domingo, 30 de agosto de 2020

Entrevista com um Idoso sobre Mao

 Entrevistador: Você poderia nos falar um pouco sobre o Presidente Mao?

Entrevistado: O Presidente Mao é o sol que nunca se põe. Assim como as plantas, que não crescem sem chuva, a revolução não pode [se realizar] sem o Pensamento Mao Zedong. [1]

O Leste está Vermelho, o sol está nascendo. Da China, vem Mao Zedong. Ele luta pela felicidade do povo. Viva! Ele é o grande salvador do povo! [2]

O Rio Liuyang se contorce e vira, ele percorre dezenas de quilômetros ao Rio Xiang. Há uma província “Xiang Tang” na margem desse rio, que foi onde o Presidente Mao nasceu, nos liderou à libertação [do país] e se tornou mundialmente famoso.

O Presidente Mao é como a luz do sol que ilumina as montanhas de neve.

Devemos seguir suas instruções. O propósito da Revolução Cultural é proteger o Estado proletário do Capitalismo, a Revolução Cultural é a ditadura do proletariado. Antes do Movimento de 4 de Maio, em 1919, falava-se de “Velha Revolução Democrática”, desde então, falamos de “Revolução Democrática de Novo Tipo” [3]. A revolução de 1966 à 1976, liderada pelo Presidente Mao, é uma revolução comunista e ditadura do proletariado, a união dos trabalhadores e camponeses oprimidos derrubou os líderes do Partido e retornou o poder ao povo. O Presidente Mao é sempre revolucionário! Devemos seguir o caminho posto por ele, realizar a Revolução, nos manter à causa da Grande Revolução Proletária Cultural sem hesitarmos, e realizar o Comunismo descrito por Marx, em seu Manifesto Comunista: eliminar os capitalistas e a propriedade privada, dar o dinheiro para o povo pobre da China e do mundo inteiro.

Quem criou o mundo? Nós, a classe trabalhadora! Tudo pertence à classe trabalhadora, não há espaço para os parasitas. Esse é o conflito final: mantendo-nos unidos e lutando, o comunismo se tornará realidade.

Falei muito hoje, venha à minha casa quando você tiver tempo.

E se eu falar demais, e eles me ouvirem, e quererem cortar minha cabeça [risos]. Já falei demais. Política é um negócio arriscado, porque colocamos nossa cabeça [vida] na linha.

A polícia é horrível, eles encurtaram minha vida, me mantiveram em cárcere por décadas, fui privado de uma alimentação saudável, e me fizeram tomar drogas psicotrópicas, que danificaram meu fígado. Também realizaram tortura elétrica comigo. A polícia é fascista.

Em 13 de Dezembro, a polícia veio me importunar porque eu expus o negócio sujo deles. O Ministro da Agência de Segurança Pública, Hua Guofeng, [era] um usurpador ganancioso. Antes de sua ascensão ao poder, os três líderes faleceram: O Presidente Mao, o Comandante Chefe Zhu De, e o Primeiro-Ministro Zhou Enlai. A dinastia acabou.

Jiang Qing, a viúva do Presidente Mao, foi presa por Hua Guofeng. Sob um disfarce “esquerdista”, Hua Guofeng cortou os pinheiros do Presidente Mao, para criar um memorial anti-revolucionário, no nome da revolução. Ele, na realidade, era um direitista tentando diminuir a revolução de Mao.

Velhos camaradas, me dêem seus conselhos. Quero reparar meus erros e me ater ao que é bom.

Referências

[1] Pensamento Mao Zedong: é o nome da corrente política que se deu ao Marxismo-Leninismo aplicado às condições da Revolução Chinesa, que viria a ser sintetizado e universalizado, tornando-se o Marxismo-Leninismo-Maoismo, pelo Partido Comunista do Peru. Para entender a diferença entre Pensamento Mao Zedong e Marxismo-Leninismo-Maoismo, olhem aqui. Para entender mais do Maoismo, olhem aqui.

[2] Aqui, o entrevistado recita um trecho da canção “O Leste é Vermelho”.

[3] Nova Democracia, o nome dado ao período da Revolução Chinesa de 1949 a 1956, e uma das contribuições do Marxismo-Leninismo-Maoismo.


Lukács e o Realismo Socialista de Soljenitsin

 

Lukács e o realismo antissocialista de Soljenitsin

 

Adriano Alves

Andreza Vale

 

Resumo

 

Esse artigo busca investigar um ensaio de Lukács sobre o dissidente russo Soljenitsin, motivado por comentários recentes a respeito de um possível paralelo entre Soljenitsin e a dissidente cubana Yoani Sánchez. Lukács considerou, ao analisar os romances de Soljenitsin, que esse escritor era um renovador do marxismo, ou ainda, um renovador que estava trazendo o realismo socialista de volta aos primórdios. O tempo não confirmou essas expectativas de Lukács, traçadas em 65. Outra hipótese a respeito de Soljenitsin foi elaborada por Abraham Rothberg em seu livro Herdeiros de Stálin: o escritor russo seria um entusiasta da liberdade de expressão e tinha sido apoiado por Kruschev. Seria, então, um dissidente liberal, não um marxista ou realista socialista. Mesmo essa hipótese deve ser deixada em suspenso diante das atitudes de Soljenitsin depois da queda da URSS, quando ele se manifestou a favor de um regime que ligasse a igreja ortodoxa ao regime czarista, apresentada em texto de Mário Sousa e do norte-americano Eric Margollis. Assim, a hipótese com que finalizou-se essa pesquisa foi que Soljenitsin elaborava um realismo antissocialista, buscando principalmente através de sua ficção apoiar o seu projeto político de extrema-direita, embora ele não assumisse diretamente essas posições reacionárias em seus primeiros tempos de União Soviética.

