Lukács e o realismo antissocialista de Soljenitsin
Adriano Alves
Andreza Vale
Resumo
Esse artigo
busca investigar um ensaio de Lukács sobre o dissidente russo Soljenitsin,
motivado por comentários recentes a respeito de um possível paralelo entre
Soljenitsin e a dissidente cubana Yoani Sánchez. Lukács considerou, ao analisar
os romances de Soljenitsin, que esse escritor era um renovador do marxismo, ou
ainda, um renovador que estava trazendo o realismo socialista de volta aos
primórdios. O tempo não confirmou essas expectativas de Lukács, traçadas em 65.
Outra hipótese a respeito de Soljenitsin foi elaborada por Abraham Rothberg em
seu livro Herdeiros de Stálin: o escritor russo seria um entusiasta da
liberdade de expressão e tinha sido apoiado por Kruschev. Seria, então, um
dissidente liberal, não um marxista ou realista socialista. Mesmo essa hipótese
deve ser deixada em suspenso diante das atitudes de Soljenitsin depois da queda
da URSS, quando ele se manifestou a favor de um regime que ligasse a igreja
ortodoxa ao regime czarista, apresentada em texto de Mário Sousa e do
norte-americano Eric Margollis. Assim, a hipótese com que finalizou-se essa
pesquisa foi que Soljenitsin elaborava um realismo antissocialista, buscando
principalmente através de sua ficção apoiar o seu projeto político de
extrema-direita, embora ele não assumisse diretamente essas posições
reacionárias em seus primeiros tempos de União Soviética.
Palavras-chave:
dissidência, liberalismo, realismo socialismo, Lukács, Soljenitsin, crítica
literária
Abstract
This paper investigates an essay by
Lukács on Russian dissident Solzhenitsyn, motivated by recent comments about a
possible parallel between Solzhenitsyn and Cuban dissident Yoani Sánchez.
Lukacs considered when analyzing Solzhenitsyn's novels, which this writer was a
renovator of Marxism, or even a renovator who was bringing socialist realism
back to the beginnings. The weather did not confirm these expectations Lukacs,
drawn in 65. Another hypothesis about Solzhenitsyn was drafted by Abraham
Rothberg in his book Heirs of Stalin: Russian writer was an enthusiast of free
speech and had been supported by Khrushchev. It would then be a dissident
liberal, not a Marxist or socialist realist. Even this hypothesis should be
left open on the attitudes of Solzhenitsyn after the fall of the USSR, when he
came out in favor of a system that would link the Orthodox Church to tsarist
regime, presented in text Mário Sousa and American Eric Margollis . Thus, the
hypothesis that ended up with this research was that Solzhenitsyn elaborated
antissocialista realism, seeking mainly through his fiction support their
political project of far-right, although he did not directly assume these
positions reactionary in their early days of the Soviet Union .
Keywords: dissent, liberalism,
socialist realism, Lukács, Soljenitsin, literary critics
Introdução
Recentemente, em um artigo na revista Pittacos,
o teórico marxiano Luiz Sérgio Henriques comparou os romances do dissidente
russo Soljenitsin aos textos da polêmica blogueira Yoani Sánchez, cuja turnê
anticomunista motivou uma avalanche de polêmicas e ganhou até capa da revista Veja no mês de fevereiro [deste ano
corrente de 2013].
Henriques sugeriu a leitura dos
romances do escritor russo. O motivo está presente no próprio título do artigo:
deveríamos saber “O que os dissidentes dizem sobre nós”. Nós, ele quer dizer: a
esquerda. A seguir, ele ainda sugere a leitura dos ensaios de Georg Lukács
sobre Soljenitsin, que, segundo ele, romperam uma barreira nos anos 60.
Henriques julga que são obras-primas da literatura e denúncias fundamentais do
“stalinismo”.
No entanto, ao pesquisar, descobrimos que os textos de Georg Lukács sobre
Soljenitsin não foram publicados em português. Esse artigo busca debater um desses
textos, Soljenitsin e o Novo Realismo,
aproveitando a provocação lançada por Luís Sérgio Henriques. Supomos que essa
leitura poderia trazer surpresa até mesmo para
autor que os recomendou.
