terça-feira, 28 de setembro de 2021

Nota Solta

Soube que Rubens Enderle, agora doutorando na UNICAMP, ex-orientando de Chasin, que fez uma tese sobre alienação em Marx, virou Olavete há alguns anos.

Como entender algo assim? Estudou Marx e nada aprendeu?

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

 

Editora mineira inicia reedição de Marguerite Duras

"Escrever", livro de ensaios com reflexões da escritora e roteirista, é o primeiro título reeditado pela Relicário.Depois virá o roteiro de "Hiroshima meu amor"


24/09/2021 04:00 - atualizado 23/09/2021 23:26

(foto: AFP)
(foto: AFP)

“Encontrar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita vai nos salvar. Não ter um tema para o livro, não ter ideia alguma para o livro é se encontrar ou se reencontrar diante de um livro. Uma imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante de uma espécie de escrita viva e nua, terrível, terrível de superar. Acho que a pessoa que escreve não tem a ideia de um livro, tem as mãos vazias, a mente vazia, e que dessa aventura do livro só conhece a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido.”

“Escrever” é um dos testamentos literários de Marguerite Duras (1914-1996), expoente da literatura francófona do século 20. Publicado em setembro de 1993 pela Editora Gallimard, dois anos e meio antes da morte da escritora, aos 81 anos, o ensaio mostra uma autora carregada de incertezas, em que, como num vulcão em erupção, deixa emergir o desconhecido que carrega em si. Escrever é um ato arrebatador, extremo, solitário e desesperado; um ato de pura vida, que também quer dizer, nas palavras da autora: “Ou a morte ou o livro”. 

No contexto de grande valorização de autoras no mercado editorial mundial e brasileiro, “Escrever” é o primeiro livro da Coleção Marguerite Duras, da Relicário, que programa novos relançamentos para os próximos anos. Os próximos serão “Hiroshima, meu amor” (roteiro do filme de Alain Resnais, considerado um dos clássicos da nouvelle vague), em fevereiro, e o romance “Moderato cantabile”, ainda no primeiro semestre de 2022. Na sequência virá o inédito no país “L’homme atlantique”. Trata-se de ensaio com cinco textos, o primeiro dos quais dá o nome ao livro. Em pré-venda no site da editora mineira, tem a tradução de Luciene Guimarães de Oliveira, prefácio de Julie Beaulieu, que é especialista na obra durassiana e membro da Société Internationale de Marguerite Duras – França. A revisão técnica da tradução é de Adriana Lisboa. 

Escrever. Uma interrogação. Tal é a reflexão que nasce de entrevistas concedidas por Duras a Benoît Jacquot, cineasta amigo que com ela trabalhou em dois curtas-metragens produzidos a partir de “Escrever” e “A morte do aviador inglês” – duas das narrativas que figuram nesta obra relançada pela Relicário. O leitor se vê percorrendo um texto “oral”, o que, nas palavras de Julie Beaulieu, que o prefacia, explica a impressão de uma conversa relaxada, franca, entre duas pessoas amigas. “Como se Duras expressasse seus pensamentos sem prestar muita atenção, como um sopro do vento, com suas hesitações, suas pausas e também suas ânsias repentinas. Assim, fragmentos de ideias surgem ao lado de memórias mais ou menos precisas de textos e filmes que se encaixam – de forma talvez aleatória – para formar a colcha da escrita”, avalia Beaulieu. 

Escrever é a entrega de si a si mesmo, um corpo que se lança à página em branco, ao desconhecido em si ainda por ser transposto. Ato de coragem que, segundo Duras, parte de “dúvidas primordiais”, que arrebatam o espírito na intimidade da solidão, quando o escritor enfrenta as dores, as angústias, o desespero existencial inerente à condição humana. Força e coragem para mergulhar nesse angustiante e libertador desvario de incertezas primitivas, enfiadas no âmago da existência, são fundamentais para escrever, indica a autora. “Isso faz da escrita algo selvagem. Unimo-nos a uma selvageria anterior à vida. E a reconhecemos sempre, é a das florestas, antiga como o tempo. A do medo de tudo, distinto e inseparável da própria vida. Ficamos ferozes. Não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte que si mesmo para abordar a escrita, é preciso ser mais forte que aquilo que se escreve. É curioso, sim. Não somente a escrita, o escrito, mas os gritos das feras da noite, de todos, você e eu, os dos cachorros. É a vulgaridade maciça, desesperadora, da sociedade”, define Duras. 

