domingo, 15 de janeiro de 2012

O riso da mulher de Trácia

O livro O Riso da Mulher de Trácia, publicado na Alemanha em 1987, permanece até hoje inédito no Brasil, assim como Hans Blumenberg (1920-1996), seu autor, permanece pouco conhecido em nosso País. Blumenberg destacou-se pelo estudo das metáforas e da recepção.
No texto O Riso da Mulher de Trácia, Blumenberg investiga a recepção da imagem da queda de Tales num poço, seguida pelo riso da mulher logo ali perto. A mulher representa o senso comum. Essa piada tornou-se o símbolo do nascimento da divisão entre o mundo da teoria e o mundo da vida, entre a filosofia e o senso comum e os conflitos que daí decorrem. Blumenberg, embora estudando essa imagem um tanto quanto vaga, faz uma investigação séria, mobilizando sua erudição em latim e grego e seus conhecimentos sobre a antiguidade, conseguindo encontrar ecos dela de Platão até Heidegger. Aristóteles contou história em sentido contrário, narrando que Tales fez a previsão de uma grande colheita, alugou prensas de azeitonas e ficou rico. No entanto, como acreditar, se até hoje a pesquisa sobre o clima e sobre o ano produtivo é incerta?
O fundamento da pesquisa de Blumenberg é a seguinte teoria: ocorreu uma apropriação de uma fábula de Esopo que tratava de um astrólogo anônimo que, investigando o céu, caiu num poço. Platão e colocou Tales como personagem dela. E Platão o teria feito tendo em vista Sócrates, que também chegou a ser objeto de riso da população, ao ser colocado na peça As Nuvens, de Aristófanes –e em outras ocasiões. O infortúnio de Tales prenunciava o destino trágico de Sócrates: do riso da mulher de Trácia até a ira contra Sócrates, estaria ali uma história primordial da filosofia e da teoria em geral, destinada a se repetir ainda inúmeras vezes.
Como de Tales pouco se sabe, a piada a seu respeito acabou sendo uma metáfora rica de interpretações e recepções da recepção: ela representa o início da filosofia e é importante porque a filosofia já pensa sobre seu fim, e seu fim será, com certeza, pensado a partir de seu início. A Física, ao fazer experiências como o colisor de hádrons, parece também ter chegado ao mesmo ponto de chegada da filosofia: o mais misterioso é o mais próximo de nós e o infinitamente grande se liga com o infinitamente pequeno.
Para além do mero clichê do filósofo distraído, para Blumenberg o mito não se separa da teoria. A geração seguinte, a epicurista, deu razão à Trácia, que aliás é de uma região famosa por seu pessimismo. Dizia-se que os trácios choravam quando do nascimento de uma criança. Alguns historiadores da filosofia viram no esforço de Tales um avanço arriscado no sentido de investigar o sagrado e o inefável. No tempo do Iluminismo, Kant voltou ao assunto a propósito do terremoto de Lisboa: era importante conhecer o interior da terra. Blumenberg chega a especular se o argumento de Crítica da Razão Pura não estaria aí. Kant também associou o episódio da queda de Tales e a mulher de Trácia ao episódio em que o cocheiro do astrônomo Tycho Brahe criticou-o por sua experiência de tentar encontrar o caminho para a sua carruagem orientando-se pelas estrelas.
No tempo do Iluminismo surgiu também, no livro Ética para os Jovens, de Samuel Richardson, uma versão que colocava Tales no papel de um astrólogo que, de tanto investigar e prever o que acontecia nos céus, chegou um dia em casa e encontrou a mulher com outro, não reconhecendo nas estrelas o seu próprio infortúnio conjugal. O historiador Eduardo Gans, no século XIX, contemporâneo de Feuerbach, chega a supor que Tales caiu dentro de uma fonte e não de um poço. A fonte estava cheia de água, que para Tales era “a base de todas as coisas”.
As diversas recepções se sucedem na história da filosofia. Nietzsche opôs a participação política de Tales em seu tempo e seu abandono do mito. Num poema ao final do livro Gaia Ciência intitulado Declaração de Amor, pode-se supor que Nietzsche tratou do tema, acrescentando ao título do poema a frase “durante o qual o poeta caiu numa cova”:

“Ele vive no algo agora, que foge à vida, alvo da compaixão mesma da inveja./E voou alto aquele que apenas o vê pairar (...). Voou alto demais, agora eleva/o próprio céu o voador vitorioso/Agora descansa e paira/no esquecimento da vitória e do vitorioso”.

Finalmente, Blumenberg chega a Heidegger, para quem a queda do filósofo tornou-se critério para a certeza de se encontrar no caminho certo. Para Heidegger, o Seiende (sendo) que é o mais próximo, que somos nós próprios, é, do ponto de vista ontológico, o mais longínquo.

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