 

Palavras-chave: dissidência, liberalismo, realismo socialismo, Lukács, Soljenitsin, crítica literária

 

Abstract

 

This paper investigates an essay by Lukács on Russian dissident Solzhenitsyn, motivated by recent comments about a possible parallel between Solzhenitsyn and Cuban dissident Yoani Sánchez. Lukacs considered when analyzing Solzhenitsyn's novels, which this writer was a renovator of Marxism, or even a renovator who was bringing socialist realism back to the beginnings. The weather did not confirm these expectations Lukacs, drawn in 65. Another hypothesis about Solzhenitsyn was drafted by Abraham Rothberg in his book Heirs of Stalin: Russian writer was an enthusiast of free speech and had been supported by Khrushchev. It would then be a dissident liberal, not a Marxist or socialist realist. Even this hypothesis should be left open on the attitudes of Solzhenitsyn after the fall of the USSR, when he came out in favor of a system that would link the Orthodox Church to tsarist regime, presented in text Mário Sousa and American Eric Margollis . Thus, the hypothesis that ended up with this research was that Solzhenitsyn elaborated antissocialista realism, seeking mainly through his fiction support their political project of far-right, although he did not directly assume these positions reactionary in their early days of the Soviet Union .

 

Keywords: dissent, liberalism, socialist realism, Lukács, Soljenitsin, literary critics

 

Introdução

 

Recentemente, em um artigo na revista Pittacos, o teórico marxiano Luiz Sérgio Henriques comparou os romances do dissidente russo Soljenitsin aos textos da polêmica blogueira Yoani Sánchez, cuja turnê anticomunista motivou uma avalanche de polêmicas e ganhou até capa da revista Veja no mês de fevereiro [deste ano corrente de 2013].

 Henriques sugeriu a leitura dos romances do escritor russo. O motivo está presente no próprio título do artigo: deveríamos saber “O que os dissidentes dizem sobre nós”. Nós, ele quer dizer: a esquerda. A seguir, ele ainda sugere a leitura dos ensaios de Georg Lukács sobre Soljenitsin, que, segundo ele, romperam uma barreira nos anos 60. Henriques julga que são obras-primas da literatura e denúncias fundamentais do “stalinismo”.

No entanto, ao pesquisar, descobrimos que os textos de Georg Lukács sobre Soljenitsin não foram publicados em português. Esse artigo busca debater um desses textos, Soljenitsin e o Novo Realismo, aproveitando a provocação lançada por Luís Sérgio Henriques. Supomos que essa leitura poderia trazer surpresa até mesmo para  autor que os recomendou.

 

1. Lukács e sua crítica a Soljenitsin

 

Em primeiro, é preciso começar essa polêmica contextualizando para os leitores quem foram Georg Lukács (1885-1971) e Alexander Soljenitsin (1918-2008). George Lukács era considerado um intelectual comunista herege, mas ao mesmo tempo, também era considerado no Ocidente como um teórico do realismo socialista. Em seus ensaios sobre Soljenitsin, confrontam-se Lukács, um marxista supostamente atualizado e heterodoxo (mas que também fora preso duas vezes, uma vez em 1940 e depois em 56), e Soljenitsin, um oponente público do partido soviético. Curiosamente, o que se deu é que os pontos de vista de ambos se aproximam.

Lukács, mesmo em seu livro recém traduzido no Brasil, Ontologia do Ser Social, é um autor que está sempre no meio de uma discussão muito técnica sobre o marxismo, que ele prefere chamar de “crítica marxiana”. Em seus ensaios sobre Soljenitsin, pode-se dizer que Lukács expressa com fervor a aversão que sentia pelo “stalinismo”. Sobre Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, Lukács se entusiasma e escreve que "o campo de concentração é um símbolo da vida cotidiana stalinista”. E ainda vai mais além. Lukács apresenta-se convicto de que os romances de Soljenitsin contribuíam para o verdadeiro marxismo ao combaterem as distorções stalinistas:

 

E, é evidente que a verdadeira maneira de manter a fé é rejeitar distorções stalinistas e, desse modo, consolidar e aprofundar todos os realmente marxistas, com convicções socialistas realmente, ao mesmo tempo, preparando-os para enfrentar problemas novos (LUKÁCS, 1965, p. 214).

 

Embora o próprio Soljenitsin tenha sido, durante algum tempo, apoiado e editado pelo líder soviético Kruschev e a república popular húngara, nos anos 60, enfeitasse muita coisa que editava com citações do próprio Lukács, as diferenças entre Stálin e os que o sucederam são negadas. Lukács aparentemente repudiou também Kruschev e Brejnev, "com todas as suas mudanças que preservam os métodos essenciais do stalinismo, com apenas modificações superficiais". E há uma série de passagens assim, afinal, bastante reveladoras do que pensa Lukács. Ele sempre fala de Soljenitsin como alguém com grande estatura moral, aprovando-o como alguém que mostra independência e coragem. No livro O Primeiro Círculo, Lukács praticamente aceita como típico um personagem que, prisioneiro na União Soviética, ainda permanece um marxista ortodoxo. Soljenitsin narra que considera o personagem decente, mas ainda marxista. Para Lukács, os “campos de concentração eram símbolo do dia a dia da vida stalinista”. Mas Lukács admira também o Soljenitsin escritor. Lukács, programaticamente antimodernista, admira o escritor que não faz utiliza técnicas experimentais em sua narrativa. Tanto como Pasternak quanto Soljenitsin voltam às formas realistas do século XIX, daí a simpatia de Lukács pela narrativa bastante tradicional de Soljenitsin.

Lukács compara Um Dia Na Vida de Ivan Denisovich com as novelas curtas de Conrad e Hemingway. Ele escreve que esses romances falam de um indivíduo colocado em uma situação extrema. O sanatório dos tuberculosos descrito por Soljenitisin é associado a Thomas Mann e A Montanha Mágica. Depois de associar Mann e Soljenitsin (comparação bastante lisonjeira para com o autor russo), Lukács ainda afirma que “as obras de Soljenitsin aparecem um renascimento dos nobres primórdios do realismo socialista.” Como referência de realismo socialista, Lukács considera como referência o escritor soviético Makarenko. Essa é a hipótese de Lukács, que julgamos desmentida pelos fatos posteriores. Pode-se supor que Soljenitsin fez justamente o contrário: realismo anti-socialista.