1. Lukács e sua
crítica a Soljenitsin
Em primeiro, é preciso começar essa polêmica contextualizando para os
leitores quem foram Georg Lukács (1885-1971) e Alexander Soljenitsin
(1918-2008). George Lukács era considerado um intelectual comunista herege, mas
ao mesmo tempo, também era considerado no Ocidente como um teórico do realismo
socialista. Em seus ensaios sobre Soljenitsin, confrontam-se Lukács, um
marxista supostamente atualizado e heterodoxo (mas que também fora preso duas
vezes, uma vez em 1940 e depois em 56), e Soljenitsin, um oponente público do
partido soviético. Curiosamente, o que se deu é que os pontos de vista de ambos
se aproximam.
Lukács, mesmo em seu livro recém traduzido no Brasil, Ontologia do Ser Social, é um autor que
está sempre no meio de uma discussão muito técnica sobre o marxismo, que ele
prefere chamar de “crítica marxiana”. Em seus ensaios sobre Soljenitsin,
pode-se dizer que Lukács expressa com fervor a aversão que sentia pelo
“stalinismo”. Sobre Um Dia na Vida de
Ivan Denisovich, Lukács se entusiasma e escreve que "o campo de
concentração é um símbolo da vida cotidiana stalinista”. E ainda vai mais além.
Lukács apresenta-se convicto de que os romances de Soljenitsin contribuíam para
o verdadeiro marxismo ao combaterem as distorções stalinistas:
E, é evidente que a verdadeira maneira de manter a fé
é rejeitar distorções stalinistas e, desse modo, consolidar e aprofundar todos
os realmente marxistas, com convicções socialistas realmente, ao mesmo tempo,
preparando-os para enfrentar problemas novos (LUKÁCS, 1965, p. 214).
Embora o próprio Soljenitsin tenha sido, durante algum tempo, apoiado e
editado pelo líder soviético Kruschev e a república popular húngara, nos anos
60, enfeitasse muita coisa que editava com citações do próprio Lukács, as
diferenças entre Stálin e os que o sucederam são negadas. Lukács aparentemente
repudiou também Kruschev e Brejnev, "com todas as suas mudanças que preservam
os métodos essenciais do stalinismo, com apenas modificações superficiais".
E há uma série de passagens assim, afinal, bastante reveladoras do que pensa Lukács.
Ele sempre fala de Soljenitsin como alguém com grande estatura moral,
aprovando-o como alguém que mostra independência e coragem. No livro O Primeiro Círculo, Lukács praticamente
aceita como típico um personagem que, prisioneiro na União Soviética, ainda
permanece um marxista ortodoxo. Soljenitsin narra que considera o personagem
decente, mas ainda marxista. Para Lukács, os “campos de concentração eram
símbolo do dia a dia da vida stalinista”. Mas Lukács admira também o
Soljenitsin escritor. Lukács, programaticamente antimodernista, admira o
escritor que não faz utiliza técnicas experimentais em sua narrativa. Tanto
como Pasternak quanto Soljenitsin voltam às formas realistas do século XIX, daí
a simpatia de Lukács pela narrativa bastante tradicional de Soljenitsin.
Lukács compara Um Dia Na Vida de
Ivan Denisovich com as novelas curtas de Conrad e Hemingway. Ele escreve
que esses romances falam de um indivíduo colocado em uma situação extrema. O
sanatório dos tuberculosos descrito por Soljenitisin é associado a Thomas Mann
e A Montanha Mágica. Depois de
associar Mann e Soljenitsin (comparação bastante lisonjeira para com o autor
russo), Lukács ainda afirma que “as obras de Soljenitsin aparecem um
renascimento dos nobres primórdios do realismo socialista.” Como referência de
realismo socialista, Lukács considera como referência o escritor soviético
Makarenko. Essa é a hipótese de Lukács, que julgamos desmentida pelos fatos
posteriores. Pode-se supor que Soljenitsin fez justamente o contrário: realismo
anti-socialista.
De um ponto de vista predominantemente favorável, assim mesmo Lukács fez
críticas a Soljenitisin no sentido de que o escritor escreve do ponto de vista
de uma mente “plebéia” e não de uma consciência socialista. Mas, logo em
seguida, ele associou esse suposto ódio plebeu ao privilégio social ao
personagem Platon Karatayev de Guerra e Paz (de Leon Tolstoy).
