouca publicidade e prestígio entre a crítica, sofrendo ataques muito frequentes.

            Entre 1980-1998, quem vende é que passa a ter publicidade e prestígio e a distorção anterior é resolvida. A periferia desloca-se para o centro do mercado cultural.

 É uma situação absolutamente trágica ou farsesca? Estaríamos repetindo como tragédia o que antes era farsa? Como, munidos de teoria avançada, teríamos retornado aos mesmos equívocos novamente? O “Movimento da Negação da Negação” explicou:

 

A única explicação, nos parece, é a seguinte: não só a burocracia vê suas condições de vida como vinculadas ao PT, mas também um setor social mais amplo, não diretamente dependente do Estado, formado por pessoas que construíram suas vidas, carreiras, reconhecimento e prestígio nas últimas décadas de estabilidade política e econômica. Queira-se ou não, tenha-se consciência disso ou não, tais décadas foram estáveis graças ao papel conciliador e traidor do PT na luta de classes brasileira. No seio da estabilidade proporcionada pelo PT à ordem do capital floresceu a pequena-burguesia brasileira, um segmento social pequeno, mas não desprezível, pouco estável política e economicamente (pois localizado entre a burguesia e operariado, daí suas oscilações, histeria e confusão).

A pequena-burguesia é formada de proletários melhor remunerados (profissionais liberais, autônomos), pequenos empresários ou pessoas que vivem de renda. Dada a sua condição objetiva — de pessoas não centralizadas pelo processo produtivo, não forçadas a pensar em si mesmas como parte de uma categoria produtiva —, seus membros se veem em geral como autônomos e livres. Essa característica, o particularismo, ela compartilha com a burguesia, o que a torna propriamente a pequena-burguesia.

Assim como o “Lulinha”, a pequena-burguesia é adepta do “paz e amor”, ou seja, da conciliação de classes (justamente por estar entre as duas grandes classes sociais). O que ela mais odeia é a luta de classes, pois acentua sua instabilidade e põe em risco seus projetos pessoais e planos pré-estabelecidos. Ela gostaria que o mundo dos conflitos parasse, para que pudesse seguir em paz em suas pesquisas, suas descobertas e inovações técnicas ou artísticas, em suas salinhas, escritórios, laboratórios ou ateliês. Sua teoria social é uma colcha de retalhos de vários sistemas de pensamento: se nutre do marxismo, da dialética e de tradições revolucionárias do proletariado, mas também do idealismo burguês e da lógica formal. Esse ecletismo — que ela sempre pensa dar base a um novo sistema ou “anti-sistema” científico — expressa-se politicamente ou no utopismo ou no reformismo. Marx e Engels (nas críticas a Proudhon ou a Bakunin, na Crítica ao Programa de Gotha, nas cartas-circulares a Bebel, Liebknecht e Bracke e em vários outros textos) mostraram como esse tipo de teoria corresponde exatamente a esse setor social.

O PT representa e sempre representou essa visão de mundo reformista e pequeno-burguesa. Ele, por si (ou seja, apesar dos sindicatos), nunca foi um partido operário, com programa operário, mas majoritariamente pequeno-burguês e com programa pequeno-burguês. Como todo bom partido reformista e pequeno-burguês, sua função é tirar a centralidade do que é central; apagar a contradição fundamental existente na sociedade capitalista — a extração de mais-valia dos operários pelos capitalistas — e sobrevalorizar o que não deve ser sobrevalorizado. A fórmula é sempre a mesma: o problema central é abstraído em nome de problemas secundários. É como se a questão da mais-valia, o surgimento do capital, já estivesse resolvida e coubesse então reformar as condições de vida, ampliar direitos, melhorar aspectos sócio-culturais, acabar com opressões e o discurso de ódio, o “fascismo” do regime democrático-burguês, a alienação da população pela mídia, a crise na “pedagogia”, e tantos outros inimigos (dezenas ou centenas!) que ela descobre cotidianamente nas “teorias” que ela produz prolixamente (MNN, 2021)

 

            São muito aterradores os processos que levaram a isso. Um é a regressão semicolonial do país, com a desindustrialização e a volta do país que antecede a Era Vargas. Voltamos a ser um país exportador de produtos primários. Outro, que deu razão ao velho Stálin, é a social-democracia abrindo alas para o fascismo.

            Ao contrário de Roberto Schwarz no artigo Cultura e Política 1964-69, em 2016, quando aponta o término desse ciclo, então o intelectual uspiano Schwarz manifestou-se querendo a continuidade do experimento. Tal não estava presente no ensaio anterior; o machadiano não apresentava o desejo de continuidade do projeto “populista”. Antes havia sarcasmo quanto ao projeto derrubado em 64, agora quanto ao projeto “populista” derrubado em 2016 há melancolia.

 

 

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