Ao mesmo tempo em que liberta os gritos bestiais da noite, a escrita também está carregada de silêncio – é o não falar, observa a autora.  É o “berrar sem fazer ruído”, diz Duras. Escrever é, para a escritora, escapar da morte, esse estado em mergulha todo e qualquer ser vivo – e a autora descreve o frenesi de uma mosca em seu derradeiro momento. “Ver como aquela morte invadiria progressivamente a mosca. E também tentar ver de onde surgia essa morte. De fora, ou da espessura da parede, ou do chão. De que noite ela vinha, da terra ou do céu, das florestas próximas ou, ainda, de um nada ainda indizível, talvez muito perto, talvez de mim, eu que estava tentando refazer os caminhos da mosca em sua passagem para a eternidade”, narra a autora estupefata diante da morte em marcha, de um certo fim do mundo que, diz ela, estende o campo do sono derradeiro.  

''Não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte que si mesmo para abordar a escrita, é preciso ser mais forte que aquilo que se escreve. É curioso, sim. Não somente a escrita, o escrito, mas os gritos das feras da noite, de todos, você e eu, os dos cachorros. É a vulgaridade maciça, desesperadora, da sociedade''

Marguerite Duras, em ''Escrever''



A morte passeia em círculos pelos capítulos de “Escrever”. Retorna em “A morte do aviador inglês”, que narra a história de jovem de 20 anos, “o último a morrer” na Segunda Guerra Mundial. Para se divertir, atacara uma bateria alemã quando sobrevoava a Normandia, possivelmente, em retorno para casa. O inimigo, já derrotado, revida. Prisioneiro de seu próprio Meteor de assento único, o avião que tomba é crucificado sobre a copa de uma árvore. Duras traça a analogia desse corpo caído, acolhido e velado pelos moradores do vilarejo, a um outro corpo, insepulto, “jogado numa cova coletiva em cima dos últimos corpos”, “sem uma palavra, sem um discurso”. Duras refere-se ao seu irmão mais novo, Paulo, no contexto da mesma grande guerra, morto em 1942, no Japão. Paulo era o irmão caçula da autora. Com ele, Duras revela, partilha “um amor muito forte, oculto, culpado, um amor de todos os momentos”. 

A morte obscurece o mais insignificante ser, como a mosca. Assim como o rei, o jovem aviador inglês, o seu amado irmão Paulo. A escrita os resgata. Permite que a emoção se estenda para além de si, “ao infinito do mundo inteiro”, durante séculos. Assim como aos “gritos dos urros surdos e silenciosamente terríveis de todos os povos do mundo”, reflete Duras. “Em torno de nós, tudo escreve”, diz a autora. “O inferno das fábricas, os abusos do desprezo, da injustiça do patronato, seu horror, o horror do regime capitalista, toda a infelicidade que dele decorre, o direito dos ricos em ter o proletariado ao seu dispor e fazer dele a razão do seu fracasso, nunca do seu sucesso”, todos textos “desonrosos”, que estão a chamar por novas leituras. Sim, a escrita é vida: “A escrita chega como o vento, é nua, é de tinta, é a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada mais, exceto ela, a vida”.

Lacan e o arrebatamento

Arrebatado pela obra de Duras, em particular o romance “O deslumbramento de Lol V. Stein” (1964), Jacques Lacan escreveu “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”, que denomina de uma extraordinária lição clínica. “Arrebatadora é Marguerite Duras e nós os arrebatados.” E enuncia a precedência da arte à psicanálise: “A única vantagem que um psicanalista tem o direito de retirar da sua posição, se esta lhe for reconhecida como tal, é de se lembrar com Freud que, na sua matéria, o artista o precede sempre”. Em “Escrever”, Duras diz nunca ter compreendido totalmente o que disse Lacan sobre o seu livro e de ter se surpreendido com as palavras dele: “Ela não deve saber que escreve aquilo que escreve. Porque ia se perder. E isso seria uma catástrofe.”  A autora admite, contudo, que essas frases tenham se tornado “uma espécie de identidade de princípio”, o “direito de falar”, a liberdade à palavra, à voz, ignorado e frequentemente negado às mulheres. 


