sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

 MEU CARO AMIGO Peça em um ato Ramon Maia



 2019 Personagens Jovem homem velho homem homem bêbado professora jovem mulher 153 EM QUALQUER LUGAR: Um palco com duas mesas e cada uma delas com delas com duas cadeiras As luzes se acendem e Velho Homem já está em cena. Jovem homem entra e se depara com o amigo, o velho homem. JOVEM HOMEM Com licença. Por favor. Boa tarde. O senhor é... VELHO HOMEM Sim, sou eu! Se eu não estiver enganado, você deve ser quem eu estou esperando. Jovem homem balança as mãos de modo efusivo. JOVEM HOMEM Perdoe-me o atraso. Uma longa soneca no hotel. A viagem até aqui é muito longa. Velho homem parece tentar acalmar o jovem homem. VELHO HOMEM Dois de dias, certo? Está tudo bem. Não se incomode. Jovem homem permanece balançando as mãos efusivamente. JOVEM HOMEM É uma grande alegria encontrar o senhor pela primeira vez! Jamais poderia imaginar que isso pudesse acontecer em minha vida. Velho homem faz uma pausa, respira profundamente. 154 VELHO HOMEM Não imaginava receber uma visita de tão longe. A esta altura da vida, tudo é mais lento e repetido. Estou realmente impressionado. Jovem homem finalmente parece se acalmar. Começa a fitar o velho homem. Examina cuidadosamente seus olhos, sua barba, seus cabelos. JOVEM HOMEM Desde quando visitei este museu pela primeira vez, eu soube que o senhor ainda estava vivo. Velho homem coça a barba. VELHO HOMEM Fui submetido a um procedimento de um tal Dr. Fedórov, por isso estou ainda vivo. Eu me alimento somente de ovos fritos. Por conta disso tenho pesadelos com crocodilos todas as noites. Caminham lentamente pelo palco, tocando mutuamente os ombros de cada um. Jovem homem, em tom altivo, se volta subitamente para o velho homem. JOVEM HOMEM O senhor fala muito bem a minha língua. Velho homem leva a mão à cabeça. VELHO HOMEM Há muito tempo eu a aprendi com um sujeito muito ilustre de sua terra-natal que também sabia falar javanês. Jovem homem exaltado, efusivo, quase irado. JOVEM HOMEM O senhor ficaria abismado com minha terra-natal. Somos especialistas em copiar todas as modas. Tudo lá é de segunda mão. Velho Homem ri timidamente, tentando ser simpático e, ao mesmo tempo, manter uma certa distância. JOVEM HOMEM È muito interessante vê-lo sorrir. Sempre pensei que quando o encontrasse, o veria bastante sério. Velho homem coça a cabeça e arqueia a sobrancelha. VELHO HOMEM 155 Claro que sorrio. Talvez minhas cartas deem a impressão de que sou um sujeito solene, mas aquilo tudo é meia carta de um sujeito. Tenho meus momentos. Imagino que conheça pessoas capazes de grandes gargalhadas. Reconheço. O Jovem Homem se agita, balança as mãos, cofia o bigode. JOVEM HOMEM De onde venho, existem muitos bons comediantes. Os melhores são aqueles que levam tudo a sério. O Velho homem tosse, limpa um pigarro da garganta. Parece estar incomodado, balança a cabeça de um lado para outro lentamente. VELHO HOMEM Não entendo. Fale mais sobre isso. Jovem homem demonstra confiança, fica na ponta dos pés, inclina o peito para frente. JOVEM HOMEM A seriedade pode até ser um bom negócio desde que seja autêntica. O velho homem se agita, arrasta a bota direita pelo chão como se estivesse limpando-a. VELHO HOMEM E por que não seria? Jovem homem cofia o bigode, lança a mão esquerda para o alto como se estivesse apresentando um grande evento. Jovem homem se sente como um mestre de cerimônias. JOVEM HOMEM Porque de onde venho tudo é postiço, tudo é pose, tudo é falso, tudo é um meio para se conseguir o mais imediato. Velho homem arregala os olhos demonstrando espanto e compreensão do que foi falado pelo Jovem Homem. VELHO HOMEM Eu entendo. Eu entendo mesmo. Há muito tempo recebi uma carta de um amigo que contava algo semelhante sobre um certo inspetor geral de uma cidade pequena daqui. Jovem homem coloca a mão no queixo, circunspecto. JOVEM HOMEM Eu também li algo parecido sobre esses eventos acontecendo aqui. Mas acho que esse fenômeno se espalhou. Por onde andei, vi que o sério pode ser ridículo. Jovem homem tem olhos dirigidos ao infinito, a nenhum lugar. Velho homem inclina a cabeça para baixo. Seus olhos miram os assoalho do palco fixamente. 156 VELHO HOMEM Não estou por dentro de muitos assuntos. Meu último lance foi falar publicamente, um discurso. Desde então, me recolhi para uma vila, próxima daqui, uma cabana. Jovem homem também inclina a cabeça para a baixo, procurando o lugar para onde o Velho Homem está olhando. Toca levemente seu ombro. JOVEM HOMEM Veja, está tudo bem. Gosto do assunto das cartas que chegaram até mim. A maneira como cada um vive é questão de higiene pessoal. A propósito, quando trabalho muito, costumo falar línguas mortas e línguas futuras. As pessoas que me amam em minha terra-natal me levam para Barbacena, uma pequena cidade. Lá, fico numa uma casa muito bonita e limpa para eu descansar. Um tal Dr. Simão Bacamarte cuida de mim. Ele veste em mim um manto de profeta e me oferece pílulas mágicas que me fazem ficar mudo e sentado por seis meses. Depois, volto para casa mais calmo. Jovem homem toca o ombro do velho homem. Velho homem rapidamente levanta a cabeça se desfazendo do contato do jovem homem, afastando-se dele. VELHO HOMEM Este museu me traz muitas lembranças. Aqui estão guardadas memórias de um tempo que gostaria de esquecer. Velho homem coça a barba e jovem homem dá dois passos para trás, então, dois passos laterais para um lado e dois para outro. JOVEM HOMEM Posso imaginar o quanto é difícil ver tudo isto exposto. As correntes, os casacos, as cartas, os rascunhos. Velho homem limpa o pigarro da garganta. VELHO HOMEM Gosto de sua tentativa de empatia. Mas vamos deixar o sentimentalismo de lado. Nada no museu me machuca, nem as correntes, nem as cartas, os rascunhos, nada. A coisa aqui é outra. O museu me lembra não do que sofri, mas do que eu fiz. É a lembrança das cartas, da sua inutilidade. De qualquer forma, vejo que você leu todas elas, mas permanece sentimental. Jovem homem abaixa olhos em tom de respeito. Junta as mãos à altura do peito. JOVEM HOMEM Me perdoe, meu amigo. É um defeito congênito. De onde venho, nossas memórias são sentimentais ou póstumas. Não lembramos do que fizemos porque, na verdade, nunca fizemos nada. De onde venho, nossa maior obra é a escravidão dos negros. E, para nós, o problema não é lembrar ou esquecer porque a escravidão, de onde venho, não terminou. 