Soljenitsin foi aproximado a Tolstoi em suas inclinações religiosas. A respeito
de quais são verdadeiramente as inclinações de Soljenitisin, vale a pena
incluir uma observação sobre o que disse o colunista Eric Margollis quando da
morte de Soljenistin em 2008, finalizando um artigo claramente elogioso,
intitulado a Morte de um Titã:
Em seguida, ele [Soljenitsin] publicou um livro sobre
um assunto até então tabu, o papel proeminente de judeus russos no Partido
Comunista e na polícia secreta. O livro provocou uma tempestade de críticas na
América do Norte. Solzhenitsyn foi marcado como antissemita e rapidamente se
tornou uma não-pessoa pela segunda vez. Solzhenitsyn retornou à nova Rússia,
após a queda do comunismo e tornou-se o principal expoente do culto revivido e
reacionário do século 19, o nacionalismo pan-eslavo. Ele defendia a Igreja Ortodoxa
da Rússia como guardiã da alma da nação, proclamou o destino manifesto da
Rússia e defendeu uma forma de czarismo moderna, que se parece muito com aquela
levada adiante hoje no Kremlin por Vladimir Putin e Dimitri Medvedev
(MARGOLLIS, 2008).
Assim, o “plebeu” era na verdade um reacionário ortodoxo, cuja escrita
aparentemente reforça o seu projeto, ainda que, nos anos 60 (ou seja, no
período que estamos tratando), ele não pudesse ainda mostrar quem realmente
era. Pelo contrário, Soljenitsin é lido como um autor que defende a linha
adotada por Kruschev no congresso onde começou a desestalinização e que deseja
o aprimoramento –e não a derrocada – do regime. Mas agora, de acordo com
Margollis, sabemos qual é a verdade. A avaliação de Lukács, em seu texto Soljenitisin e o Novo Realismo, não
poderia ser mais equivocada, quando a lemos à luz dos acontecimentos de 1965
para cá:
O mundo socialista, hoje, está às vésperas de um
renascimento do marxismo, que não é chamado simplesmente a restaurar o sistema
original, distorcido de modo grave por Stalin, mas que será dirigido em
primeiro lugar a uma plena compreensão dos novos dados da realidade pela luz
dos conceitos, do ao mesmo tempo novo e velho, marxismo genuíno (LUKÁCS,
1965, p. 203).
Aqui já temos que fazer uma observação: o pensamento de Stálin é ligado
ao marxismo-leninismo. É também marxismo genuíno. Essa suposta dissociação
entre “bolchevismo e stalinismo” foi primeiro realizada por Leon Trotsky em um
famoso ensaio e generalizou-se como uma convicção no chamado “marxismo
ocidental”, mas não encontra base na realidade. Lukács vai ainda mais longe.
Ele atou o destino de seu marxismo ao realismo de Soljenitsin. Será que ele
sabe que Soljenitsin era um realista anti-socialista, como mostrou
posteriormente? Não há como responder a essa questão em termos simples. Pode-se
dizer que possivelmente Lukács achou conveniente não ser objetivo a respeito a
aderir a uma nova onda:
No campo literário, uma cobrança idêntica enfrenta o
realismo socialista. Qualquer continuação do que foi elogiado e homenageado na
era Stalin como realismo socialista seria inútil. Mas estou convencido de que
eles [os críticos liberais] estão igualmente equivocados em profetizar uma
sepultura precoce para o realismo socialista, e querem rebatizar como
"realismo" praticamente tudo, desde a [o que se produz na] Europa
Ocidental até o expressionismo e futurismo, assim como abolir todo o uso do
termo "socialista". Quando o socialismo retoma sua verdadeira
natureza, e sente-se mais uma vez sua responsabilidade artística em face dos
grandes problemas da sua época, forças poderosas podem ser colocadas em
movimento para a criação de uma nova literatura socialista da atualidade. Em
meio a um processo de transformação e renovação que implica para o realismo
socialista uma brusca mudança de direção daquela da era de Stalin, a história
de Solzhenitsyn constitui, na minha opinião, um marco no caminho para o futuro
(LUKÁCS, 1965, p. 203).