Quase 50 livros e muitas paixões


A profícua, diversa e impressionante obra de Marguerite Duras – 48 livros, 14 peças de teatro, 21 filmes, além de inúmeras crônicas para o jornal Liberatión – é, sobretudo, autobiográfica: parte de suas vivências em família e na adolescência, na Indochina – que integrava o extinto Império Colonial Francês – atualmente Vietnã. São experiências retomadas circularmente, em personagens que se reciclam. “O amante” (1984), com reedição recente no Brasil pela Tusquets, é o mais conhecido entre os seus romances. Recupera o fio condutor de sua infância, em narrativa que descreve aos 15 anos o relacionamento amoroso de uma menina francesa, de família afundada em dificuldades financeiras, com um chinês rico – algo inconcebível para a sociedade colonial da época.  Essa narrativa explicitada em “O amante” fora iniciada sob a capa de outros personagens em “Um barrage contre le Pacifique” (1950). Igual temática é retomada em “O amante da China do Norte” (1991).  Já os primeiros romances de sua carreira, “Les impudentes” (1943) e “La vie tranquille”, se inspiram nas memórias de infância da escritora, quando a família, com a morte do pai, vive por um período na região francesa de Lot-et-Garonne, antes de retornar ao Vietnã.

No âmago das histórias de amor de Duras está, numa camada mais profunda, o relacionamento incestuoso com o irmão mais novo, Paulo, morto em 1942, no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial. “Na obra de Marguerite Duras, o segredo de amar o irmão mais moço move sua escrita, por manter a sua infância viva. Esse segredo tomou diversas formas durante a construção da sua obra, porém, no final da vida, provavelmente pela falta de pudor, ou por não haver mais nenhum motivo para escondê-lo, pois seus familiares já haviam falecido, ele foi, finalmente, revelado”, considera Karina Celliberi Roy, doutora em estudos linguísticos, literários e tradutológicos em francês pela Universidade de São Paulo, em artigo publicado na Revista de Linguística da Universidade Estadual Paulista (Unesp). 

Marguerite Duras, como tornou-se célebre a escritora francesa Marguerite Donnadieu,  que aponta em Michele, Saint-Just e Stendhal, além dos textos do Antigo Testamento, as leituras de sua vida, nasceu em 1914, em Gia-dinh, periferia ao Norte de Saigon (atual Ho-Chi-Min), na então Indochina, possessão mais rica e populosa do Império Colonial Francês, que até 1954 reuniu estes que hoje são países no Extremo Oriente, entre as quais Vietnã, Laos e Camboja, além da província de Cantão, do território chinês. Filha de Henri e Marie Donaadieu, professores franceses emigrados, Marguerite tinha 5 anos quando o pai morreu. As suas primeiras lembranças da infância são as dificuldades econômicas, principalmente depois que a sua mãe, tendo investido as economias da família em um empreendimento de cultivo de arroz, em Vinh Long, vila situada no delta do Rio Mekong, perdeu tudo após a invasão das águas do Pacífico sobre a barragem construída para proteger as terras cultivadas das marés. Essa história é narrada em “Um barrage contre le Pacifique”, em torno de personagens ficcionais. 

Marguerite Duras foi casada duas vezes. Em 1939, com Robert Antelme, que, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, por integrar a Resistência Francesa, da qual Marguerite também fez parte, em 1944 foi preso e deportado. Por essa época, Duras se filia ao Partido Comunista Francês. Antelme é liberado em estado de saúde bastante crítico, voltam a viver juntos até 1947, ano em que se divorciam. Marguerite se casou com Dionys Mascolo, com quem teve um filho, Jean. Teve inúmeros amantes, o último deles o escritor e secretário pessoal Yann Andréa, 38 anos mais jovem e homossexual, relação que perdurou por 16 anos, até a morte de Duras, em 1996, a um mês de completar 82 anos. 