De um ponto de vista predominantemente favorável, assim mesmo Lukács fez críticas a Soljenitisin no sentido de que o escritor escreve do ponto de vista de uma mente “plebéia” e não de uma consciência socialista. Mas, logo em seguida, ele associou esse suposto ódio plebeu ao privilégio social ao personagem Platon Karatayev de  Guerra e Paz (de Leon Tolstoy). Soljenitsin foi aproximado a Tolstoi em suas inclinações religiosas. A respeito de quais são verdadeiramente as inclinações de Soljenitisin, vale a pena incluir uma observação sobre o que disse o colunista Eric Margollis quando da morte de Soljenistin em 2008, finalizando um artigo claramente elogioso, intitulado a Morte de um Titã:

 

Em seguida, ele [Soljenitsin] publicou um livro sobre um assunto até então tabu, o papel proeminente de judeus russos no Partido Comunista e na polícia secreta. O livro provocou uma tempestade de críticas na América do Norte. Solzhenitsyn foi marcado como antissemita e rapidamente se tornou uma não-pessoa pela segunda vez. Solzhenitsyn retornou à nova Rússia, após a queda do comunismo e tornou-se o principal expoente do culto revivido e reacionário do século 19, o nacionalismo pan-eslavo. Ele defendia a Igreja Ortodoxa da Rússia como guardiã da alma da nação, proclamou o destino manifesto da Rússia e defendeu uma forma de czarismo moderna, que se parece muito com aquela levada adiante hoje no Kremlin por Vladimir Putin e Dimitri Medvedev (MARGOLLIS, 2008).

 

Assim, o “plebeu” era na verdade um reacionário ortodoxo, cuja escrita aparentemente reforça o seu projeto, ainda que, nos anos 60 (ou seja, no período que estamos tratando), ele não pudesse ainda mostrar quem realmente era. Pelo contrário, Soljenitsin é lido como um autor que defende a linha adotada por Kruschev no congresso onde começou a desestalinização e que deseja o aprimoramento –e não a derrocada – do regime. Mas agora, de acordo com Margollis, sabemos qual é a verdade. A avaliação de Lukács, em seu texto Soljenitisin e o Novo Realismo, não poderia ser mais equivocada, quando a lemos à luz dos acontecimentos de 1965 para cá:

 

O mundo socialista, hoje, está às vésperas de um renascimento do marxismo, que não é chamado simplesmente a restaurar o sistema original, distorcido de modo grave por Stalin, mas que será dirigido em primeiro lugar a uma plena compreensão dos novos dados da realidade pela luz dos conceitos, do ao mesmo tempo novo e velho, marxismo genuíno (LUKÁCS, 1965, p. 203).

 

Aqui já temos que fazer uma observação: o pensamento de Stálin é ligado ao marxismo-leninismo. É também marxismo genuíno. Essa suposta dissociação entre “bolchevismo e stalinismo” foi primeiro realizada por Leon Trotsky em um famoso ensaio e generalizou-se como uma convicção no chamado “marxismo ocidental”, mas não encontra base na realidade. Lukács vai ainda mais longe. Ele atou o destino de seu marxismo ao realismo de Soljenitsin. Será que ele sabe que Soljenitsin era um realista anti-socialista, como mostrou posteriormente? Não há como responder a essa questão em termos simples. Pode-se dizer que possivelmente Lukács achou conveniente não ser objetivo a respeito a aderir a uma nova onda:

 

No campo literário, uma cobrança idêntica enfrenta o realismo socialista. Qualquer continuação do que foi elogiado e homenageado na era Stalin como realismo socialista seria inútil. Mas estou convencido de que eles [os críticos liberais] estão igualmente equivocados em profetizar uma sepultura precoce para o realismo socialista, e querem rebatizar como "realismo" praticamente tudo, desde a [o que se produz na] Europa Ocidental até o expressionismo e futurismo, assim como abolir todo o uso do termo "socialista". Quando o socialismo retoma sua verdadeira natureza, e sente-se mais uma vez sua responsabilidade artística em face dos grandes problemas da sua época, forças poderosas podem ser colocadas em movimento para a criação de uma nova literatura socialista da atualidade. Em meio a um processo de transformação e renovação que implica para o realismo socialista uma brusca mudança de direção daquela da era de Stalin, a história de Solzhenitsyn constitui, na minha opinião, um marco no caminho para o futuro (LUKÁCS, 1965, p. 203).

 

Mas de fato é muito surpreendente que Lukács tenha de fato analisado Soljenistin e afirmado que o material do “realismo socialista” de Soljenitsin era, agora, a avaliação crítica objetiva – e não distorcida ou reacionária-- da era de Stálin. Os personagens de Soljenitsin estão sempre esmagados pelo poder do aparelho repressivo. Lukács parece aceitá-los como ilustrativos do período Stálin – e sem fazer observações críticas. Pelo contrário, o fato de Soljenitsin abordar temas sociais e políticos em uma perspectiva reacionária e contrapor o indivíduo ao estado é visto por Lukács como uma benéfica fuga do subjetivismo de Kafka e do experimentalismo de Beckett, que para estão embebidos do niilismo da época que deu Hitler. Diferente do individualismo presente em romances de Conrad ou Hemingway, onde a luta é contra uma força da natureza, Soljenitsin traria a esperança da renovação do realismo socialista, embora fique evidente seu enfoque seja o tempo todo criticar o socialismo como um todo. Lukács arriscou uma hipótese ousada quando viu nessa perspectiva o renascimento do marxismo.

Soljenitisin transformou um dia normal em um campo anônimo num símbolo literário de um passado ainda não digerido, retratado em tons de cinza sobre cinza. Lukács citou com aprovação até mesmo frases como “o melhor lugar que se podia estar é a prisão”. E pode-se dizer também que os textos de Soljenitsin, como o romance Arquipélago Gulag, conseguiram estabelecer ligações entre os campos de concentração nazifascistas e as prisões comunistas sob Stálin. Soljenitsin pretende, em sua ficção, apresentar uma descrição autêntica da vida, dando a seus textos o cunho de denúncia política bastante didática. Se em Conrad e Hemingway, o indivíduo pode sentir simpatia pelas forças da natureza que se opõe, em Soljenistin ele não tem nenhuma simpatia pelo sistema social e político que o oprime.