157 Velho homem arqueia as sobrancelhas. Parece mais calmo. Respira fundo. Um silêncio se faz. VELHO HOMEM Ainda estou curioso. Por que você quis me ver pessoalmente? Não tenho mais nada a dizer. Tudo o que eu disse está em minhas cartas. E elas contém a mesma verdade para todos os tempos. O que está acontecendo agora? Não me interessa. Estar vivo agora, para mim, é inútil. Não sei qual o rumo terá nossa conversa. Jovem homem mexendo bolso à procura do maço de cigarro. JOVEM HOMEM Não se afobe, não, que nada é pra já. Não vim até aqui encontrar o senhor para decifrar o mistério do presente. Eu li suas cartas e elas me deram um sentido na vida. Agora, tudo mudou, estou perdido, pois a simples existência da minha terra-natal é o desmentido do que o senhor acredita ser a verdade para todos os tempos. Estou numa encruzilhada. Não sei se fico com a verdade eterna ou com minha terra-natal. Velho homem coça a barba. Passa as duas mãos no rosto. VELHO HOMEM Mas... Se... No entanto... Jovem homem tira o maço de cigarro do bolso e mostra para o velho homem. JOVEM HOMEM Vamos fumar um cigarro? Jovem Homem e velho fumam cigarros. Fumam vagarosamente lançando a fumaça para o alto. Vem se aproximando deles uma Jovem mulher. Ela anda rápido, mas retém o passo repentinamente. Ela se mantém próximo a eles. Ela retesa o corpo. Seu peito se inclina para a frente. A cabeça se lança para trás. Os joelhos ficam semi-dobrados. Ela fica paralisada nesta posição. A bolsa que levava nos braços cai no chão. Velho homem aponta o indicador para ela. VELHO HOMEM Veja: crocodilo. Jovem homem acena a cabeça positivamente. JOVEM HOMEM De onde venho, conhecemos como zumbis. Eles nunca morrem. Velho homem limpa o pigarro da garganta e cospe no chão. 158 VELHO HOMEM Acho que é mais um que foi submetido ao tratamento do Dr. Fedórov. No final, seremos todos crocodilos. Jovem lança cinzas do cigarro ao chão e ri ironicamente. JOVEM HOMEM É essa imortalidade de que o senhor falava nas cartas? Velho homem mostra irritação. Parece querer tiras as sujeiras da sola dos pés em um movimento frenético. VELHO HOMEM Não foi nada disso. Você parece que não entendeu nada do que eu disse nas cartas. O que fizeram comigo, com esta jovem e com milhões de pessoas, são consequências. Eu vi no Palácio de Cristal todas as promessas de futuro. E aqui estamos nós. Jovem homem e velho homem continuam fumando. Um silêncio se faz. Ambos jogam cinzas pelo chão. JOVEM HOMEM De onde eu venho, a gozação, a zombaria, a piada é mais importante que a amizade. Perdemos um amigo, mas não deixamos de fazer uma brincadeira. Como o senhor pode ver, sou muito ligado a minha terra-natal e conheço o teor de suas cartas. Elas tornaram possível que eu sobrevivesse à impostura. O velho homem dá uma profunda tragada no cigarro e lança a fumaça para o rosto do jovem homem. VELHO HOMEM Mas você insiste no riso. Isso é um traço seu. Jovem homem balança a mão esquerda efusivamente junto ao corpo. JOVEM HOMEM Reconheço. Mas não acho que seja apenas um caso simples. Não é apenas minha constituição. De onde eu venho, todos são assim. E eu lhe pergunto. Todos aqui são como o senhor? Nesse momento, um homem bêbado se aproxima com o cigarro na boca, como alguém que está pedindo que o velho acenda o cigarro dele. HOMEM BÊBADO Hum! Hum! Hum! Pazhalusta! Hum! Hum! Hum! O velho homem pega a caixa de fósforos no bolso e acende o cigarro do homem bêbado. Demonstra irritação e impaciência. Balança a cabeça lateralmente para os dois lados rapidamente. O homem bêbado sai cambaleando. 159 HOMEM BÊBADO Hum! Hum! Spasiba! Spasiba! Hum! Hum! Hum! Velho homem aponta o dedo para o jovem homem. VELHO HOMEM Veja, não é bem assim. Eu já não existo mais. E essas pessoas aqui também já não existem. Jovem homem esboça um sorriso mas se contém. JOVEM HOMEM Se é assim, então venho de lugar nenhum, já que, em minha terra-natal nunca se fez nada de positivo. Aliás, eu não existo também, nunca existi. O senhor, ao contrário, pelo menos, já existiu algum dia. Velho homem se mostra calmo, mas dá um grande baforada de fumaça no rosto do jovem homem. VELHO HOMEM Você é muito insolente, sabia? Jovem homem abaixa a cabeça. Ele dá uma tragada no cigarro. Um silêncio se faz. Jovem homem anda de um lado para o outro. Até que ele se volta para o velho homem. JOVEM HOMEM Eu sei que sou insolente. Na verdade, não tenho o menor respeito pelas autoridades. Eu lamento profundamente. Não é que não acredite em nada. Mas, lamento informar o senhor, agora tudo é assim. A jovem mulher cai no chão. Jovem homem se agita. Caminha em direção à jovem mulher caída e se ajoelha diante dela. JOVEM HOMEM O que fazemos? Velho homem permanece impassível, continua fumando seu cigarro. VELHO HOMEM Nada. Agora, está definitivamente morta. Daqui a pouco, eles vêm recolher o cadáver que terá um bom uso para os estudos da equipe Fedórov. Jovem homem se levanta, se afasta do cadáver da jovem mulher. Ele dispensa o toco de cigarro e começa a procurar freneticamente o maço de cigarros nos bolsos. Ele encontra o maço de cigarros, deixa-o cair, apanha o maço de cigarros, tenta retirar um cigarro, caem vários cigarros, recolhe os cigarros. Ele acende o cigarro e fuma vorazmente. Em seguida dá uma

