Em
dezembro de 2002 fui a uma peça de teatro infantil aqui em Bom Despacho,
interior de Minas. A peça, de autoria do professor Júnior Souza e chamava-se De
Quem É Esse Reino. Porém, não pretendo fazer quaisquer observações estéticas a
respeito da obra, tarefa que deixo para um entendedor ou crítico especializado.
O que me interessa aqui é um insuspeito elo que verifico existir, entre o
cenário político nacional e aquela peça teatral.
De
Quem É Esse Reino tratou das relações de poder num reino imaginário, a
Sorbônia. Num dado momento ficava claro que a Sorbônia era o espelho do Brasil.
Neste reino, que nos fazia lembrar aquele da novela Que Rei Sou Eu (comentada
posteriormente pelo sociólogo Gilberto Vasconcellos como sendo uma novela
favorável a Collor), existia uma trama para levar uma serviçal do palácio
(negra e acima de seu peso ideal) ao trono, aproveitando-se da velhice da
rainha Dinorah. A serviçal (operária?) conseguia, após alguns ardis de
“Malvina”, sua colaboradora, chegar ao poder, fazendo-se passar por homem
(insinuando o tema do travestismo). O verdadeiro príncipe estava retido por
asseclas dos usurpadores. A “serviçal”, uma vez no poder, cometeu a gafe de
tentar falar em línguas estrangeiras sem saber: “Murchas graxas”, arranhou em portunhol.
A seguir, a “ex-operária” expôs seu programa de governo, explicitamente
cortando os direitos dos “serviçais”, e, pelo que me lembro, falou em cortar o
décimo terceiro salário, etc. Logo sua “corte” se irritou com os descaminhos do
príncipe gritalhão. Enquanto isso, o príncipe herdeiro se libertou daqueles que
estavam em seu caminho e veio salvar o reino das mãos da plebe, retomando a
linhagem nobre. E a peça se encerrou com a serviçal voltando a servir no
palácio.
Pois
então: o governo Lula, agora em andamento, lembra a passagem que comentei acima
sobre a pessoa que, vinda do povo, ascende ao poder e se volta contra aqueles
de sua classe de origem. Confirmei, com Lula, não é só o pobre que entende o
pobre, não é o só o negro que entende o negro, não é só o gay que entende o
gay. Neste governo, a classe trabalhadora, iludida para pensar que chegou ao
poder com Lula, está numa “aliança interclassista” que só faz aprofundar seu
jugo, ganhando mais exploração e mais ilusão – e só.
E, em
termos de alianças interclassistas, essa que o PT agora fez é muito pior do que
aquela que fez o partidão (PCB) com Vargas e Adhemar de Barros no tempo de
Stálin, e que foi motivo da saída de muitos intelectuais do partido comunista.
Aquela tinha algum lastro na realidade, e foi melhor discutida em sua
teorização. A finalidade era reformar o capitalismo no Brasil, encerrando a
fase colonial ou semi-colonial; nessa fase, segundo Stálin, a burguesia se
cindiria em burguesia associada com o imperialismo e outra mitológica “burguesia
nacional progressista”. Um exemplo: Apesar de fraco nos momentos de decisão e
outros defeitos, João Goulart, enquanto ministro do trabalho de Vargas, deu
aumento de cem por cento para os trabalhadores. Então esse homem não era homem
de esquerda? Era “a última lava do vulcão varguista?”, como disse Glauber
Rocha? Será que um dia veremos Jacques Wagner dando um aumento desse?
Um
dado que me deixa perplexo: o partido que carrega a herança de Vargas, o PDT,
está no poder junto com Lula. Penso que o interesse deles é a sobrevivência
política, além do apetite por cargos e por poder. Quando Lula chegou ao poder,
e até um pouco antes, um historiador respeitado como José Murilo de Carvalho
escreveu a sério comparando Lula a Getúlio, de “populista” e “pai dos pobres”.
Porém, Lula já deu sinais de anti-varguismo explícito em inúmeras
oportunidades, a partir do início de sua carreira, em que dizia que “a CLT é o
AI-5 dos trabalhadores”. Numa reportagem na Folha de São Paulo, recentemente,
ele se posicionou a respeito da CLT. Luiz Inácio, como ultimamente tem agido e
falado, não é nem totalmente nem totalmente a favor. Agora ele discorda de
algumas coisas na CLT e concorda com outras. Parece uma atitude ponderada, mas
não é. Penso que essa é uma das mais curiosas características de seu discurso
atual. O que o governo encaminha, sem buscar tornar consensual entre as
centrais sindicais, é a retirada (e não a ampliação) dos direitos.
E,
como comecei a falar de cultura (e não irei falar sobre Gil, a quem José Ramos
Tinhorão acusou de parvenu e arrivista), noto também a tendência para a “falsa
ponderação” mais do que evidente quando Lula se encontrou com o pessoal do meio
artístico recentemente, para assistir ao filme Amarelo Manga. Lula “ponderou”
que não basta só ficar xingando [a hegemonia norte-americana] e também é
preciso ter um produto competitivo”. Por que essa é uma falsa ponderação? Com
essa fala, Lula se desincumbe, ele que seria o responsável por ajudar a
viabilizar essa “arte industrial” que é cinema, e atira a responsabilidade
sobre os artistas. E, a respeito do “produto competitivo”, o presidente não
detêm conhecimento suficiente para ponderar. O filme brasileiro citado por ele
como referência é “Sinhá Moça”, de 1953 e outras produções da Vera Cruz. Ora, vejamos.
O homem que “compreendeu o Brasil” segundo um professor como Paulo Ghiraldelli,
tem como sua referência cinematográfica a chanchada. Ao contrário do outro “pai
dos pobres”, personagem suicida e trágico, esse que nos preside agora é
gordinho e falastrão, vivendo uma gozada chanchada da vida real num país que
produz menos filmes do que a Argentina.
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