“Escrever” 
• Marguerite Duras
• Tradução de Luciene Guimarães de Oliveira
• Relicário
• 148 páginas
• R$ 47,50


ENTREVISTA /Luciene Guimarães de Oliveira (tradutora)

“A errância é presente na obra de Duras”


Como nasceu o seu interesse por Marguerite Duras e que obras da autora destaca?
Pesquiso Duras há pelo menos seis anos. Meu primeiro contato foi pelo cinema. Assisti aos documentários, aos curta-metragens e aquilo me tomou de tal maneira que li tudo o que encontrei. Morava em Quebec, uma província francófana, e foi muito fácil ter acesso à obra dela lá. Comecei a trabalhar no âmbito da universidade com uma especialista em Duras, a Julie Beaulieu, que fez o prefácio de “Escrever”.  E foi um encontro feliz, lá, no Canadá, a pesquisa se inicia com um esboço do projeto e vai evoluindo. Depois consegui bolsa para visitar os arquivos na França, Normandia, no Institut pour la Mémoire de l’Édition Contemporaine (IMEC). Tive, então, um amplo acesso à obra dela. Tudo dela é muito interessante. Desde a biografia, há várias, mas me refiro em particular àquela feita por Laure Adler, que em conferência em Quebec, no centenário de nascimento de Duras, deu várias dicas sobre como se iniciar na autora: sugeriu que se comece pelo livro de ensaios “Vida material”, que vai também ser lançado no Brasil, não pela Relicário, mas por outra editora. Um livro que considero bem significativo é “O deslumbramento de Lol V. Stein”, em que Duras se aprofunda muito no processo criativo. Ela foi ao asilo conhecer a perso- nagem com a qual pretendia trabalhar. E quando ela publica o livro, o próprio Jacques Lacan, acho que por isso os psicanalistas adoram a obra de Duras, ficou maravilhado, considerando que ela havia publicado um estudo clínico dessa personagem, inclusive antecipando-se ao trabalho dele. A crítica da obra dela vai dividir a obra em fases: da Indochina, momento em que está escrevendo mais temáticas da Indochina. Nessa fase tem o best-seller “O amante”, e, muito importante, “O vice-cônsul”, livro em que o personagem vai perambular perdido por um espaço para depois se encontrar. Depois ela passa para a fase do Atlântico, onde conhece o companheiro que se chamava Yann Andréa. Ela retoma muitos elementos de um livro para o outro; personagens, aspectos, temáticas. A errância é uma temática muito presente na obra dela, que constitui, como um todo, uma poética. 

Quais foram os desafios para traduzir o livro “Escrever”?
“Escrever” é um ensaio, um texto que vem da oralidade. Começa com uma entrevista de Duras ao cineasta Bernard Jacob, que trabalhou com ela desde o início dos anos 70, foi braço direito dela no cinema e, na década de 90, faz uma série de entrevistas com ela que Duras decidiu publicar nesse ensaio, “Escrever”. São cinco narrativas que abordam esse processo do ato da escrita, da solidão e silêncio da escrita. Vai tratar do ato de escrever como uma vulnerabilidade, não só do ato de escrever, de se isolar, mas a vulnerabilidade do escritor quando ele se isola para escrever. Tem essa solidão física para se dedicar a esse trabalho intelectual da escrita, tem o silêncio da escrita, processo criativo, que é a maturação da escrita. Outras quatro narrativas dela também estão no livro: “A morte do jovem aviador inglês” veio também na entrevista com Bernard Jacob: ela trata esse personagem, esse jovem de 20 anos, que morreu quando o avião caiu na cidade próxima a Trouville, aproximando-o muito de uma questão biográfica, que é a morte do irmão mais novo dela (Paulo), que também morreu na guerra (contra o Japão, em 1942). “Roma” é outra narrativa, era para ser um texto de um documentário para uma televisão italiana. “O número puro” e “Exposição da pintura” são as outras narrativas de “Escrever”.

Como a senhora situa Marguerite Duras na literatura mundial?
É uma mulher multifacetada, que ocupou lugares importantes na literatura, no cinema e no teatro. Escreveu também crônicas para o jornal Liberatión. Escreveu mais de 40 livros, produziu 20 filmes. O cinema dela, a obra dela, tem uma poética que faz a transição entre a palavra e a imagem, o texto para o filme. No mundo francófono, a obra dela é tão estudada quanto Clarice Lispector ou Machado de Assis no Brasil. Ela tem essa poética da fusão da biografia e da ficção na obra. E o fato de Duras ter começado a carreira nos anos 40 – morreu em 1996 –, o fato de ter percorrido todos esses anos, passando pela Segunda Guerra Mundial, o 1968 na França, a tornam ainda mais inte- ressante. Inclusive o cinema dela, a literatura dela estão impregnados desse espírito de vanguarda e transgressão de gêneros de 68. É uma das grandes autoras mundiais, acho que ela é uma representante da literatura mundial à altura de Virginia Woolf. 