Pode-se dizer, então, que o filósofo e crítico literário húngaro Lukács não só aceitou Soljenitsin como renovador do realismo socialista como associou seu reaparecimento a um suposto “renascimento do marxismo” que seria, possivelmente, orientado e reforçado pelas obras de Soljenitsin. O que se sabe, porém, é que algo de bem diferente se basou após a queda de URSS, com Soljenitsin assumindo uma posição não só anticomunista, mas também como um monarquista religioso de extrema-direita. A avaliação de Lukács mostrou-se, então, equivocada. É bem provável que Soljenitsin voltava os cânones do realismo socialista contra ele próprio, confundindo-se, nesse ínterim, com um verdadeiro realismo socialista. A seguir vamos analisar como um crítico literário norte-americano, o professor Abraham Rothberg, leu Soljenitsin nos anos 70.

 

2. Soljenitsin na obra de Rothberg: um liberal dissidente

 

            No livro Os Herdeiros de Stálin, o professor Abraham Rothberg apresenta Soljenitsin de forma diferente da leitura acima realizada por Lukács. Rotberg contextualiza o surgimento de Soljenitsin como escritor como parte de um movimento mais geral de desestalinização e de liberalização por parte de Nikita Kruschev. Soljenitsin começou, então, a ter seus livros editados não contra, mas apoiado pelo poder; no caso, pelo secretário-geral Nikita Kruschev. O primeiro texto que Soljenitsin lançou foi Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, publicado na revista Novy Mir:

 

O número da revista esgotou-se logo. Cem mil exemplares de Ivan Denisovich em forma de livro esgotaram-se também rapidamente . Ao mesmo tempo, publicações oficiais lançavam uma campanha coordenada para dar o máximo de publicidade ao romance: Soviet Literature o traduziu para o inglês; Moscou News, semanário de consumo de estrangeiros, foi autorizado a publicar uma versão em série; e Izvestia e outros jornais não literários publicaram resenhas altamente favoráveis ao livro. Pravda, por exemplo, comparou favoravelmente Solzhenitsyn com Tolstoy (ROTHBERG, 1972, p. 70).

 

            Como se pode ver acima, Soljenitsin foi lido favoravelmente por Kruschev como uma peça a mais na desestalinização e liberação, ou seja, ao mesmo tempo ele foi acolhido como um liberal e como um sucessor de Tolstoy. A citação de Tolstoy é uma indício de que já se sabia do aspecto religioso da obra de Soljenitsin, aspecto que depois veio à tona mais vigorosamente (ROTHBERG, 1972, p. 71).

Um Dia na Vida provocou uma tempestade de críticas tanto ao autor quanto o periódico. Logo a seguir, a mesma revista publicou um outro romance curto, Pelo Bem da Causa, igualmente provocando polêmica: para uns, a publicação de Soljenitsin era saudada como signo de liberalização, para outros era tido como narrativa exagerada e tendenciosa, que faltava com a verdade quanto ao que foi o período retratado. Já para Rothberg, a posição de Soljenitsin seria de dissidência liberal assumida, muito diferente da posição intermediária de um Lukács. Ele não adota a hipótese de que Soljenitsin esteja querendo renovar o realismo socialista e também não o associa ao marxismo, senão ao liberalismo. Leia-se seu comentário a respeito em Herdeiros de Stálin:

 

Se Ivan Denisovich foi um impacto para os dogmatistas da velha guarda, porque revelava a injustiça e a crueldade não como matéria acidental, mas com política do estado, o romance, afinal de contas, decorria no início da década de 50, na era de Stálin, a uma distância no tempo tão longe, que os fatos poderiam ser “controlados”, atribuindo-se-lhes ao passado que não se deveria mais repetir. Mas Pelo Bem da Causa era um ataque explícito aos remanescente estalinistas ainda presentes no sistema soviético, uma investidura contra burocratas mesquinhos e arbitrários, que os retratava como carreiristas impiedosos, ambiciosos e autoritários; e tempo era o presente. O fato de Kruschev ter permitido sua publicação só pode ser atribuído à necessidade de revitalizar a economia estagnada, o que esperava pudesse ser conseguido com a eliminação da inflexibilidade dogmática dos burocratas estalinistas (ROTHBERG, 1972, p. 119).

 

            O pequeno romance (“novela”) em questão, Pelo Bem da Causa, conta a história de como um pequeno grupo de jovens ajuda a construir um novo prédio escolar poderem estudar, uma vez que o prédio anterior era velho e inadequado e como, depois de concluída a construção, eles a perdem para os burocratas e carreiristas. Um personagem em especial, Knorozov, representou, na narrativa, o burocrata stalinista.

O texto causou polêmica porque o crítico Yuri Barabash, do jornal Literaturnaya Gazeta, comentou que Soljenitsin teria criado em Knorozov uma caricatura, um símbolo irreal do período Stálin. Através das análises de Rothberg pode-se notar que havia um debate público a respeito de Stálin, literatura e política na União Soviética, ao contrário da imagem que se tenta passar nos últimos anos, de um regime tirânico, que não permitiu crítica alguma e vigia os seus cidadãos no dia a dia. O texto Os Herdeiros de Stálin registrou, inclusive, a existência de uma imprensa alternativa na URSS, os chamados “samizdats”, jornais clandestinos em que circulavam materiais não liberados pela censura, chegando inclusive ao Ocidente. Como a URSS não participava das convenções internacionais de direitos autorais, muito material era contrabandeado para o exterior. Soljetinsin era elogiado e criticado na imprensa soviética. Como se pode ler em Rothberg:

 

