quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Karl Marx e 1984: a extrema-direita rufa o tambor de reunir

Vi uma palestra da extrema-direita sobre um tema que eu gostaria muito de desenvolver, mas foi totalmente deturpado na leitura de um tal Guilherme Freire: Karl Marx e 1984

Note-se que, embora seja uma palestra, seguida de debate, não há de fato críticas ao final dela, como quase sempre entre essa extrema-direita. Apenas eles reafirmam convicções.

Em primeiro, tenho interesse em investigar qual é a relação entre a narrativa histórica desenvolvida no livro 1984 (de George Orwell) e a narrativa histórica real da União Soviética de Stálin. O big brother seria Stálin e Goldstein seria Trotsky. Mas Guilherme não acredita nisso. "O foco não é o stalinismo, o big brother, se não tiver algum eles inventam". Ainda bem que Orwell não conheceu a Globo. Mas para Guilherme, "a influência da União Soviética ainda hoje [a gente] vive". A Comissão da verdade é "comissão dos inimigos do partido". A comissão da verdade deveria ser presidida pela comissão da verdade. "Franklin Martins é o nosso ministro da verdade. Franklin Martins quer garantir que a verdade chegue até vocês (...). A verdade é o que quer a Cristina Kirchner (...). Para quê [Marx] falar em Deus? Deus é isso aqui, filho (..). A razão é uma prostituta. Quem vai passar a mensagem de Deus? Eu. A vontade divina é encarnada em mim. Para Marx, tudo é um negócio meio coletivo".

Essa investigação seria muito interessante, mas Guilherme logo de cara descarta a possibilidade de falar sobre Stálin. Ele nega totalmente essa tarefa em prol de atacar Karl Marx e o governo petista. A hipótese maluca que é desenvolvida é nada mais, nada menos do que dizer que estamos vivendo a distopia de Orwell no Brasil governado pelo PT em 2014!

Guilherme chama Karl Marx de antissemita, mas reconhece que ele era judeu. "Judaísmo às avessas". Para Guilherme, Marx tinha uma "cultura prussiana de revolta contra a igreja", que queria trazer o reino de Cristo até nós na base da porrada,  da força e da opressão psicológica (!). Ele afirma que Marx tem uma obsessão muito grande pelo oculto, magia, fazendo "poesias macabras" como as do Walter Benjamin em sua obra literária. A partir daí, Guilherme extrapola e faz uma leitura estúpida do texto presente em Teses da Filosofia da História, que é justamente um texto em que Benjamin critica o materialismo histórico. Para Guilherme, é algo no mesmo sentido que Marx, quando Marx disse: "Deus amaldiçoou a humanidade e agora estamos libertos". Disse isso onde? Outra frase supostamente de Karl Marx: "Deus disse: jogarei maldições imensas sobre a humanidade". Hã? O anjo de Klee, na interpretação do rapaz, é parte da paixão de Benjamin e de Marx pelo macabro. O texto das Teses da Filosofia da História sobre o Angelus Novus, quadro do pintor Klee, é explicado assim: "o que está para trás, o passado, queimou. Vamos olhar daqui para a frente". Geeenial, hein???

Segundo o jovem intelectual da direita, Marx encarna o "profeta gnóstico prussiano" do Hegel. Ele fez tese sobre Epicuro, "ele escapa da realidade, ele tem essa visão de abolir a realidade e viver numa espécie de paraíso. A NKVD até hoje ainda são uma ameaça.

Bush aparece na televisão para os dez minutos de ódio aqui no Brasil. Assim também o Cardeal Ratzinger, no jornalismo que estamos tendo aqui no Brasil. Guilherme acredita que o jornalismo inventa que "Mitt Romney não gosta das mulheres". Ele diz que "enxerga o sentido da matéria, enxerga o sentido da história". Onde está escrito isso? Rousseau também teria tido "uma visão predestinada". Para Guilherme, o ponto é que tudo o que Marx faz contradiz o que ele escreve.

A estratégia de Guilherme é colocar frases na boca de seus antagonistas. Ele acredita que a KGB e e terminantemente não aceita que a esquerda se desvincule de Stálin.

Segundo o difamador, "o único proletário que Marx conhecia era o filho que ele teve com a empregada (...). Ele mandou o moleque para a pqp e ele morreu numa fábrica". Marx era rico. Segundo Guilherme, "ele ganhou muito dinheiro de um holandês aí...A família Phillips. Ele recebeu dinheiro da burguesia, mas o único filho proletário ele rejeitou, a vida dele é contraditória".