 grande gargalhada. JOVEM HOMEM


perdoe, meu amigo, mas não pude resistir. Existe nisso tudo muita coisa patética. Velho homem arrasta os pés no chão. VELHO HOMEM Eu só vejo tragédia. Jovem homem estufa o peito, balança a mão esquerda em frenesi. JOVEM HOMEM Mas esse é o ponto. Uma tragédia que se repete. Não há nada o que fazer. É engraçado. A única saída é rir. Velho homem abre os braços. VELHO HOMEM Rir do quê? Jovem homem fica na ponta dos pés. JOVEM HOMEM Rir de nós mesmos, do quanto é trágica a nossa situação sem saída. Velho homem se agita, balança a cabeça para os lados. VELHO HOMEM Mas você riria de uma criança sofrendo? O rosto de jovem homem parece se iluminar. Ele inclina a cabeça para o lado. JOVEM HOMEM Claro que não. Mas, veja, a própria criança que sofre quer sorrir, brincar. E há aquelas que, mesmo sofrendo, são capazes disso. Um grande silêncio entre eles se faz. O velho homem se mostra incomodado por estar próximo de um cadáver. Ele se mostra inquieto, se agita. O jovem homem fuma o cigarro como se estivesse completamente acostumado como uma situação daquela. Jovem homem olha ao redor. JOVEM HOMEM É uma linda cidade. Velho homem limpa o pigarro da garganta e cospe no chão. VELHO HOMEM Vocês não têm neve por lá, têm? Jovem homem balança a cabeça para um lado e para o outro, indicando concordância. 161 JOVEM HOMEM Não, não temos. Às vezes, podemos experimentá-la bem mais ao sul. Mas é diferente. Velho homem inclina a cabeça para a frente, demonstrando curiosidade. VELHO HOMEM. Em que sentido? Jovem homem estende o braço sobre a paisagem e olha ao redor. JOVEM HOMEM Veja tudo isso. Quando vi pela primeira vez, achei que estava acontecendo alguma tragédia. Eu pensava: "as pessoas estão bem?", "está tudo bem por aqui?". Velho homem abaixa a cabeça. VELHO HOMEM Você tem um jeito de pensar muito curioso. Velho homem estende o braço sobre a paisagem. VELHO HOMEM Para nós, a vida é assim. Jovem homem traga profundamente o cigarro. JOVEM HOMEM Eu entendo. Talvez. De onde venho, estamos mais adaptados à mentira. Velho homem traga profundamente o cigarro e joga o toco no chão. VELHO HOMEM Nós temos também nossos dias ensolarados. Jovem homem joga o resto de cigarro no chão. JOVEM HOMEM Vamos tomar um chá? Jovem Homem e Velho Homem se sentam em duas cadeiras diante de uma mesa. Ambos tomam um chá invisível. O jovem homem faz ruídos com a boca. Parece estar saboreando o chá. JOVEM HOMEM Ah!Ah!Gosto muito de chá preto. Muito bom. Ah! Muito bom. 162 O velho homem tem a xícara invisível diante de si e tem, também, no colo, um gato invisível. Ele acaricia alternadamente o dorso, o peito e a cabeça do gato. VELHO HOMEM De onde você vem, tomar chá é um hábito também? O jovem homem passa um guardanapo invisível na boca. JOVEM HOMEM Tomamos mais café. Temos chá preto, não tão bons como os daqui. Lá temos erva-mate. Fazemos infusão dessa erva. Velho homem balança a cabeça acenando positivamente. VELHO HOMEM Sei. Mas, enfim. Qual a sua ligação com este lugar e por que me procurou? Jovem homem passas as mãos nas roupas como quem as limpasse. JOVEM HOMEM Bem, a ligação com esse lugar. É simples. Meu disjuntor desarmou. Estava tudo ligado no meu cérebro: geladeira, televisão, chuveiro, liquidificador. Tive um curto-circuito. Então precisava de um gerador, de uma fonte de energia alternativa. Encontrei este lugar. Velho homem arqueia as sobrancelhas. VELHO HOMEM Não entendo bem o que você diz. Só me parece que encontrar um lugar é uma coisa boa. Mas, o que quer de mim? Jovem homem esfrega as mãos em círculos. JOVEM HOMEM Estou tentando escrever uma peça de teatro. E você é o personagem central. Um monólogo. Gostaria de encenar a peça. Para isso preciso de sua autorização. Velho homem se agita, bate os pés contra o chão. Ele lança as mãos contra a barba. Ele coça a barba, o cabelo. VELHO HOMEM Preciso saber do que se trata. Jovem homem inclina a cabeça para o lado. JOVEM HOMEM Bem, a história... 163 Velho homem interrompe o jovem homem bruscamente pigarreando. VELHO HOMEM Não. Não. Não quero saber da história. Quero saber por que eu seria um personagem, logo eu que não tenho nada mais para dizer. Jovem homem inclina a cabeça para o outro lado. JOVEM HOMEM Veja bem. Os motivos são vários. Eu posso dizer, por exemplo, que o senhor é uma das poucas pessoas sérias no mundo e que, de onde eu venho, não existem pessoas assim. Posso dizer que aqui é um lugar onde as pessoas têm esperança no futuro e que, de onde venho, isto não existe. Velho homem bate os pés no chão novamente, se mostrando inquieto. VELHO HOMEM Certo, certo, certo. Mas você está fazendo rodeios. Eu quero saber o que te motiva a me procurar para que eu banque, faça o papel de idiota. Velho homem demonstra irritação, coçando os cabelos de forma a quase arrancar os fios. Jovem homem permanece calmo. Ele respira profundamente. Ele solta um suspiro. JOVEM HOMEM Bem. Depois que li suas cartas e seus panfletos pensei que tinha encontrado um sentido para a vida. Isto foi logo depois daquele curto-circuito. Parecia que havia encontrado explicação para tudo. Velho homem aparentando mais calmo. Não coça mais os cabelos. Agora, coça levemente a barba. VELHO HOMEM Nunca pretendi oferecer algo assim para ninguém. Jovem homem balança a cabeça como quem concorda com o que foi dito. JOVEM HOMEM Depois eu percebi que o sentido era ficar atarefado com o estudo das cartas e dos panfletos. A ocupação me deu um sentido. Descobrir o que diziam. A tarefa era o sentido. Essa foi a primeira grande descoberta: mantenha-se ocupado