No início de janeiro, a imunidade de Soljenitsin ao ataque começou também a ruir. Lydia Fomenko o censurou por não ter deixado de erigir uma percepção filosófica do período estalinistas em Ivan Denisovich, e por ter deixado de compreender que o povo e o Partido andaram bem em construir o socialismo, apesar de Stálin. Era a crítica que começava numa campanha contra Soljenitsin, crítica que iria crescer e se tornar o meio de o regime tratar o problema dos herdeiros de Stálin. O socialismo, o que quer que fosse, tinha sido construído pelo povo e, por extensão, pelo Partido, mesmo enquanto Stálin cometia seus erros e suas distorções. Os apologistas apontavam para as realizações da industrialização soviética e para a vitória sobre a Alemanha nazista como provas positivas de que eles –o Partido e o povo, o Partido conduzindo o povo –tinham realizado como distinto do que ele –Stálin –tinha desviado ou distorcido. Uma vez entregue a essa apologia, os líderes do Partido tinham de reabilitar Stálin, pelo menos em parte, de modo que sua lógica e sua história, embora deficientes e deformadas, não parecessem inteiramente absurdas (ROTHBERG, 1972, p. 84).

 

A partir desse momento, portanto, que ocorreu no ano de 1962, a suposta preferência de Kruschev por Soljenitsin se abrandou. Naquele ano, uma conferência de escritores deu um basta à liberalização e à desestalinização. O grupo dos escritores liberais tais como Yevtuchenko, Ehrenburg e Nekrassov passou a ser criticado e Kruschev ficou especialmente irritado com uma exposição de arte abstrata na URSS. Ele passou, então, a afirmar que não ia aceitar mais desvios do realismo socialista. Passou-se a criticar Ehremburg, assim como outros escritores, entre os quais Soljenitsin, pela forma como a propaganda ocidental utilizava suas obras, ou seja, como uma propaganda contra o socialismo como um todo (ROTHBERG, 1972, p. 85).

A leitura de Soljenitsin, assim, alimentava-se mais e mais de um interesse político. Outro ponto presente em sua literatura e já registrado por Rothberg foi a associação que Soljenitsin causava, entre os campos de concentração do tempo de Stálin e os campos fascistas. Esse ponto foi fortemente o ponto que foi ressaltado no Ocidente nos anos 70, quando Soljenitsin mudou para o exterior e radicalizou suas posições em O Arquipélago Gulag (ROTHBERG, 1972, P. 85).

 

3. Soljenitsin: uma literatura fascista?

 

            Embora de início associada à liberalização, Soljenitisin entrou em choque com o poder soviético no decorrer do final dos anos 60 e, no início dos anos 70, abandonou a URSS, obtendo, no entanto, grande sucesso no Ocidente. O governo soviético exigiu que Soljenitsin não participasse de uma campanha internacional de difamação da União Soviética, mas Soljenitsin negou-se a aceitar. Assim, depois de estimulados, seus livros passaram a sofrer censura.

 Enquanto isso, na União Soviética, sua peça A Festa dos Conquistadores provocava polêmica. Segundo Soljenitsin, a peça teria sido apreendida ilegalmente pela polícia política. Por outro lado, as autoridades alegavam que a peça tinha sido obtida junto a estrangeiros que contrabandeavam manuscritos de dissidentes russos para o ocidente. A peça, também escrita durante o período de encarceramento de Soljenitsin, apresentava o exército vermelho com um exército de vândalos e estupradores e simpatizava abertamente com o general Vlassov, que se passou para o lado dos nazistas durante a II Guerra. A polêmica em torno da peça fazia supor que a condenação pela qual Soljenitsin fora aprisionado em 1946 tinha sido motivada por sua simpatia aos nazistas ainda em plena II Guerra Mundial. Ao contrário do regime cubano hoje em dia, que tolera que a dissidente Yoani Sánchez mova uma campanha internacional de difamação e calúnia, tal não foi tolerado pelo governo soviético em plena Guerra Fria.

A hipótese do marxista português Mário Sousa sobre Soljenitsin é a última que iremos analisar: ele parte do pressuposto de que sua ficção reforça um projeto político de extrema-direita.

No Ocidente, Soljenitsin lançou o livro Arquipélago Gulag, radicalizando sua visão sobre as prisões ao tempo de Stálin.  Em 1970, Soljenitsin ganhou o prêmio Nobel de literatura, mas o texto passou a ser lido no Ocidente como uma peça de propaganda anticomunista e  não uma ficção. Até hoje essa leitura de sua obra é bastante comum.  Em 1974, Soljenitsin emigrou para a Suíça e depois para os Estados Unidos. Sua suposta simpatia pelos nazis não era, então, abertamente discutida.

            As posições de Soljenitsin no Ocidente eram abertamente anticomunistas: propôs atacar o Vietnã mesmo depois do fim da guerra, discursou no senado norte-americano, assim como foi orador no sindicato conservador AFL-CIO. Dentre outras posições conservadoras, defendeu a intervenção dos USA para coibir a Revolução dos Cravos em Portugal. Ele também lamentou a libertação das colônias portuguesas da África. Soljenitsin inspirou a série Rambo, ao alegar que existiam norte-americanos trabalhando como escravos no Vietnã do Norte, assim como apoiou o regime fascista de Francisco Franco na Espanha, opondo-se e prevenindo as pessoas contra as reformas democráticas depois da morte de Franco, em 1975, quando o rei começou, timidamente, uma liberalização democrática. Soljenitsin contrastou, em entrevista no horário nobre, os cento e dez milhões de russos que morreram vítimas do socialismo com a liberdade que se desfrutava na Espanha. Assim, relembrando o artigo de Eric Margollis que citamos anteriormente, Soljenitsin não ganhou inteiro apoio político em seus dezoito anos de exílio nos Estados Unidos, tendo saído paulatinamente da mídia: embora ele tenha sido uma peça importante na campanha antissoviética da Guerra Fria, mesmo os governos capitalistas não podiam apoia-lo sem constrangimentos, como quando publicou um livro abertamente antissemita nos Estados Unidos. De fato, nem os capitalistas mais radicais se interessaram em apoiar o projeto político de Soljenitsin, que é a volta do regime autoritário dos czares em ligação com a igreja russa ortodoxa.