Mas de fato é muito surpreendente que Lukács tenha de fato analisado
Soljenistin e afirmado que o material do “realismo socialista” de Soljenitsin
era, agora, a avaliação crítica objetiva – e não distorcida ou reacionária-- da
era de Stálin. Os personagens de Soljenitsin estão sempre esmagados pelo poder
do aparelho repressivo. Lukács parece aceitá-los como ilustrativos do período
Stálin – e sem fazer observações críticas. Pelo contrário, o fato de
Soljenitsin abordar temas sociais e políticos em uma perspectiva reacionária e
contrapor o indivíduo ao estado é visto por Lukács como uma benéfica fuga do
subjetivismo de Kafka e do experimentalismo de Beckett, que para estão
embebidos do niilismo da época que deu Hitler. Diferente do individualismo
presente em romances de Conrad ou Hemingway, onde a luta é contra uma força da
natureza, Soljenitsin traria a esperança da renovação do realismo socialista,
embora fique evidente seu enfoque seja o tempo todo criticar o socialismo como
um todo. Lukács arriscou uma hipótese ousada quando viu nessa perspectiva o
renascimento do marxismo.
Soljenitisin transformou um dia normal em um campo anônimo num símbolo
literário de um passado ainda não digerido, retratado em tons de cinza sobre
cinza. Lukács citou com aprovação até mesmo frases como “o melhor lugar que se
podia estar é a prisão”. E pode-se dizer também que os textos de Soljenitsin,
como o romance Arquipélago Gulag,
conseguiram estabelecer ligações entre os campos de concentração nazifascistas
e as prisões comunistas sob Stálin. Soljenitsin pretende, em sua ficção,
apresentar uma descrição autêntica da vida, dando a seus textos o cunho de denúncia
política bastante didática. Se em Conrad e Hemingway, o indivíduo pode sentir
simpatia pelas forças da natureza que se opõe, em Soljenistin ele não tem
nenhuma simpatia pelo sistema social e político que o oprime.
Pode-se dizer, então, que o filósofo e crítico literário húngaro Lukács
não só aceitou Soljenitsin como renovador do realismo socialista como associou
seu reaparecimento a um suposto “renascimento do marxismo” que seria,
possivelmente, orientado e reforçado pelas obras de Soljenitsin. O que se sabe,
porém, é que algo de bem diferente se basou após a queda de URSS, com
Soljenitsin assumindo uma posição não só anticomunista, mas também como um
monarquista religioso de extrema-direita. A avaliação de Lukács mostrou-se,
então, equivocada. É bem provável que Soljenitsin voltava os cânones do
realismo socialista contra ele próprio, confundindo-se, nesse ínterim, com um
verdadeiro realismo socialista. A seguir vamos analisar como um crítico
literário norte-americano, o professor Abraham Rothberg, leu Soljenitsin nos
anos 70.
2. Soljenitsin
na obra de Rothberg: um liberal dissidente
No livro Os Herdeiros de Stálin, o
professor Abraham Rothberg apresenta Soljenitsin de forma diferente da leitura
acima realizada por Lukács. Rotberg contextualiza o surgimento de Soljenitsin
como escritor como parte de um movimento mais geral de desestalinização e de
liberalização por parte de Nikita Kruschev. Soljenitsin começou, então, a ter
seus livros editados não contra, mas apoiado pelo poder; no caso, pelo secretário-geral
Nikita Kruschev. O primeiro texto que Soljenitsin lançou foi Um Dia na Vida de Ivan Denisovich,
publicado na revista Novy Mir:
O número da
revista esgotou-se logo. Cem mil exemplares de Ivan Denisovich em forma de livro esgotaram-se também rapidamente .
Ao mesmo tempo, publicações oficiais lançavam uma campanha coordenada para dar
o máximo de publicidade ao romance: Soviet
Literature o traduziu para o inglês; Moscou
News, semanário de consumo de estrangeiros, foi autorizado a publicar uma
versão em série; e Izvestia e outros
jornais não literários publicaram resenhas altamente favoráveis ao livro. Pravda, por exemplo, comparou
favoravelmente Solzhenitsyn com Tolstoy (ROTHBERG, 1972, p. 70).