Há no Brasil um novo momento de grande interesse por autoras. A que atribui esse novo momento? 
Eu me faço essa pergunta também, pois foi uma grande surpresa esse interesse todo que desperta a obra de Marguerite Duras no Brasil, principalmente entre psicanalistas. É o reco- nhecimento de uma grande escritora, uma das maiores do mundo francófono. Sem dúvida, é muito positivo. Há alguns aspectos da literatura de Duras que podemos aproximar da li- teratura de Clarice Lispector, da solidão da escrita, do silêncio da escrita. Clarice também foca esses temas. Tem um pouco essa proximidade para entender Duras, quem já tem familiaridade com a obra de Clarice Lispector, que teve crescimento do interesse por sua obra no Brasil. E acho que Duras vai pegar também essa mesma esteira. 

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No que dá ler Marcuse: Postagem de Cibele Horizonte

 No que dá ler Marcuse

Censurado, 'Orgia' irritou Glauber Rocha e inaugurou o cinema queer feito no Brasil
GUILHERME GENESTRETI
O ano era 1973 e Paulo Emílio Sales Gomes estava um tanto indignado. Queria saber por que o filme "Orgia ou o Homem que Deu Cria", de João Silvério Trevisan, pronto havia dois anos, não tinha sido liberado pelo pente-fino da ditadura. "O que terá visto a censura nessa orgia útil e fundamentalmente saudável?", questionava o pai da Cinemateca e decano da crônica cinematográfica no país. O autor vira ali, naquele carnaval de tipos marginais, a "cosmogonia brasileira" —"uma raiz nova para nosso rebolado, nossa pintura clássica, nossa chanchada, nossas aspirações e nossa história", segundo escreveu no Jornal da Tarde.
Os censores viram outra coisa –"personagens focalizados em atitudes animalescas", um "cangaceiro tendo uma criança" e "canibais devorando o recém-nascido logo após o parto". Tudo isso deveria ser suprimido, segundo despacho assinado por Geová Lemos Cavalcante, então chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, em 9 de setembro de 1971. O diretor não aceitou fazer os cortes e teve sua carreira cinematográfica abatida a tesouradas.
"O coprodutor se cagava de medo da censura. Não tive respaldo nenhum para recorrer", lembra Trevisan, então um ex-seminarista de 27 anos que acabou se mandando do país. Com um rolo em 16 milímetros do longa, partiu numa viagem de carro pela América Latina para escrever uma reportagem sobre padres guerrilheiros no continente e só parou em Berkeley, meca da contracultura na Califórnia, onde depositou a cópia do filme.
Só voltaria ao Brasil três anos mais tarde, quando fundou o grupo Somos, de afirmação gay, e ajudou a tocar o jornal Lampião da Esquina. Escreveu um punhado de romances premiados, além do ensaio seminal "Devassos no Paraíso" — outra cosmogonia brasileira, essa sobre a história da homossexualidade no país desde Cabral.
Mas nunca mais dirigiu um filme. "Orgia" não estreou no cinema e ganhou sessões especiais só anos depois. Em 2012, teve destaque no Festival de Roterdã, que naquela edição celebrou a Boca do Lixo, polo de produção que existiu entre os anos 1960 e 1980 em meio ao bas-fond paulistano. Até lá, o filme já era cult por aqui — obra tropicalista que respondia ao AI-5 com grunhidos, um petardo antropofágico que desancava a turma do cinema novo, a ponto de tirar Glauber Rocha do sério.
Entre outras coisas, o filme "ironizava a figura do machão cangaceiro, cristalizada pelo cinema novo e pela esquerda desde a literatura regionalista de 1930", segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em capítulo do livro "Cenas Brasileiras".
"A contracultura, a revolução sexual, o movimento hippie, o feminismo, a leitura de Marcuse, o é proibido proibir de Paris de 1968 parecem fazer entrada aqui de maneira espalhafatosa" nesses personagens, "brincantes de um Carnaval pobre, de um cordão de sujos", diz o pesquisador.