            Assim sendo, Soljenitsin  foi lido de três formas que excluem umas às outras: como realismo socialista (Lukács), como um defensor da liberdade de expressão e um dissidente liberal a favor de Kruschev (Rothberg) e, finalmente, como um defensor da extrema-direita. Nossa hipótese é que essa última hipótese é que é a correta: Soljenitsin é um ficcionista de extrema-direita.

            Mas sua ficção é também muito lida como informação histórica no Ocidente e tratada como bibliografia a respeito da União Soviética. E isso mesmo pelos simpatizantes do marxismo ocidental (como o supracitado Luiz Sérgio Henriques, considerado referência no estudo de Lukács no Brasil e citado ao lado de José Paulo Netto, José Chasin e outros).

 

3. Conclusão

 

A obra ficcional de Alexander Soljenitsin foi esquecida nos últimos anos. Foi citada recentemente a propósito da visita da dissidente cubana Yoani Sánchez ao Brasil pelo teórico lukacsiano Luiz Sérgio Henriques, que sugeriu em artigo recente na revista Pittacos o assunto desse artigo: a leitura dos artigos de Lukács sobre Soljenitsin. Porém, Henriques esqueceu-se, possivelmente, de que esses artigos não foram publicados em português, como aliás, parte significativa da obra de Georg Lukács, cujo livro considerado essencial, Ontologia do Ser Social, só recentemente foi publicado no Brasil. Ao ler o texto Soljenitsin e o Novo Realismo e comentá-lo para esse artigo, o que foi observado é que os pontos de vista de Lukács e Soljenitsin convergem em alguns pontos. Tal não deixa de ser surpreendente, uma vez que, para muitos no Ocidente, Lukács é um marxista ortodoxo, enquanto Soljenitsin, conforme foi verificado depois da queda da União Soviética, era um antissemita, monarquista e religioso fanático, adepto da extrema-direita e peça importantíssima numa campanha de propaganda antissoviética em plena Guerra Fria que o governo da URSS não tolerou. Ao contrário do governo de Kruschev, que estimulou inicialmente Soljenitsin e depois o censurou, proibindo sua campanha antissoviética no Ocidente, o que se nota é que o governo cubano é tolerante com uma campanha semelhante desencadeada por Yoani Sánchez. Nossa hipótese é que a teoria de Lukács sobre Soljenitsin, supondo que a ficção de Soljenitsin seria na verdade um novo realismo socialista, buscando renovar o marxismo, não tem de forma alguma correspondência na realidade e foi, posteriormente, desmentida pelos fatos. A hipótese de Abraham Rothberg é mais próxima da realidade: Soljenitsin de fato era um dissidente do regime soviético. O que Rothberg não deixa entrever é a radicalidade de Soljenitsin contra a URSS, parcialidade visível no artigo Morte de um Titã, de Eric Margollis, após a morte desse verdadeiro titã do anticomunismo. O que é surpreendente que um marxista considerado ortodoxo como Georg Lukács confunda realismo socialista com algo que pode ser considerado como realismo anti-socialista. Ou que de fato teve um uso, no Ocidente, como realismo antissocialista, em meio a uma campanha da Guerra Fria contra a União Soviética. E surpreende que Lukács ainda compare, favoravelmente, mas de acordo com a visão que era também debatida na URSS dos anos 60 e 70, Soljenitsin com Tolstoy, chegando a dizer que ele seria “um novo Tolstoy”. Os elogios não param por aí: O Pavilhão dos Cancerosos, parte da obsessão de Soljenitsin pelo encarceramento, é comparado pelo marxista ocidental Lukács com a prestigiosa obra A Montanha Mágica, de Thomas Mann, pelo fato de que os dois tratam de pessoas colocadas fora de seu meio. As situações extremas são o motivo-guia que irá permitir a comparação que Lukács realiza entre Soljenitsin e Conrad, assim como o escritor russo é também comparado a Ernest Hemingway, autor de pequenos textos curtos como O Velho e o Mar e também bastante famoso e apreciado. Porém, Lukács observa que os personagens de Soljenitsin se movimentam individualmente contra um sistema opressor, com o qual eles, isolados, nunca sentem nenhuma simpatia ou ambivalência. Assim, conclui-se que a visão de Lukács observa Soljenitsin de uma forma complacente, simpática, quem sabe devido ao fato de que Lukács também foi encarcerado duas vezes durante o período Stálin, pelo motivo mesmo de não ser considerado um marxista ortodoxo. Lukács chega a atrelar sua obra a de Soljenitsin, considerado que ela seria uma expressão artística do marxismo renascido após a desestalinização e da liberalização do regime soviético. Assim, Lukács liga-se à visão de Soljenitsin predominante no período Kruschev, quando esse escritor russo foi apoiado oficialmente. E não demonstra, em 1965, estar retrocedendo da posição simpática adotada inicialmente por Kruschev diante daquele escritor e que, desde 62, registra Abraham Rothberg, estava refluindo, com Soljenitsin tendo perdido sua imunidade e tendo sido criticado na imprensa soviética. Há, portanto, três hipóteses sobre a obra de Soljenitsin, aqui inventariadas. Tomou-se partido, então, da hipótese de Mário Sousa, de que a ficção do escritor russo era de extrema-direita, em detrimento da hipótese de Rothberg de que ele seria um liberal e da de Lukács, de que ele seria um marxista e realista socialista. O fundamento para poder afirmar que o projeto político de Soljenitsin era de extrema-direita foram suas posições mais abertamente tomadas depois do fim da União Soviética.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4. Referências bibliográficas:

 

HENRIQUES, Luís Sérgio. O que os dissidentes dizem sobre nós.  <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1556>

 

HOWE, Irving. Lukacs and Solzhenitsyn. Revista Dissent. MIT Press, 1965.