Guilherme diz ter sofrido tentativa de ser doutrinado; na escola ele estudou uma história que não tinha pessoas. De vez em quando ele tem uma observação interessante: "a classe burguesa abrange desde Eike até, por exemplo, eu?" E ele vai adiante: "Classe burguesa não existe. Não faz sentido nenhum. Negócio louco! Chama atenção porque é louco, é muito fora da realidade. E tem esse negócio do oculto (...). Está tudo oculto na cabeça de todo mundo, mas o Karl Marx é o cara que sabe as coisas".

Guilherme também tem uma teoria sobre Hemingway: "Hemingway fez uns cinco livros para falar da mãe. Muito da obra de Hemingway é para desmentir a mãe dele". Para nosso jovem teórico, Marx ficou revoltado porque "mandaram ele comer comida kosher". Ele segue adiante, como um pato desarranjado, atribuindo até mesmo o Protocolo dos Sábios de Sião, famoso texto antissemita, foi "claramente circulado pelo mesmo pessoal de sempre, "o pessoal globalista", criando outro projeto globalista para esconder o seu". Então, um tal Coronel Hauser, ligado ao presidente norte-americano Woodrow Wilson forjou o Protocolo dos Sábios de Sião para provocar guerras. Seguindo Guilherme, a negociação do Wilson era assim: "Oi, Sociedade das Nações".

Gramsci, no entender do rapaz, diz  que "Nós vamos esvaziar toda a cultura" E Guilherme interpreta isso:  "Tem um significado espiritual aí. Socialismo é o reino da igualdade. O estado vai dominar toda a sociedade. É um negócio messiânico. Karl Marx é um profeta gnóstico. [Grasmci] quer fazer da igreja a porta-voz do partido". Onde? Para ele, "Gramsci não inverte o que Marx diz, é muito parecido."

Outras pérolas: "O cara diz que o rapaz chato que está fazendo pregação aqui ao meu lado está me oprimindo". "Lênin escreveu cartas e cartas falando mal da caridade". "Temos presidentes que estão sendo oprimidos por párocos". "Se eu estatizar tudo, isso não significa caridade". Guilherme supõe que o Papa Francisco é marxista, que Paulo Freire é marxista ortodoxo, a arquitetura de Niemeyer e a literatura moderna são comunistas. Ele acha isso bastante óbvio. Paulo Freire tem assumidamente estratégia marxista, segundo Guilherme. Betinho (das campanhas contra a fome) fez aquilo para melhorar a imagem do movimento marxista. O filme do Whoody Allen é marxista.

Então, para Guilherme, os processos que Orwell descreveu estão todos presentes (no Brasil do PT). A suposição é que estamos vivendo "a revolução pela revolução". A velha mentira que é repetida: "eles torturavam o cara para que ele deixasse de acreditar na fé dele. Isso é fato histórico". "Shakespeare é alienação burguesa. Ele é um representante das tradições cristãs no país".

 Até a reforma ortográfica é associada a uma tentativa de romper com a cultura tradicional. Mas terá Fernando Henrique Cardoso participado dessa conspiração, uma vez que o acordo ortográfico ficou dez anos sendo negociado até sua adotação em 2009? Volta e meia Guilherme também comenta que "já dizia Lênin, a verdade é um conceito burguês". Guilherme concorda com o marxismo em pelo menos num ponto, diz ele: "o positivismo é uma frescura burguesa". Por fim, ele teoriza que Shakespeare escreve coisas que, com nossa língua que, "não é mais a de Machado de Assis", não pode mais expressar. Isso quer dizer que vivemos a novilíngua.


Então, diante de tantas bobagens e tanta antipatia à crítica e ao debate, só se pode concluir o seguinte: a exrema direita está apenas tocando o tambor de reunir com esse tipo de vídeo. Ela quer arregimentar os seus adeptos e fazer uma onda agora em 2014, quando o governo do PT está em vias de ser reeleito. Com uma direita liberal forte, a extrema direita retrocede e perde força. Por isso ela está se reunindo e tenta reagir. A palestra desse tal Guilherme me parece parte disso.


                                                   O anjo da história de Klee: "o que está atrás, queimou"



2 comentários:

Anônimo disse...

Artigo terrível. Parece que o real debate sobre a arte é, aqui, mera ferramenta de interdição de discurso. Muito limitado.

Revistacidadesol disse...

Oi, anônimo. De fato, no vídeo de Guilherme é que existe isso que vc está falando. Eu só me dei ao trabalho de comentar porque achei que o Guilherme desperdiça um tema que até seria interessante. Um anticomunista associar Stálin ao Big Brother e o stalinismo ao romance de Orwell seria uma abordagem que me interessa observar. No entanto, analisar Stalin já é concessão do ponto de vista deles e o Guilherme então "corta volta" para bater em Karl Marx. Ele é que empobrece o debate sobre a arte. Abs do Lúcio Jr.