A trama acompanha um bando algo brancaleônico que ruma do interior à cidade grande. Após matar o próprio pai, interpretado pelo cineasta-caminhoneiro Ozualdo Candeias, um matuto vivido por Pedro Paulo Rangel cai na estrada e vai topando com tipos insólitos. Um sujeito tem um orgasmo enquanto arranca as próprias roupas. Outro, vivido por Jean-Claude Bernardet, está sentado nu sobre uma pilha de livros e vai devorando as páginas que arranca.
Devorar dá a tônica à obra. A antropofagia oswaldiana ganhava novo fôlego na esteira de Caetano e Zé Celso. "O tropicalismo vinha organizar um pouquinho o nosso desespero na ditadura", afirma Trevisan, que quis trazer referências que iam do grotesco renascentista de Bruegel, o Velho, ao "deixa sangrar" dos Rolling Stones —que "gostava muito mais do que dos Beatles", diz.
Carlos Reichenbach assumiu a direção de fotografia. "Ele brigava comigo porque queria fazer imagens bonitas, e eu dizia que não, que a realidade é feia", lembra Trevisan. Já Walcyr Carrasco, bem antes das tramas na Globo, assinou a cenografia e o figurino.
Foram 15 dias de filmagem em Francisco Morato, em São Paulo, com refeições à base de sanduíches e pernoites em pensões, ao custo total de 60 mil cruzeiros obtidos via empréstimo bancário. Não havia dinheiro para a iluminação, então o filme só teve cenas externas. Os detalhes estão nos créditos, "porque eu queria que soubessem que aquilo tinha custado o pedaço de uma vida, que não era arte de gabinete", afirma o diretor.
Pedro Paulo Rangel, o caipira parricida no filme, hoje tem "uma vaga lembrança" daqueles dias, fora uma cicatriz que ganhou na perna, resultado de ter tropeçado numa das tomadas. "O que me espanta é a perenidade desse filme, que eu não imaginava que teria naquela época", diz.
"Eu lembro que o filme foi proibido, mas não o motivo, já que na época tudo era proibido", continua o ator. "A gente barganhava com a censura. Era na base do trocar um 'merda' por dois 'puta que pariu'."
Entre os tipos que se juntam à trupe estão um fugitivo, uma prostituta de beira de estrada, um rei negro e cadeirante que leva uma réplica da taça do tricampeonato, um anjo maltrapilho de asa quebrada e um cangaceiro grávido. Há ainda uma travesti caracterizada como Carmen Miranda.
Ela recita, escandindo as sílabas, o "Canto de Regresso à Pátria", a sátira de Oswald de Andrade a Gonçalves Dias.
O argumento da obra também nasceu de uma espécie de canção do exílio para Trevisan. Ex-integrante da Ação Popular, organização política de inspiração cristã e esquerdista, ele circulava pelo norte da África, seguindo os passos de Jean Genet e conhecendo a vida gay na Tunísia, quando soube que era procurado pela ditadura militar brasileira. O AI-5 era recente.
"Eu tinha tanto desespero, tanto medo de não poder voltar, que comecei a escrever um rascunho sobre o Brasil da minha lembrança. Foi um contato emocional", diz o cineasta, que à época andava encantado com o que lia de Jung sobre os arquétipos. "Eu queria me comunicar com o inconsciente coletivo brasileiro."
De volta a São Paulo, quando a barra estava limpa, em 1970, ele lapidou "Orgia", com uma ajuda da maconha, mas sem exagerar. "Porque eu vomitava muito", diz. Também circulou pelos teatros de rebolado da avenida São João atrás da linguagem das chanchadas, sua paixão de infância.
Foi aí que os personagens começaram a aparecer, um a um. Mas importava que não fossem uma caricatura, uma folclorização do povo brasileiro —isso quem fazia eram os cinema-novistas, diz. "As críticas que a minha geração dirigia ao cinema novo era a de que justamente ele não conseguia se comunicar com a população brasileira", afirma Trevisan. "Eles tinham todo um ranço de esquerda sobre o que se entendia como legítima cultura nacional."
Tanto que Glauber quis dar um soco nele quando viu o filme. Não era sutil o cangaceiro grávido que empunhava um estandarte da Volkswagen, um deboche ao seu Corisco de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", que reproduzia até as marcações de Othon Bastos. "Disseram que o Glauber queria me dar umas porradas", lembra Trevisan. "Respondi 'o Glauber que se foda'. Agora, havia motivo para dar porrada? Havia."