no caso do disjuntor desarmar. Velho homem arqueia as sobrancelhas e arregala os olhos. VELHO HOMEM E o que isso me diz? Jovem homem inclina a cabeça para o lado. 164 JOVEM HOMEM Tudo isso diz duas coisas. Primeiro, a peça de teatro é um agradecimento pela companhia em tempos difíceis. Segundo, uma despedida. Velho homem abre os braços em sinal de dúvida, como se não estivesse entendendo. VELHO HOMEM Você é um sujeito diferente. Vem até aqui. Viaja longamente, me encontra quando quase ninguém consegue me encontrar, já que não existo mais, e, agora, fala em despedida? Veja, dispenso o agradecimento. Só o conhecia por carta e não fiz nada para te ajudar. Só agora te conheço pessoalmente. Um silêncio se faz. Jovem homem cofia o bigode. JOVEM HOMEM Eu só queria pôr um fim no sério. Todas as cartas são muito sérias. Talvez, pudéssemos falar em recomeço. Em fim da seriedade e começo da vida. E a peça mostraria que o senhor acreditava em uma missão. Velho homem balança a cabeça para um lado e para o outro como se respondesse negativamente. VELHO HOMEM Eu agradeço, mas não. Eu sei que você tem um gosto pela zombaria. Também sei que você quer me dar uma chance para falar depois de tanto banho de sangue. Mas o que está feito está feito. Que o meu lugar, a minha terra-natal tenha uma missão é minha última palavra. Jovem homem abaixa a cabeça. Ele levanta a cabeça lentamente. JOVEM HOMEM Não veja em mim nenhuma reprovação moral em ter um missão. De onde venho, as pessoas se fazem de espertas, sabidas, desconfiadas mas estão sempre prontas para acreditar em qualquer coisa. Em todo caso, eu sempre vou observar a distância entre o grande e nobre ideal e a miserável realidade. Velho homem aponta o indicador para o jovem homem. VELHO HOMEM Você pode ser de uma dureza muito grande com as pessoas. O rosto do Jovem Homem se ilumina. Ele entreabre um sorriso. JOVEM HOMEM Não, não. A questão não é o vizinho, o cunhado ou a sogra. A questão nem é de onde venho, mas onde acho que estou diante de onde realmente estou. Um breve silêncio se faz. Jovem franze a testa como quem está tentando ouvir alguma coisa. 165 JOVEM HOMEM Que barulho é esse? Velho homem ameaça abrir um sorriso. VELHO HOMEM É meu estômago. Jovem homem dá uma gargalhada. JOVEM HOMEM Está com fome? Velho homem move a cabeça acenando positivamente. VELHO HOMEM Já está na hora de eu comer meus ovos fritos. Mas não parece que aqui tem alguma coisa deste tipo. Jovem homem se volta para sua bolsa, procura alguma coisa e retira uma banana. JOVEM HOMEM Coma uma banana. Velho homem move a cabeça acenando negativamente. VELHO HOMEM Não, não devo. Desde o tratamento Fedórov, que me possibilitou não morrer, só como ovos fritos. Aliás, nunca comi uma banana. Jovem homem se excita, se agita. Ele coloca a banana bem próximo, diante do rosto do Velho Homem. JOVEM HOMEM Oh, meu amigo. Não perca essa oportunidade. Me sinto lisonjeado. Sua primeira vez. E banana não faz mal. Vamos, coma. O Velho homem pega a banana. Ele começa a descascar a banana. Ele come o primeiro pedaço. VELHO HOMEM Muito bom. Estou gostando bastante. O Velho homem continua a comer. Mais um pedaço. Outro pedaço. Mas, de repente, uma tosse. Outra tosse. Outra tosse. O velho homem se engasga. Não consegue respirar. Ele tosse mais uma vez, tosse de novo, mais uma vez. Ele está engasgado. Ele tosse de novo. O jovem homem se desespera. 166 JOVEM HOMEM Me ajudem! Me ajudem! Socorro! Socorro! Socorro! Me ajudem! Velho homem sai de cena tossindo e jovem homem o acompanha. Professora entra em cena. Em seguida, Jovem Homem entra em cena fumando. Ele está com a cabeça baixa. De repente, ele é surpreendido. JOVEM HOMEM Professora, o que está fazendo aqui? A Professora se ajeita para que os livros invisíveis não caírem do seu colo. PROFESSORA Me desculpe por ter vindo até aqui sem avisar. Mas você não foi à aula. Fiquei preocupada. Aconteceu alguma coisa? É nosso primeiro dia. Jovem homem abre os braços lateralmente com as palmas da mão voltadas para cima. JOVEM HOMEM Eu achei que nosso primeiro dia seria amanhã. Desculpe-me pelo equívoco. E hoje vim encontrar meu amigo. Professora arqueia as sobrancelhas por detrás dos óculos demonstrando interesse. PROFESSORA Ah, você tem um amigo aqui? Não sabia disso. Isto será muito bom para o seu aprendizado da língua. Jovem homem abre um leve sorriso. JOVEM HOMEM Pode ser, mas nós conversamos em minha língua, como nós estamos fazendo agora. Professora toca os óculos em sua parte central, como quem colocasse de volta depois de ele escorregar pelo nariz. PROFESSORA Não entendo. Ele é de onde você vem? Jovem homem continua sorrindo. Agora, parece demonstrar uma grande presunção. Ele inclina o peito para frente. JOVEM HOMEM 167 Não, não. Ele é daqui, mas aprendeu a minha língua com um homem muito ilustre que sabia falar javanês. Este meu amigo foi um escritor muito importante aqui. Poucas pessoas sabem que ele ainda está vivo. Professora também sorri. Ela se agita demonstrando curiosidade. PROFESSORA Talvez, eu também o conheça. Onde vocês se encontraram? Jovem homem traga profundamente o cigarro. JOVEM HOMEM Ali, no museu que construíram em homenagem a ele. Professora franze a testa. Ela cerra os olhos. PROFESSORA Museu? Museu... Aqui não nenhum tem construído em homenagem a nenhum escritor. Jovem homem inclina a cabeça para o lado. JOVEM HOMEM Como não? Eu estive ali com ele! Professora respira fundo. PROFESSORA Onde fica este museu? Em que rua? Jovem homem demonstra calma, segurança. JOVEM HOMEM Na rua Liudmila Petrushévskaia. Professora fica pensativa, coloca os dedos na cabeça como se estivesse tentando lembrar do lugar ou visualizar uma paisagem. PROFESSORA Mas neste lugar só existem casas e um sanatório.