Como se pode ver acima, Soljenitsin
foi lido favoravelmente por Kruschev como uma peça a mais na desestalinização e
liberação, ou seja, ao mesmo tempo ele foi acolhido como um liberal e como um
sucessor de Tolstoy. A citação de Tolstoy é uma indício de que já se sabia do
aspecto religioso da obra de Soljenitsin, aspecto que depois veio à tona mais
vigorosamente (ROTHBERG, 1972, p. 71).
Um Dia na Vida provocou uma
tempestade de críticas tanto ao autor quanto o periódico. Logo a seguir, a
mesma revista publicou um outro romance curto, Pelo Bem da Causa, igualmente provocando polêmica: para uns, a
publicação de Soljenitsin era saudada como signo de liberalização, para outros
era tido como narrativa exagerada e tendenciosa, que faltava com a verdade
quanto ao que foi o período retratado. Já para Rothberg, a posição de
Soljenitsin seria de dissidência liberal assumida, muito diferente da posição
intermediária de um Lukács. Ele não adota a hipótese de que Soljenitsin esteja
querendo renovar o realismo socialista e também não o associa ao marxismo,
senão ao liberalismo. Leia-se seu comentário a respeito em Herdeiros de Stálin:
Se Ivan
Denisovich foi um impacto para os dogmatistas da velha guarda, porque
revelava a injustiça e a crueldade não como matéria acidental, mas com política
do estado, o romance, afinal de contas, decorria no início da década de 50, na
era de Stálin, a uma distância no tempo tão longe, que os fatos poderiam ser
“controlados”, atribuindo-se-lhes ao passado que não se deveria mais repetir.
Mas Pelo Bem da Causa era um ataque
explícito aos remanescente estalinistas ainda presentes no sistema soviético,
uma investidura contra burocratas mesquinhos e arbitrários, que os retratava
como carreiristas impiedosos, ambiciosos e autoritários; e tempo era o
presente. O fato de Kruschev ter permitido sua publicação só pode ser atribuído
à necessidade de revitalizar a economia estagnada, o que esperava pudesse ser
conseguido com a eliminação da inflexibilidade dogmática dos burocratas
estalinistas (ROTHBERG, 1972, p. 119).
O pequeno romance (“novela”) em questão,
Pelo Bem da Causa, conta a história
de como um pequeno grupo de jovens ajuda a construir um novo prédio escolar
poderem estudar, uma vez que o prédio anterior era velho e inadequado e como,
depois de concluída a construção, eles a perdem para os burocratas e
carreiristas. Um personagem em especial, Knorozov, representou, na narrativa, o
burocrata stalinista.
O texto causou polêmica porque o crítico Yuri Barabash, do jornal Literaturnaya Gazeta, comentou que
Soljenitsin teria criado em Knorozov uma caricatura, um símbolo irreal do
período Stálin. Através das análises de Rothberg pode-se notar que havia um
debate público a respeito de Stálin, literatura e política na União Soviética,
ao contrário da imagem que se tenta passar nos últimos anos, de um regime
tirânico, que não permitiu crítica alguma e vigia os seus cidadãos no dia a
dia. O texto Os Herdeiros de Stálin registrou, inclusive, a existência de uma
imprensa alternativa na URSS, os chamados “samizdats”, jornais clandestinos em
que circulavam materiais não liberados pela censura, chegando inclusive ao
Ocidente. Como a URSS não participava das convenções internacionais de direitos
autorais, muito material era contrabandeado para o exterior. Soljetinsin era
elogiado e criticado na imprensa soviética. Como se pode ler em Rothberg:
No início de janeiro, a imunidade de Soljenitsin ao ataque começou também
a ruir. Lydia Fomenko o censurou por não ter deixado de erigir uma percepção
filosófica do período estalinistas em Ivan Denisovich, e por ter deixado de
compreender que o povo e o Partido andaram bem em construir o socialismo,
apesar de Stálin. Era a crítica que começava numa campanha contra Soljenitsin,
crítica que iria crescer e se tornar o meio de o regime tratar o problema dos
herdeiros de Stálin. O socialismo, o que quer que fosse, tinha sido construído
pelo povo e, por extensão, pelo Partido, mesmo enquanto Stálin cometia seus
erros e suas distorções. Os apologistas apontavam para as realizações da
industrialização soviética e para a vitória sobre a Alemanha nazista como
provas positivas de que eles –o Partido e o povo, o Partido conduzindo o povo
–tinham realizado como distinto do que ele –Stálin –tinha desviado ou
distorcido. Uma vez entregue a essa apologia, os líderes do Partido tinham de
reabilitar Stálin, pelo menos em parte, de modo que sua lógica e sua história,
embora deficientes e deformadas, não parecessem inteiramente absurdas
(ROTHBERG, 1972, p. 84).