 

LUKÁCS, Georg. SOLZHENITSIN AND THE NEW REALISM. Socialist register. <http://socialistregister.com/index.php/srv/article/view/5957#.UU-IvzdFseo>>

 

MARGOLIS, Eric. The Death of a Titan. <<http://www.bigeye.com/fc081108.htm>>.

 

MARTENS, Ludo. Stalin, Um Outro Olhar. Rio de Janeiro: Ed Revan, 1990.

 

ROTHBERG, Abraham. Os Herdeiros de Stálin. A dissidência e o regime soviético 1953-1970. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1972.

 

SOUSA, Mário. Mentiras sobre a União Soviética. http://republicasocialista.blogspot.com.br/2012/12/mentiras-sobre-historia-da-uniao.html. Acesso em 20 fevereiro de 2013.

 

 

 

sábado, 15 de agosto de 2020

O Caso Mersault


 Romance de Karim Daoud (trecho)

 

 

 

            Hoje, minha mãe ainda está viva.

Ela não diz mais nada, mas ela pode contar bem as coisas. Ao contrário de mim, que ao tentar desenterrar essa história, quase não me lembro.

Eu quero falar de uma história que remonta a mais de meio século. Ela aconteceu e muito se falou sobre ela. As pessoas falam sobre ela, mas só evocam um morto –e não ficam com vergonha em fazer isso, uma vez que existiram dois mortos. A razão desse esquecimento? O primeiro sabia contar, ao ponto de que ele fazer renunciar a fazer esquecer seu crime, então o segundo era um iletrado que Deus criou apenas para receber uma bala e retornar ao pó, um anônimo que não teve nem tempo de ter um sobrenome.

Eu te digo imediatamente: o segundo morto, o que foi assassinado, era meu irmão. Ele não tem nada, a não ser eu, assentado nesse bar, esperando os meus sentimentos que jamais ninguém me dará. Você pode rir, mas é um pouco minha missão: ser o revendedor de uma história de bastidores depois que a cena do teatro está vazia. É por isso que eu aprendi a falar esta língua e a escrevê-la; para falar no lugar de um morto, continuar um pouco suas frases. O assassino tornou-se célebre e sua história está muito bem escrita e por isso tem a vontade de imitá-la. Dar essa língua a ele. É porque eu vou fazer o que fizemos nesse país desde a independência: pegar as pedras das antigas casas dos colonos e fazer uma nossa, uma língua nossa. As palavras e as expressões do assassino são meu mal que veio para bem. O país está cheio de palavras que não pertencem mais a ninguém e que nós percebemos na fachada das velhas lojas, nos livros amarelados, nos rostos, ou transformados pelo estranho dialeto que a descolonização produziu.

Há muito tempo que o meu irmão está morto e há muito tempo que meu irmão cessou de existir –salvo para mim. Você está cansado de colocar perguntas que eu detesto, mas eu espero que você me escute com atenção, você terminará por compreender. Não é uma história normal. É uma história que começa pelo fim e volta ao seu começo., sim como um cardume de salmões desenhado a lápis. Como todos os outros, você vai contar a história que conta sobre o homem que a escreveu. Ele escreve tão bem que as palavras parecem pedras talhadas pela exatidão em pessoa. Era alguém muito severo com as nuances, seu herói, eles os obrigava quase a serem matemáticos. De infinitos cálculos à base de pedra e de minério. Você viu sua forma de escrever? Ele parece usar a arte do poema para falar de um tiro. Seu mundo é limpo, cinzelado pela claridade matinal, claro, traçado...

 

Ondulatória, o Amor é para os Fortes

 

            Esse é um livro de poesias de Eduardo Andrade (Literatura em Cena, 2019) onde o que me fascina é a imagem da onda, das ondulações. Eduardo continua na linha de valer-se do cotidiano e das falas ditas na clínica para fazer poemas e prosa poética. A moça disse que o dedo era podre, mas não era o dedo físico: era no sentido figurado. E aí Eduardo teve uma epifania: “naquele momento percebi que o podre é o abandono do cuidado interno que inclina-se a repetições cegas. Anulação própria do luxo angustiante de poder escolher. A repetição é uma prisão e a pior cegueira é a de que não olha para dentro de si”. Ele desenvolve, então, uma curiosa teoria das ondulatórias psíquicas: “era das ondulatórias psíquicas, que na tentativa de serem caladas, falavam gritando pelas pontas do dedo. O ato refaz o corpo. A existência quando calada, grita pelos poros que encontram! Não se esconde de si mesmo”. É como se uma questão, ao não ser falada pelo analisando, falasse em si em seu corpo, falasse por si própria dentro dela ou dele.

            Em resposta, sua poética fala: fala das ondulatórias das águas (“estrias líquidas”), da labirintite psíquica ao sair da sessão de análise (sair trocando as pernas?), da poesia enquanto nudes da alma. Outra imagem da ondulação: “na lisura do seu macio cabelo escorre brincando a esperança no humano; a esperança é uma criança”. O amor é uma onda que só pode ser navegável pelas sutilezas dos fortes.  Eduardo utiliza-se de uma citação do livro Mulheres de Bukowski, que diz que o sexo, para a maioria das pessoas, e só dar corda, o que nos remete à imagem de pular corda, o que também é uma imagem da onda, da ondulação.Daí que,  concluindo, o poeta reflete que o amor só é suportável para quem aguenta a sobrecarga psíquica, ou seja, o sexo pode até ser para a maioria das pessoas, mas o amor é para quem não é fraco em termos psíquicos, é para os fortes, como diz o título, como os que fazem terapia, por exemplo.