Um silêncio se faz. A professora olha ao redor, parece procurar um ponto para onde fixar os olhos. O jovem homem continua fumando, lançando fumaça para o alto. JOVEM HOMEM Você gosta de gatos? Professora balança a cabeça como quem afirma positivamente. 168 PROFESSORA Sim, sim. Gosto muito de gatos. Jovem homem joga fora o cigarro. JOVEM HOMEM Eu também gosto, mas o meu gato é invisível. Professora abre um sorriso levemente. PROFESSORA O meu também é invisível. Mas ainda assim ele me arranha. Jovem homem sorri também levemente. JOVEM HOMEM Mas há uma vantagem nisso tudo. Quando eles saem para passear a gente não sente a falta deles. Professora não sorri mais. Parece ter o semblante triste. PROFESSORA Mas o meu morreu. Jovem homem curva os ombros. Seu semblante também é triste. JOVEM HOMEM Parece que o meu também. Professora arregala levemente os olhos demonstrando surpresa. PROFESSORA O seu gato também morreu? Jovem homem ainda triste. JOVEM HOMEM Não. Meu amigo. Talvez, não. Não sei. Professora toca os ombros do jovem homem. PROFESSORA Me diga uma coisa. Você não veio ate aqui pela segunda vez somente para aprender a língua da minha terra-natal. Você veio para encontrar este seu amigo. É isso? Jovem homem procura o maço de cigarros no bolso. JOVEM HOMEM 169 Sim, é isso. Nós conversamos um pouco. Eu propus algo para ele. Ele não aceitou. Então eu quis me despedir dele, a conversa não andou bem e ele passou mal. Professora faz cara de espanto. PROFESSORA A conversa, então... Jovem homem balança de um lado para o outro demonstrando reprovação. JOVEM HOMEM Não foi a conversa, foi a banana. Professora franze a testa. PROFESSORA E você não sabe se ele está vivo? Jovem homem retira um cigarro do maço e o acende. JOVEM HOMEM Não. Parece que a vida e a morte dele são assuntos do Governo. Professora ergue o braça direito e coloca a mão direita sobre o ombro esquerdo do Jovem Homem. PROFESSORA É melhor você não se meter nisso. Jovem homem acena com a cabeça positivamente. JOVEM HOMEM Eu sei, eu sei. Mas agora eu tenho duas pendências. Perdi um personagem para minha peça e não poço colocar um final em minha história com este lugar. Professora coloca a mão direita sob o queixo. PROFESSORA Não entendo muito bem, mas vamos arranjar isto. Jovem homem abre os braços com o cigarro na mão direita, com quem indaga alguém. JOVEM HOMEM Como isso seria possível? Não vejo nenhuma saída. Professora abre um leve sorriso com os lábios sem abrir a boca


PROFESSORA É você quem vai encontrar a saída. Você não pode permanecer onde está. Jovem homem cerra levemente os olhos, insinuando um certo desprezo. JOVEM HOMEM E o que eu precisaria fazer? Se é que você sabe. Professora assume um tom sério. Fecha o semblante. PROFESSORA O que você vai fazer eu realmente não sei. Mas estou aqui. Podemos conversar. Jovem homem arqueia as sobrancelhas, arregala os olhos. JOVEM HOMEM E sobre o quê exatamente seria a nossa conversa? Professora abre os braços em direção ao jovem como se estivesse apresentando ou oferecendo algo, com as palmas da mãos voltadas para cima. PROFESSORA Parece que você tem duas coisas para resolver. A peça e a despedida. Por enquanto, você não sabe o que fazer com isso. Jovem homem balança a cabeça vagarosamente para cima e para baixo, vagarosamente em sinal de aprovação. JOVEM HOMEM É verdade. Sei de onde venho. Não sei para onde ir. Não imagino o quê mais possa me acontecer Um breve silêncio se faz. Jovem fuma o cigarro. Professora mexe nos óculos e fita o Jovem Homem. JOVEM HOMEM Mas, veja, considere que estou confuso no momento. Professora sorri. PROFESSORA Não vejo problema nisso. Você é só um homem fraco. Estou acostumada com isso. Sou capaz de apostar que você nunca comeu o cérebro de um macaco. Ambos se encaminham para a mesa. Eles se sentam. Professora ajeita os óculos. 171 PROFESSORA Você tem sonhos? Quero dizer, você se lembra dos seus sonhos? Jovem homem se ajeita na cadeira. JOVEM HOMEM Veja, não costumo me lembrar. Às vezes, me lembro, outras vezes, não. Mas, desde que cheguei aqui tem acontecido uma coisa estranha. Professora cerra os olhos quase os fechando. PROFESSORA Que tipo de coisa? Estou curiosa. Jovem homem cofia o bigode. JOVEM HOMEM Estou sonhando acordado. Professora franze a testa. PROFESSORA Isto é muito comum por aqui. Jovem homem pisca os olhos várias vezes. JOVEM HOMEM É mesmo? Será o frio ou a distância? Professora inclina a cabeça para o lado. PROFESSORA Não sei se é bem isso. Mas algumas pessoas dizem que quando isso acontece significa que você está prestes a conhecer o seu duplo, o outro de você mesmo. Um breve silêncio se faz. Jovem homem passa a mão direita nos cabelos. Professora ajeita os óculos. PROFESSORA Você está sonhando com o quê? Jovem homem fica irrequieto. Ele parece tentar encontrar uma posição confortável na cadeira, embora não consiga. JOVEM HOMEM Com almas mortas. 