A partir desse momento, portanto, que ocorreu no ano de 1962, a suposta
preferência de Kruschev por Soljenitsin se abrandou. Naquele ano, uma
conferência de escritores deu um basta à liberalização e à desestalinização. O
grupo dos escritores liberais tais como Yevtuchenko, Ehrenburg e Nekrassov
passou a ser criticado e Kruschev ficou especialmente irritado com uma
exposição de arte abstrata na URSS. Ele passou, então, a afirmar que não ia
aceitar mais desvios do realismo socialista. Passou-se a criticar Ehremburg,
assim como outros escritores, entre os quais Soljenitsin, pela forma como a propaganda
ocidental utilizava suas obras, ou seja, como uma propaganda contra o
socialismo como um todo (ROTHBERG, 1972, p. 85).
A leitura de Soljenitsin, assim, alimentava-se mais e mais de um interesse
político. Outro ponto presente em sua literatura e já registrado por Rothberg
foi a associação que Soljenitsin causava, entre os campos de concentração do
tempo de Stálin e os campos fascistas. Esse ponto foi fortemente o ponto que
foi ressaltado no Ocidente nos anos 70, quando Soljenitsin mudou para o exterior
e radicalizou suas posições em
O Arquipélago Gulag (ROTHBERG, 1972, P. 85).
3. Soljenitsin: uma literatura fascista?
Embora de início associada à
liberalização, Soljenitisin entrou em choque com o poder soviético no decorrer
do final dos anos 60 e, no início dos anos 70, abandonou a URSS, obtendo, no
entanto, grande sucesso no Ocidente. O governo soviético exigiu que Soljenitsin
não participasse de uma campanha internacional de difamação da União Soviética,
mas Soljenitsin negou-se a aceitar. Assim, depois de estimulados, seus livros
passaram a sofrer censura.
Enquanto isso, na União Soviética,
sua peça A Festa dos Conquistadores
provocava polêmica. Segundo Soljenitsin, a peça teria sido apreendida
ilegalmente pela polícia política. Por outro lado, as autoridades alegavam que
a peça tinha sido obtida junto a estrangeiros que contrabandeavam manuscritos
de dissidentes russos para o ocidente. A peça, também escrita durante o período
de encarceramento de Soljenitsin, apresentava o exército vermelho com um
exército de vândalos e estupradores e simpatizava abertamente com o general
Vlassov, que se passou para o lado dos nazistas durante a II Guerra. A polêmica
em torno da peça fazia supor que a condenação pela qual Soljenitsin fora
aprisionado em 1946 tinha sido motivada por sua simpatia aos nazistas ainda em
plena II Guerra Mundial. Ao contrário do regime cubano hoje em dia, que tolera
que a dissidente Yoani Sánchez mova uma campanha internacional de difamação e
calúnia, tal não foi tolerado pelo governo soviético em plena Guerra Fria.
A hipótese do marxista português Mário Sousa sobre Soljenitsin é a última
que iremos analisar: ele parte do pressuposto de que sua ficção reforça um
projeto político de extrema-direita.
No Ocidente, Soljenitsin lançou o livro Arquipélago Gulag, radicalizando sua visão sobre as prisões ao
tempo de Stálin. Em 1970, Soljenitsin
ganhou o prêmio Nobel de literatura, mas o texto passou a ser lido no Ocidente
como uma peça de propaganda anticomunista e
não uma ficção. Até hoje essa leitura de sua obra é bastante comum. Em 1974, Soljenitsin emigrou para a Suíça e
depois para os Estados Unidos. Sua suposta simpatia pelos nazis não era, então,
abertamente discutida.
