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terça-feira, 14 de outubro de 2008

Arquivo Morto

ARQUIVO MORTO


Provavelmente as imagens eram de um feriado prolongado, mas não estava bem certo. A impressão que dava é que tinham passado uma borracha ou um ferro de roupa em cima das cenas. Corpos e vozes distorcidos ao irreconhecível. Minha mãe com voz do meu pai e vice-versa. Minha filha, com seus quatro anos e morrendo de medo de bicho-papão, falava como um deles enquanto brincava com um Lango-Lango verde e outro abóbora. A reunião de família estava mais para um parque de diversões com aqueles espelhos que deformam gente. Tinha feito a gravação e guardado, nunca mais reproduzi. Vai ver a falta de uso fez tudo aquilo.

Do not touch this tape inside. Desobedeci a recomendação e abri o compartimento, pra ver se salvava o estrago. Rebobinei, depois dei avanço rápido, coloquei na parte do meio da gravação, talvez mais pra frente houvesse algum registro preservado. Mensagem de ajuste de tracking. As cores sumidas, faixas de chuvisco no meio da tela. Mal dava pra ler no rodapé a data: Maio, 14, 1992.

Arrumei emprestado um outro videocassete, quem sabe as cabeças do meu estivessem sujas. Nada que atenuasse o irreparável. Resolvi transferir a ruína remanescente, no estado em que se encontrava, para DVD. Algo assistível tinha de restar. O gravador de DVD não aceitava, com a mensagem “Vídeo instável. Gravação pausada”.

Se passado, presente e futuro são dimensões que existem simultaneamente, aquela fita estava ao mesmo tempo na loja esperando ser comprada, sendo desvirginada pela filmadora e já em forma de sucata num lixão de 2030. Eu também, enquanto pensava nisso, estava nascendo e morto há séculos.. Deixei quieto. Não há leite derramado.


domingo, 21 de setembro de 2008

AA: Crônica de Marcelo Sguassábia

AA - ANÔNIMOS ANÔNIMOS


- Central de atendimento do AA – Anônimos Anônimos, boa tarde. Com quem eu falo?
- Pergunta besta. É lógico que não vou dizer.
- Ah, é um dos nossos. Qual o problema, alguma recaída?
- Claro. Por que acha que estou ligando? Pra ficar falando de mim, que eu sou o máximo, que eu faço e aconteço? Se telefonasse pra isso seria um indício de cura, e conseqüentemente não precisaria ligar para o plantão. Na verdade, não é bem uma recaída. É uma reclamação.
- Ok, senhor.. Pode falar.
- Vou falar, mas o mínimo necessário. O suficiente pra que você me entenda e aconselhe. Na última reunião do AA vocês vieram com uma conversa que eu tinha de passar por uma prova de fogo: tirar minha carteira de identidade. Bom, num esforço sobre-humano, saí pra providenciar. Aí o sujeito lá do Poupatempo apareceu com um formulário que era um verdadeiro inquérito pra cima de mim. Queria saber meu nome, endereço, local de nascimento, disse que precisava tirar foto... imagina o absurdo, tirar fotografia! Depois de 54 anos incógnito.
- Mas o senhor tem 54 anos e até hoje não tem identidade?
- Meu anonimatismo é severo, grau 5 – quase 6, minha filha.
- Sim... prossiga, estou anotando.
- Anotando? Anotando o quê? Exijo que rasgue imediatamente seus apontamentos. Se alguém lê pode identificar o problema relatado com a minha pessoa, e aí eu me torno conhecido. Respeite meu direito ao anonimato. Não se esqueça que essa regra consta no código de ética dos Anônimos Anônimos.
- De fato, senhor. Desculpe a indiscrição.
- É bom que me respeite mesmo. Meu avô foi um Sicrano inveterado, meu pai foi um Beltrano de marca maior e eu sou um Fulano com F maiúsculo. Três gerações de gente que graças a Deus passou despercebida por este mundo de pessoas que só querem aparecer. Uma célebre dinastia de desconhecidos, da qual nunca ninguém há de ouvir falar.
- Tudo bem, Sr. Fulano. Pode continuar contando o seu problema.
- Alto lá. Um anônimo que se preza não conta coisa nenhuma a quem quer que seja, ainda que a senhorita seja também uma anônima para mim. Sabe como é, as paredes têm ouvidos, os telefones têm grampos e há poucos lugares no planeta não esquadrinhados por uma câmera de segurança. Talvez estejamos ambos, no momento, sendo vigiados por um terceiro. Quem sabe um quarto, quiçá um quinto... só de falar já me apavoro.
- Mas senhor, é preciso convir que anonimato tem limite.
- Limite? Só se for pra você. O anonimato é a liberdade extrema, é justamente a ausência de limite. Ninguém me cobra nada – nem deveres, nem favores, nem prazos, nem satisfação de coisa nenhuma.
- Mas o senhor não tem amigos, não trabalha?
- Trabalho numa Sociedade Anônima. Não tenho a menor idéia de quais são os meus sócios e tudo vai muito bem assim, do jeito que está. Até pouco tempo atrás só aparecia lá na empresa pra assinar o pró-labore. Ia disfarçado de mulher, mas desconfiei que estavam me reconhecendo. Agora arrumei um testa-de-ferro que cuida de tudo, se passando por mim para que eu continue passando em brancas nuvens. Igualzinho o cara que assina este texto. Pra quem não sabe, ele não existe. É pseudônimo.


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Marcelo Sguassábia