quinta, 28 de janeiro de 2010, 08h15
Q pra mim sê pré...
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Uma amiga perguntou se eu tinha visto comentários sobre uma frase da Dilma Roussef (Pra mim sê pré, tenho que passar pela convenção do PT). Indicava um endereço, que fui visitar (http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/dilma-o-eu-e-o-mim/ ). Lá encontrei o seguinte comentário, logo após a citação do começo da fala da ministra:
Para por aí. Não interessa o que vem depois ("...tenho que passar pela convenção do PT"). Esse "Pra mim sê pré" poderia ser, quando nada, a mais curta e cruel (contra seu autor) frase internada no Sanatório. E, se eu tivesse tempo e interesse, seria o título, o mote e o resumo de uma longa tese de mestrado sobre o mais absoluto e chocante equívoco político da história de nossa República.
Imaginei que o "comentarista" diria que o equívoco político consistia no fato de Dilma ter dito que, para ser pré (candidata), teria que passar pela convenção. Ora, depois da convenção, ela não será mais "pré" - será candidata ou não. É "pré" exatamente antes da convenção. Isso mostraria que ela não conhece o jogo eleitoral, as etapas de uma candidatura etc. Mas logo vi que não era isso. A questão era mesmo gramatical. E que, portanto, eu estava diante de um gênio... Vejamos a continuação:
"Pra mim sê pré": quatro monossílabos, cada qual contendo um erro essencial ou uma corruptela vulgar. Mas o "pra mim ser" ultrapassa qualquer barreira da desarticulação linguística. Eu, se sou RH, desclassifico na hora o candidato a vaga de assistente administrativo que diga "pra mim fazer" - mesmo que tenha quase mestrado e quase doutorado no currículo. Porque é erro incorrigível - já integra a estrutura mental de quem acha que mim conjuga verbo.
Ele acerta ao classificar as palavras como monossílabos. Só isso. Mas erra em tudo o que vem depois: a) não consegue copiar a fala criticada e a substitui por "pra mim ser"; b) escreve "eu, se sou RH" (uma pessoa um pouco rigorosa em relação a questões gramaticais escreveria "Eu, se fosse diretor / chefe de RH"); c) muda o exemplo para "pra mim fazer"; d) declara que internaria uma frase ("... frase internada no Sanatório"). E) conclui com uma análise neuropsicológica e linguística bem burra: a frase "integra estrutura mental de quem acha que mim conjuga verbo". Aliás, não é só "mim" que não conjuga. Nada conjuga, nem "eu", nem "nós", nem pronome ou nome algum. Quem conjuga é aluno de escola antiga. Verbo se flexiona (ou não) e segue regras de concordância.
Observe-se, além do mais, que o verbo nem está conjugado!!
O único comentário que tem alguma luz está na alusão irônica aos quase títulos de mestrado e doutorado.
Mas esse é o tipo de discussão que não rende nada. Parece briga de torcedor de futebol que endeusa seu time e demoniza o adversário. Não é que não seja útil. Mas deveria ser feita com calma e com algum apoio nos saberes envolvidos. No caso, psicologia e neurologia, pelo menos. Mais que isso, seria preciso poder responder a perguntas como qual será o papel da ideologia na produção de discursos como este, que, de uma questão de variação lingüística passa para hipóteses sobre estruturas mentais. Pior: faz isso cometendo erros crassos no que se refere ao padrão linguístico que ele defende (seria possível ser "piedoso" com sua gramática, mas, para isso, seria necessário conhecer teorias que explicam o que ele escreveu, mas também explicariam "pra mim sê". E erra feio ao chutar uma análise da relação entre estruturas linguísticas e estruturas mentais (campo no qual só os muito ignorantes têm certezas).
Mas, como disse, essa é uma discussão de torcedores.