172 O silêncio entre eles se aprofunda. Jovem homem olha ao redor procurando um ponto para fixar o olhar. Professora sorve a xícara de chá invisível. PROFESSORA Mas me diga. Por que o teatro? Jovem homem franze a testa e balança a cabeça como se não estivesse entendendo a pergunta. JOVEM HOMEM O teatro? Como assim? Professora inclina a cabeça para o lado. PROFESSORA Sim, sim. Você não disse que queria fazer um monólogo com seu amigo? Jovem homem inclina o queixo para o frente e para o alto como se agora estivesse entendendo a pergunta. JOVEM HOMEM Ah, sim. O teatro. Professora fica ereta na cadeira. Ela assume um tom solene. PROFESSORA Por que o teatro? Por que não um romance, um ensaio? Jovem homem acena a cabeça para cima e baixo. JOVEM HOMEM O teatro é arte dos vivos, inteiramente, de corpo e alma. No palco, nas ruas, até os mortos têm vida. No ensaio, no romance, também, talvez, mas só na imaginação. No teatro, o corpo inteiro - vivo! - está presente. De todos, do personagem e do público. Professora inclina a cabeça para o lado, franze a testa e arregala os olhos. PROFESSORA Eu tenho minhas dúvidas. Você parece estar certo de que o seu personagem está vivo. Jovem homem abaixa a cabeça. JOVEM HOMEM Na verdade, não tenho. Depois do episódio da banana não sei


ão sei se ele irá sobreviver. Professora inclina a cabeça para o outro lado. PROFESSORA 173 Não estou dizendo isso. Estou dizendo que você está muito certo dos limites entre vida e morte, arte e vida, aqui e lá. Nesse momento, entra em cena o homem bêbado. Ele se dirige ao jovem homem. HOMEM BÊBADO O senhor pode me dar um cigarro? Jovem homem retira o maço de cigarros do bolso e dá um cigarro ao homem bêbado. HOMEM BÊBADO Obrigado! Homem bêbado sai. Jovem homem arregala os olhos fazendo cara de espanto. JOVEM HOMEM Ele fala a minha língua! Que lugar incrível é aqui. Professora faz uma cara de enfado. Ela demonstra tédio. PROFESSORA Sim. Aqui é mesmo um lugar incrível. Jovem homem se mostra incomodado, ele se agita na cadeira. JOVEM HOMEM O que foi? Você acha que a ideia da peça é tão ruim assim? Professora ajeita os óculos. PROFESSORA Não, não é isso. Ensaio, teatro, romance, poesia, a questão não é essa. Você tem coisas por resolver ainda, antes de decidir o que fazer. Jovem homem morde os lábios, cerra os olhos sem os fechar. JOVEM HOMEM Não entendi. Explique melhor. Professora põe as duas mãos em cima da mesa com as palmas voltadas para baixo. PROFESSORA Você não disse que anda sonhando acordado? E que anda sonhando com almas mortas? Jovem homem se mostra impaciente, ele bate os calcanhares no chão. JOVEM HOMEM 174 Sim, eu disse. Mas o que isso tem a ver com a peça? Ou com a despedida do meu amigo? Professora alisa a mesa com as duas mãos. PROFESSORA Veja. Algumas coisas precisam ser reveladas. Você não conhece um eu misterioso que mora dentro de você mesmo. Ele está querendo sair. E você não sabe quem ele é. Jovem homem ergue o queixo para frente e para o alto. JOVEM HOMEM Não seria melhor impedir esse eu de sair? Talvez eu possa conter esses sonhos. Talvez fazendo a peça e me despedindo do meu amigo, tudo isso desapareça. Professora inclina a cabeça para o lado. PROFESSORA Não seja idiota. Não depende de você querer ou não querer. Esse eu que está escondido em você vai sair. Ele é uma força da natureza. Você o escondeu por muito tempo. Se tentar impedir sua saída, ele vai sair todo deformado. Então você provará consequências terríveis. Jovem arregala os olhos fazendo cara de espanto. JOVEM HOMEM Como você sabe dessas coisas? Nós nos conhecemos há dois anos! Como pode saber tudo isso? Professora ajeita os óculos e o cachecol invisível. PROFESSORA Na verdade, é você quem sabe disso há muito tempo. Jovem homem coloca as duas mãos no rosto cobrindo-o. Em seguida, ele leva as mãos aos cabelos. JOVEM HOMEM O que devo fazer então? De mais imediato. Professora ajeita os óculos. PROFESSORA Vamos conversar sobre o teatro ainda. Mas acho que você não deveria pensar em se despedir do seu amigo. E fique por um tempo aqui, em minha terra-natal. Jovem homem ergue a cabeça. Ele respira fundo. Ele parece demonstrar alívio. Ao mesmo tempo, ele arqueia as sobrancelhas demonstrando preocupação. JOVEM HOMEM 175 Nos ringues, a gente aprende que é necessário um bom plano de luta. Mas um bom plano de luta dura até você tomar o primeiro soco. Professora toca com sua mão direita a mão esquerda do Jovem Homem colocada sobre a mesa. PROFESSORA Ninguém está a salvo. Não há garantia de nada. Mas você pode escolher, ou ser um homem ou ser um crocodilo. Jovem cofia o bigode. JOVEM HOMEM Por enquanto, só penso em me deitar um pouco. Os lobos estão uivando muito alto. Professora ajeita os óculos. PROFESSORA Eu não entendo por que dois pés. Acho que deve ter alguma explicação oculta para tudo isso. Ambos se levantam. Professora está diante do Jovem Homem. Ele fuma um cigarro. JOVEM HOMEM Por que você é tão acolhedora com os estrangeiros? Professora ajeita o cachecol invisível. PROFESSORA É meu ofício. Sou assim. Não sei. Jovem homem lança a fumaça do cigarro para o alto. JOVEM HOMEM Você é uma jovem muito promissora. Professora tem a coluna em posição ereta, as pernas juntas. PROFESSORA É preciso trabalhar. Gosto do que faço. Gosto de pessoas. Gosto de ensinar. Jovem homem abre um sorriso. JOVEM HOMEM É interessante. De onde eu venho, os professores querem prestígio, fama, favores. Não gostam de ensinar, não gostam de pessoas. Professora arregala os olhos. 