As posições de Soljenitsin no
Ocidente eram abertamente anticomunistas: propôs atacar o Vietnã mesmo depois
do fim da guerra, discursou no senado norte-americano, assim como foi orador no
sindicato conservador AFL-CIO. Dentre outras posições conservadoras, defendeu a
intervenção dos USA para coibir a Revolução dos Cravos em Portugal. Ele também
lamentou a libertação das colônias portuguesas da África. Soljenitsin inspirou
a série Rambo, ao alegar que existiam
norte-americanos trabalhando como escravos no Vietnã do Norte, assim como
apoiou o regime fascista de Francisco Franco na Espanha, opondo-se e prevenindo
as pessoas contra as reformas democráticas depois da morte de Franco, em 1975,
quando o rei começou, timidamente, uma liberalização democrática. Soljenitsin
contrastou, em entrevista no horário nobre, os cento e dez milhões de russos
que morreram vítimas do socialismo com a liberdade que se desfrutava na
Espanha. Assim, relembrando o artigo de Eric Margollis que citamos
anteriormente, Soljenitsin não ganhou inteiro apoio político em seus dezoito
anos de exílio nos Estados Unidos, tendo saído paulatinamente da mídia: embora
ele tenha sido uma peça importante na campanha antissoviética da Guerra Fria,
mesmo os governos capitalistas não podiam apoia-lo sem constrangimentos, como
quando publicou um livro abertamente antissemita nos Estados Unidos. De fato,
nem os capitalistas mais radicais se interessaram em apoiar o projeto político
de Soljenitsin, que é a volta do regime autoritário dos czares em ligação com a
igreja russa ortodoxa.
Assim sendo, Soljenitsin foi lido de três formas que excluem umas às
outras: como realismo socialista (Lukács), como um defensor da liberdade de
expressão e um dissidente liberal a favor de Kruschev (Rothberg) e, finalmente,
como um defensor da extrema-direita. Nossa hipótese é que essa última hipótese
é que é a correta: Soljenitsin é um ficcionista de extrema-direita.
Mas sua ficção é também muito lida
como informação histórica no Ocidente e tratada como bibliografia a respeito da
União Soviética. E isso mesmo pelos simpatizantes do marxismo ocidental (como o
supracitado Luiz Sérgio Henriques, considerado referência no estudo de Lukács
no Brasil e citado ao lado de José Paulo Netto, José Chasin e outros).
3. Conclusão
A obra ficcional de Alexander Soljenitsin foi esquecida nos últimos anos.
Foi citada recentemente a propósito da visita da dissidente cubana Yoani
Sánchez ao Brasil pelo teórico lukacsiano Luiz Sérgio Henriques, que sugeriu em
artigo recente na revista Pittacos o
assunto desse artigo: a leitura dos artigos de Lukács sobre Soljenitsin. Porém,
Henriques esqueceu-se, possivelmente, de que esses artigos não foram publicados
em português, como aliás, parte significativa da obra de Georg Lukács, cujo
livro considerado essencial, Ontologia do
Ser Social, só recentemente foi publicado no Brasil. Ao ler o texto Soljenitsin e o Novo Realismo e
comentá-lo para esse artigo, o que foi observado é que os pontos de vista de
Lukács e Soljenitsin convergem em alguns pontos. Tal não deixa de ser
surpreendente, uma vez que, para muitos no Ocidente, Lukács é um marxista
ortodoxo, enquanto Soljenitsin, conforme foi verificado depois da queda da
União Soviética, era um antissemita, monarquista e religioso fanático, adepto
da extrema-direita e peça importantíssima numa campanha de propaganda
antissoviética em plena Guerra Fria que o governo da URSS não tolerou. Ao
contrário do governo de Kruschev, que estimulou inicialmente Soljenitsin e
depois o censurou, proibindo sua campanha antissoviética no Ocidente, o que se
nota é que o governo cubano é tolerante com uma campanha semelhante
desencadeada por Yoani Sánchez. Nossa hipótese é que a teoria de Lukács sobre
Soljenitsin, supondo que a ficção de Soljenitsin seria na verdade um novo
realismo socialista, buscando renovar o marxismo, não tem de forma alguma correspondência