Vejamos o que interessa, o material linguístico. Diz o comentador que se trata de corruptelas. Mais que corruptelas, são variantes informais, orais, faladas. E não só faladas por pessoas quase tituladas na academia, mas mesmo pelas tituladas nas melhores academias, tanto por defensores quanto por adversários da ministra. É só ouvir mesas redondas com políticos, sociólogos, jornalistas: "pra" e "sê" (fazê, analisá etc) estão em todas as falas, e mesmo na leitura de textos escritos, como em jornais de TV. Não em 100% dos casos, mas em muitos; na maior parte, quando se trata de fala. O teste é ouvir.
"Pré" é um monossílabo, mas não tem nada a ver com corruptela, nem com variação. É um prefixo proferido isoladamente. O efeito é de informalidade (-Você é pósmoderno? - Eu não! Eu sou pré. Pós é o meu vizinho.)
O verdadeiro problema do comentador está no pronome "mim" antes de verbo no infinitivo. Todos os manuais repetem que não se deve usar essa estrutura. Tanto repetem que até o cidadão em questão, que claramente não domina a modalidade escrita padrão, se dá conta disso (e papagueia o exemplo tirado não se sabe de onde "pra mim fazer").
Digo - não que tenha descoberto, pois é um lugar comum para quem estuda línguas - que há boas explicações para o mim nestes casos: 1) só ocorre depois de "para" (ninguém diz "mim vou" ou "mim vai"); é que "para" rege pronome oblíquo; 2) quando o pronome é regido pela preposição "para", não é mais sujeito do verbo que o segue; na frase citada, "sê" é uma reduzida de infinitivo. Ou seja: "para eu ser" e "para mim ser" são duas estruturas sintáticas diferentes. Seu valor "social" depende exatamente da sociedade (para dizer um truísmo): muitos usam, alguns condenam. Na nossa, é curioso que alguém escreva "eu, se sou RH" e condene "pra mim sê" em uma fala.
Um desafio ao leitor, se de fato quiser entender a questão: que encontre, ouvindo quem quiser pelo tempo que quiser, uma estrutura como "para que mim seja / para que mim ser). Não encontrará: com esse "que", todos dirão "para / pra que eu seja". Inserindo "que" entre "para" e o pronome, a forma "mim" perde condições de aparecer, já que sua condição é ser regida por "para".
A estrutura de "para mim fazer" é do mesmo tipo da que ocorre em "mandei-o sair", plenamente aceitável no português padrão. Se alguém disser que "mim" é sujeito, terá que dizer que "o" também é... Aceito apostas!
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Leitores escrevem, manifestam suas opiniões. Às vezes, é bem claro que eles não têm, a rigor, uma opinião sua: repetem a mais próxima, a mais simples, a mais grossa. É claro que eu gostaria que todo mundo considerasse óbvias certas demandas sociais, como as ligadas aos direitos humanos. Também gostaria que as pessoas lessem melhor... Confesso que fico satisfeito quando discorda de mim um cara que escreve "vá de retro, PTtralha", porque fica bem claro que o único fundamento dessa crítica é a mais crassa ignorância.
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Piada antiga, sempre atual, com personagens do dia: Fidel Castro e o Papa passeiam de iate no mar em frente a Havana. De repente, o solidéu do Papa cai no mar, arrastado pelo vento. Sem pensar duas vezes, Castro se lança à água para resgatá-lo e comprova, surpreso, que pode caminhar sobre as ondas sem afundar. Versões jornalísticas do fato:
Manchete do GRAMMA: Fidel es Diós
Manchete do L´OSSERVATORE ROMANO: Milagro del Papa
Manchete de EL NUEVO HERALD / THE MIAMI HERALD: Castro no sabe nadar
Um comentário:
Oi Lúcio!
Tudo bom?
Olha, eu sempre passo por aqui, só não deixo coments. pq confesso que não entendo muito bem; não tenho bagagem cultural/intelectual suficiente pra opinar sobre os assuntos, mas acho tudo super bacana.
abraços!
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