176 PROFESSORA E por que são professores? Jovem homem traga o cigarro profundamente. JOVEM HOMEM É um paradoxo. Eles se dão por satisfeitos com uma fama e um prestígio entre eles, minúscula. Eles são uma espécie de sub-celebridades sem dinheiro. Professora lança a mão direita para a frente, estendendo a palma da mão para cima. PROFESSORA É por isso que quer fazer a peça de teatro? Para dar uma lição? Jovem homem acena a cabeça para um lado e para o outro, mostrando desacordo. JOVEM HOMEM Não, não. Não estava pensando nos professores quando pensei nisso. A história é bem outra. Professora ajeita os óculos. PROFESSORA E do que se trata então? Vai me contar? Jovem homem traga o cigarro profundamente e lança a fumaça para o alto. JOVEM HOMEM É preciso que você saiba que a história do duplo, do outro eu, querendo aparecer não é estranha para mim. Professora se agita, parece demonstrar certa irritação. PROFESSORA Então quer dizer que a surpresa que você demonstrou quando eu toquei no assunto era falsa. Jovem homem acena a cabeça para um lado e para o outro discordando. JOVEM HOMEM Não, não, a surpresa era verdadeira. Fiquei surpreso com o fato de você estar percebendo o que está acontecendo. Professora inclina a cabeça para o lado. PROFESSORA Não exatamente. Eu só tive uma intuição de algumas  coisas depois que você me falou do seu sonho acordado. 177 Jovem homem lança o braço direito para frente com o cigarro entre os dedos da mão direita. JOVEM HOMEM Tudo bem. Que seja assim. Mas o fato é que há alguns anos um pedaço de mim saiu. E ele ficou bem aqui, ao lado da minha cabeça. Jovem homem explica o que houve colocando as duas mãos ao lado direito da cabeça, fazendo um semi-círculo. Professora ajeita os óculos. Ela demonstra interesse dando um passo adiante. PROFESSORA E como era esse eu? Você o via? Jovem homem traga o cigarro. JOVEM HOMEM Eu o via de soslaio. Era branco. Estava todo de branco. Professora fica na ponta dos pés. PROFESSORA E ele dizia alguma coisa para você? Jovem homem respira fundo. JOVEM HOMEM Não. Não dizia nada. Só me acompanhava para todos os lugares onde eu ia. Professora continua agitada, excitada. PROFESSORA Onde ele está agora? Jovem homem abaixa a cabeça. JOVEM HOMEM Ele se foi. Professora acena a cabeça positivamente. PROFESSORA Então quer dizer que você espera reencontrar esse eu perdido com o teatro... Jovem homem inclina o queixo para cima e para frente. JOVEM HOMEM 178 Isso não estava claro para mim. Agora vejo melhor. É que meu eu perdido se parece muito com meu velho amigo. Professora inclina a cabeça para o lado. PROFESSORA Seria preciso saber primeiro quem está vivo e quem está morto antes de tentar fazer a peça de teatro. Um silêncio se faz entre eles. Professora olha ao redor e Jovem Homem continua fumando e jogando fumaça para o alto. De repente, se levanta a Jovem Mulher que estaria morta no começo da peça. Muito elegante, bem vestida, muito bonita. Ela vem caminhando e, de repente, se detém. O peito arqueado para frente, a cabeça lançada para trás e os joelhos quase dobrados. Sua bolsa cai ao chão. Jovem homem balança a cabeça para um lado e para outro. JOVEM HOMEM Acho que estou confuso. Professora toca os ombros do Jovem Homem levemente. PROFESSORA Acho que você está levando muito a sério a separação entre palco e plateia. Jovem homem leva as mãos aos ouvidos. JOVEM HOMEM Mas esses malditos lobos! Professora ajeita os óculos. PROFESSORA Eu só conheço o caminho que leva ao cerejal. Jovem homem passa as mãos nos cabelos. JOVEM HOMEM Talvez, o melhor é deixar o meu caro amigo falar. Professora acena positivamente com a cabeça. PROFESSORA Concordo com você. Você tem que deixar falar o que está transbordando em você. Jovem homem cofia o bigode.


JOVEM HOMEM Mas não sei onde ele está agora. Professora aponta o dedo indicador para o Jovem Homem. PROFESSORA Você sempre o perde de vista. Na maioria das vezes, parece que você sabota os encontros com ele. Aliás, você não estava falando em despedida? Jovem homem procura o maço de cigarros no bolso do casaco. JOVEM HOMEM Eu sempre fugi das aberrações, dos monstros, dos fantasmas... De mim mesmo. Professora ajeita os óculos e o cachecol invisível. PROFESSORA Não sei se é coisa boa descer aos infernos. Você acaba encontrando alguma coisa. Jovem homem acende o cigarro depois de brincar com ele entre os dedos. JOVEM HOMEM Nessa viagem, estou encontrando o que eu mais temia. A Jovem Mulher cai no chão. Professora olha para o cadáver da Jovem Mulher PROFESSORA Poucos sobrevivem a esta viagem. Jovem homem traga profundamente o cigarro. JOVEM HOMEM É por isso que batem palmas quando o piloto consegue aterrissar. Professora inclina a cabeça para o lado. PROFESSORA É por isso que seu destino é a descida. Jovem homem se agita, se mostra aturdido. JOVEM HOMEM Mas o que vou fazer com isso? Professora se esforça por manter a coluna ereta, assumindo um tom solene. 180 PROFESSORA Nem imagino o que vai fazer. Mas somos assim. A vida é assim para nós. E, estamos aqui. Jovem homem joga o cigarro fora. JOVEM HOMEM E os lobos continuam uivando. Professora ajeita os óculos, o cachecol invisível e olha ao redor. PROFESSORA É o vento. Velho homem, homem bêbado entram em cena. Jovem mulher já está em cena. Todos os personagens estão em cena. Cada um deles estão em um canto do palco. Velho homem e homem bêbado estão andando andando vagarosamente. Jovem mulher está parada. Jovem homem anda pelo palco. JOVEM HOMEM De onde venho, todos são indígenas, mas todos querem ser caciques. São todos da ralé, mas todos querem ser chefes de almoxarifado. Só não fui um capitão-do-mato porque me faltou força, me faltou energia. Enfim, nunca matei ninguém por preguiça. Homem bêbado anda pelo palco e fala sozinho. HOMEM BÊBADO Hum! Hum! Pazhalusta! Hum! Hum! Hum! Hum! Velho homem anda pelo palco, coça a barba e fala sozinho. VELHO HOMEM Lázaro! Tudo está em Lázaro! Lázaro! Tudo está em Lázaro! Jovem homem agora parado, balança os braços freneticamente e fala sozinho. JOVEM HOMEM Era preciso decidir. E eu não estava lá. Estava, mas não estava. Se eu pudesse ver agora ao