na realidade e foi, posteriormente, desmentida pelos fatos. A hipótese de
Abraham Rothberg é mais próxima da realidade: Soljenitsin de fato era um
dissidente do regime soviético. O que Rothberg não deixa entrever é a
radicalidade de Soljenitsin contra a URSS, parcialidade visível no artigo Morte de um Titã, de Eric Margollis,
após a morte desse verdadeiro titã do anticomunismo. O que é surpreendente que
um marxista considerado ortodoxo como Georg Lukács confunda realismo socialista
com algo que pode ser considerado como realismo anti-socialista. Ou que de fato
teve um uso, no Ocidente, como realismo antissocialista, em meio a uma campanha
da Guerra Fria contra a União Soviética. E surpreende que Lukács ainda compare,
favoravelmente, mas de acordo com a visão que era também debatida na URSS dos
anos 60 e 70, Soljenitsin com Tolstoy, chegando a dizer que ele seria “um novo
Tolstoy”. Os elogios não param por aí: O
Pavilhão dos Cancerosos, parte da obsessão de Soljenitsin pelo
encarceramento, é comparado pelo marxista ocidental Lukács com a prestigiosa
obra A Montanha Mágica, de Thomas
Mann, pelo fato de que os dois tratam de pessoas colocadas fora de seu meio. As
situações extremas são o motivo-guia que irá permitir a comparação que Lukács
realiza entre Soljenitsin e Conrad, assim como o escritor russo é também
comparado a Ernest Hemingway, autor de pequenos textos curtos como O Velho e o Mar e também bastante famoso
e apreciado. Porém, Lukács observa que os personagens de Soljenitsin se
movimentam individualmente contra um sistema opressor, com o qual eles,
isolados, nunca sentem nenhuma simpatia ou ambivalência. Assim, conclui-se que
a visão de Lukács observa Soljenitsin de uma forma complacente, simpática, quem
sabe devido ao fato de que Lukács também foi encarcerado duas vezes durante o
período Stálin, pelo motivo mesmo de não ser considerado um marxista ortodoxo.
Lukács chega a atrelar sua obra a de Soljenitsin, considerado que ela seria uma
expressão artística do marxismo renascido após a desestalinização e da
liberalização do regime soviético. Assim, Lukács liga-se à visão de Soljenitsin
predominante no período Kruschev, quando esse escritor russo foi apoiado
oficialmente. E não demonstra, em 1965, estar retrocedendo da posição simpática
adotada inicialmente por Kruschev diante daquele escritor e que, desde 62,
registra Abraham Rothberg, estava refluindo, com Soljenitsin tendo perdido sua
imunidade e tendo sido criticado na imprensa soviética. Há, portanto, três
hipóteses sobre a obra de Soljenitsin, aqui inventariadas. Tomou-se partido,
então, da hipótese de Mário Sousa, de que a ficção do escritor russo era de
extrema-direita, em detrimento da hipótese de Rothberg de que ele seria um
liberal e da de Lukács, de que ele seria um marxista e realista socialista. O
fundamento para poder afirmar que o projeto político de Soljenitsin era de
extrema-direita foram suas posições mais abertamente tomadas depois do fim da
União Soviética.
4. Referências
bibliográficas:
HENRIQUES, Luís
Sérgio. O que os dissidentes dizem sobre nós.
<http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1556>
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Press, 1965.
LUKÁCS, Georg. SOLZHENITSIN AND THE
NEW REALISM. Socialist register. <http://socialistregister.com/index.php/srv/article/view/5957#.UU-IvzdFseo>>
MARGOLIS, Eric. The Death of a
Titan. <<http://www.bigeye.com/fc081108.htm>>.
MARTENS, Ludo. Stalin, Um Outro Olhar. Rio de Janeiro:
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ROTHBERG,
Abraham. Os Herdeiros de Stálin. A
dissidência e o regime soviético 1953-1970. Rio de Janeiro: Edições O
Cruzeiro, 1972.
SOUSA, Mário.
Mentiras sobre a União Soviética. http://republicasocialista.blogspot.com.br/2012/12/mentiras-sobre-historia-da-uniao.html.
Acesso em 20 fevereiro de 2013.