 

 

 

Ainda que o o Amor seja para todos, Amar não é para Qualquer Um

 

            Nesse livro, juntamente com o Ondulatória, ambos de 2019, Eduardo elabora uma poética que parte de observações do cotidiano, de onde tira epifanias, no sentido de revelações do sagrado, da beleza, da leveza, das lições da vida. O livro não tem poesias propriamente no formato de versos: utiliza-se do formato de crônicas, prosa poética. Ele é muito perspicaz em notar que o ódio tem sua face erótica: atrito, bater boca: “atrito. É briga, é contato”. Suas palavras e observações são mamíferas, sugam o leite das coisas. No poema a invasão das decisões, ele observa que as pessoas chegam para as outras, sem ter conquistado liberdade para isso, e já imperam pelo imperativo do dizer o que esta deve ou não fazer (...). Geralmente o resultado da justificativa é das próprias questões e não de uma acolhida da história da pessoa”. É muito curioso o trabalho da linguagem com uma frase como “seja a si mesmo”, que remete ao “torna-te quem és”, de Píndaro, ou o conhece- te a ti mesmo, de Sócrates. Eduardo observa que ninguém tem uma identidade pronta, somos verbos. Ser a si mesmo é ser plural, pois não podemos dizer que temos uma identidade una, que não somos e, a partir de um certo ponto, passamos a assumir uma determinada identidade. O que se tem é um melhor ajuste, é estar melhor resolvido ao encontrar-se enquanto pertencente a uma determinada tribo (gays, funkeiros, etc), ao descobrir em si mesmo um talento que os outros reconhecem. Eduardo contesta a ideia de beleza, em especial quando trata-se de um discurso voltado para a mulher. A feminista é sempre feia para os controladores de plantão. Chamar de feia é uma estética vazia. Ele diz a respeito: “é feio o outro escancarar assim os desejos que tanto se luta por reprimir. Feio é sentimento que brota na epiderme estética, mas que diz de como percebemos tal coisa. Nada é feio sem interpretação. Feio é estado de espírito! Nada é bonito quando se está bem consigo”. Feio, analisa ele, é um estado de espírito, ele acredita em beleza interior, feio é um nome que damos para espelhar o que de dentro temos. O que me lembra a frase de Jorge Amado para responder a Vinícius: “algumas mulheres feias são irresistíveis”.

João Dalvi X Jones Manoel

 


Não fosse a falta de tempo, trabalho esposa, casa e filho, eu te daria uma resposta. Não porque eu seja algum teórico ou intelectual. Porque, assim como você, eu não sou. Mas quando a "critica" é tão rasa e vazia de significado basta ter bom senso e o mínimo conhecimento do marxismo, da história do Brasil e de nossa intelectualidade para o fazer. O centro do seu vídeo é a criação de um espantalho para poder atacar, já que você não tem condições de atacar o objeto em si. Sua afirmação de que os maoistas do Brasil fazem um transplante mecanicista e dogmático de teoria é simplesmente falso. Sem entrarei no mérito de que o próprio pcbrasileiro faz exatamente aquilo de que você acusa o maoismo fazer. Me contento em afirmar que isso é pura e simplesmente mentira. Mentira organicamente, quem conheceu ou participou de algum movimento desses conhece e sabe muito bem que a realidade é o completo oposto do ué você afirma. É mentira historicamente, na questão da semi feudaridade, porque décadas antes de existirem maoistas no Brasil, intelectuais da envergadura de Nelson werneck Sodré e Josué de Castro já eram ávidos defensores da caracterização do Brasil como pais semi feudal, e deixavam bem claro como era importante que essa caracterização fosse feita da forma correta. Essa informação, você ou desconhece, mostrando que não sabe do que fala, ou você omitiu justamente porque ela ataca uma das bases do espantalho que você criou para bater, que é a de que a semifeudaridade do Brasil é um transplante mecanicista feito pelos maoistas e não uma análise concreta da realidade concreta que os comunistas defenderam por muito tempo no Brasil e que não tem nada que ver com os maoistas, estes nem sonhavam ainda em existir. Logo, ao menos sobre esse assunto, ou você é um desinformado, ou é um charlatão, que está tentando enganar as pessoas de propósito. Eu lhe recomendo sair do apartamento e ir conhecer o país que você mora. De uma volta no campo, no Pará, Rondônia, Bahia, norte de Minas, Espírito Santo. Vá ver quantos camponeses recebem salário e quantos vivem em regime de terça e meia. Vá ver as expressões da semi feudaridade que atravessam séculos de latifúndio na mentalidade da classe dominante brasileira, na vida das próprias cidades, etc. Pergunte-se porque será que o maior movimento social do mundo é justamente um movimento camponês brasileiro: o MST. Que, diga-se de passagem, historicamente mobilizou a massa camponesa para tomada de terras, pela reivindicação da propriedade da terra e não por salários, jornada de trabalho ou outras pautas da classe Operária. Seria muito engraçado, se não fosse trágico, a quantidade de pessoas sendo induzidas ao erro por um garoto arrogante desses que não sabe do que fala, e acha que entende melhor do que gente que dedica sua vida a isso na prática do fogo da luta de classes. Que se dedica a ver na prática a validade da teoria, como o prosiduntu mão Tsetung nos ensinou. E o fazem lutando ao lado do povo, vivendo e morrendo, e trabalhando ao seu lado. Se tem alguém hoje além de alguns dirigentes regionais do MST, que entende muito bem da aplicação da teoria na prática da luta de classes, especificamente do campo e das relações de trabalho que ele engendra, são os maoistas e organizações de massas COMO a LCP. Você, garoto, das duas uma: ou não sabe do que fala, ou sabe mas está enganando as pessoas porque é incapaz de fazer uma crítica real do maoismo enquanto teoria e enquanto pratica política. Afinal, como ensinava o presidente mao, a prática é o critério da verdade. Comparem a prática do maoismo no Brasil com a prática do pcbrasileiro, um eterno partido eleitoral inexpressivo que existe para ser linha auxiliar de outros partidos da direita liberal travestida de esquerda ou polidos pós modernos. Vocês estão inconformados por estarem perdendo militantes que enxergaram que se queriam participar da revolução brasileira, estavam no partido errado. Esta que é a realidade. Deixa eu te contar uma coisa. Vão continuar perdendo militantes justamente por causa desse tipo de polêmicas quixotescas que vocês não tem a mínima condição de sustentar. Um forte abraço!