Por trás do escracho, havia uma crítica à incompreensão da esquerda oficial, quanto à revolução dos costumes, que transformava os corpos em armas políticas mais subversivas do que discursos. Essa é a outra chave para entender o fascínio que "Orgia" adquiriu décadas depois.
O longa nunca foi restaurado, e hoje circula pelo YouTube. Foi por ali que João Nemi Neto, professor na Universidade Columbia, em Nova York, tomou contato com o filme, a que ele atribui o papel de ser um dos precursores de um cinema queer no Brasil.
"É uma obra que responde aos anseios da época e abre caminho para uma possível cinematografia desse gênero no país, que até então só aparecia contemplado em um exemplo ou outro", diz o pesquisador, elencando o filme mudo "Augusto Aníbal Quer Casar", feito em 1923 por Luiz de Barros, como um raro título que esbarrava no assunto. Na trama cômica, o personagem-título acaba indo para o altar com uma transformista. "O Trevisan é o primeiro que deixa tudo bem claro."
Não é à toa que é "Orgia" que estampa a capa do livro "Cannibalizing Queer", no qual Nemi Neto faz um retrospecto sobre essa produção no Brasil entre 1970 e 2015.
"Uma dúvida que tenho é se 'Orgia' ficou perdido no tempo ou se os cineastas contemporâneos têm consciência da influência dele", diz. "Queria saber se o Kleber Mendonça Filho em 'Bacurau' tem dimensão da relação do filme dele com o do Trevisan."
É uma questão pertinente, embora "Bacurau" penda mais para a folclorização, para o maniqueísmo e para a afirmação autoritária do que seriam os signos brasileiros, mais à empáfia de Glauber Rocha.
Seja como for, há no Carnaval antropofágico de "Orgia" um propósito estético de evidenciar a sexualidade. Tanto que, ao apresentar o filme na Cinemateca do MAM carioca, no início dos anos 1970, o diretor lançou um dos primeiros manifestos queer de que se tem notícia no país. "Falo como um louco no hospício. Falo, quando ao redor a consciência expira orgasticamente e nossos olhos estão mortos", enuncia o texto, que termina com "a propósito, você também é entendido?".
"Naquela época eu estava descobrindo o veneno da minha homossexualidade", afirma Trevisan, que lia Rimbaud, assistia aos filmes de Pasolini e já circulava por aí com o poeta Roberto Piva, notório não só na literatura, mas também na noite gay paulistana. "Eu sabia que não havia possibilidade de ser homossexual sem subverter."
A ditadura ceifou essa subversão pelo cinema e Trevisan migrou para as letras. Para outubro, prepara uma nova edição de "Seis Balas num Buraco Só", que ele descreve como um ensaio sobre "a crise do macho brasileiro", agora com um capítulo inteiro devotado à ascensão do bolsonarismo. Já seu "Em Nome do Amor" vai ganhar em breve uma tradução para o inglês.
Mas não deixou de escrever roteiros. Tem ao menos três de que gosta muito, embora nenhum tenha sido desengavetado. Um deles mistura as manifestações de junho de 2013 com a história do anarquista Bakunin, apaixonado por um terrorista. Já "O Onanista", adaptado de um conto seu, trata de um sujeito que ganha status de santo após desenvolver a habilidade de lamber o próprio pênis.
E há "Os Desterrados", feito para o cineasta Paulo Sacramento, sobre um grupo que habita um cemitério e mistura personagens vivos e mortos, referência ao "Pedro Páramo", do mexicano Juan Rulfo.
Em tempo. Geová Lemos Cavalcante, o censor que vetou o lançamento de "Orgia", morreu em junho do ano passado. Tinha 77 anos e passou semanas internado por causa da Covid. Ele se dizia um genealogista e era assessor da Arquidiocese de Fortaleza.
Sete anos atrás, entrevistado pelo jornal O Globo sobre seu passado na censura, contou que interditou, entre outros títulos, o filme "Como Era Gostoso o Meu Francês", de Nelson Pereira dos Santos, famoso pelas cenas de nu frontal de Arduíno Colassanti. No geral, disse Cavalcante, sua atividade no gabinete era "rotineira e tediosa e sem qualquer envolvimento emocional".
FSP 18.09.2021
Você, Emiliano Aquino e outras 16 pessoas
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