que renunciei, teria feito alguma coisa. Mas, não. Agora é tarde. O que resta por fazer não é real, é apenas purpurina. Os cavalos roçando o pasto e as azaléas pedindo a noite. Jovem mulher anda rapidamente pelo palco e se detém. Em seguida, ela anda rapidamente e, novamente, se detém. Professora anda lentamente pelo palco. Ele ajeita os óculos. PROFESSORA 181 Os meus meninos. Os meus meninos. O que será feito deles? Jovem homem ainda com os braços balançando freneticamente, mas, agora, parado. JOVEM HOMEM Vai ver nada daquilo era real. E nada hoje é purpurina. São meus olhos em busca do horizonte. Mas sinto que alguma coisa se perdeu, que não pode mais. De onde venho, o melhor fruto apodreceu sem que o tivéssemos plantado. E o que foi plantado, hoje é veneno. Por isso, atrás da cortinas, só vejo infinitas cortinas. Lá atrás, um grito. Mas não há ninguém lá. Velho homem anda em círculos e coça os cabelos. VELHO HOMEM Lázaro! É ele! Lázaro! Lázaro! É ele! É ele! Lázaro! Lázaro! Jovem mulher anda rapidamente e, de repente, se detém. Ela arqueia o corpo para a frente. Ela tem o peito inclinado para frente e a cabeça totalmente lançada para trás. Os joelhos estão semi-dobrados. O homem bêbado anda vagarosamente e fala sozinho. HOMEM BÊBADO Hum! Hum! Spasiba! Spasiba! Hum! Hum! Hum! Jovem homem ainda parado, balança freneticamente seus braços. JOVEM HOMEM Não havia nada escondido. Em todo este tempo, meus duzentos demônios lutavam entre si. Depois de uma batalha infernal entre eles, o vitorioso colocava a cabeça para fora. Mas a guerra não tinha acabado. Então percebi que todo o barulho que eu ouvia era provocado pela lamúria dos demônios vencidos. Eu o segui a trilha desse barulho e hoje estou aqui. A artimanha do demônio vencedor era o silêncio. Sua vitória era a minha derrota. E ele me serviu no jantar um pedaço de mim como prêmio pela lembrança. Professora ajeita o cachecol invisível. Ela anda de um lado para o outro do palco. PROFESSORA Eles não têm culpa de nada. Meus meninos. Meus meninos. Eles não têm culpa de nada. Jovem mulher cai ao chão. Velho homem anda de um lado para outro do palco. Ele cofia a barba. VELHO HOMEM Eu disse, eu disse. É Lázaro! Lázaro! Eu disse, eu disse! Lázaro! É ele! Jovem homem ainda parado. 182 JOVEM HOMEM Por esta via. (Aponta com o braço esquerdo) Posso seguir o caminho dos confetes e das serpentinas. Por esta via (Aponta com o braço direito) O caminho do arremedo. Será minha última decisão porque esta é uma decisão última. De onde venho, ninguém nasce para mastigar ferros com os próprios dentes. Estamos entre o macaco e o artista. Poucos são os dilacerados por um curto-circuito. O curto-circuito interrompe fluxo. Quanto aos muitos, eles são escolhidos para uma vida de arremedo. Decidir não ser macaco é o fardo da alforria. Homem bêbado anda vagarosamente e fala sozinho. HOMEM BÊBADO O senhor pode me dar um cigarro? Pode? Pode? Hum! Hum! Pode me dar um cigarro? Pode? Pode? Hum? Hum? Professora ajeita os óculos. Ela anda vagarosamente pelo palco. PROFESSORA Meus meninos, meus meninos, não. Eles não têm o que comer. Meus meninos, não, não. Meus meninos. Velho homem coloca as mãos diante do rosto. Ele anda vagarosamente pelo palco. VELHO HOMEM Não se engane. Não se engane. É ele! É ele! Lázaro! É ele! Lázaro! Jovem homem anda vagarosamente pelo palco, balançando os braços freneticamente. JOVEM HOMEM As últimas coisas dirão se me consagrei a um ídolo ou a um deus. Na batalha dos demônios, confiei na memória. Agora, não. Quero o futuro. E não vejo nada, a não ser um abismo. Talvez, eu possa ser um pássaro, uma ponte, um galho, um rio lá embaixo. Eu não sou trezentos, nem trezentos e cinquenta. Eu não sou nada. Tenho na mão uma máscara e um pacote de confete. Hoje, Paris, Texas, amanhã, Doha, depois de amanhã, Magé. Não é que tudo valha a pena. É que depois de tudo perder o brilho, a gente faz o possível, somente o possível. E o possível, neste momento, é o delírio. Jovem mulher se levanta. Ela ajeita as roupas, se recompõe e anda rapidamente pelo palco. Professora ajeita o cachecol invisível. Ela anda vagarosamente pelo palco. PROFESSORA Ainda podemos fazer muito. Meus meninos, meus meninos. Não os levem. Não os levem. Ainda podemos fazer muito. Meus meninos, meus meninos. 183 Homem bêbado tem o cigarro na boca e sorri. Ele anda vagarosamente pelo palco. HOMEM BÊBADO Hum! Hum! Um cigarrinho! Hum! Hum! Sempre bom! Hum! Hum! Um cigarrinho! Sempre bom! Hum! Hum! Velho homem lança as mãos para o alto, como se rezasse. Ele fica parado. VELHO HOMEM Ele levantou e andou! É ele! É ele! Levantou e andou! Lázaro! É ele! É ele! Jovem homem está parado. Seus braços ainda balançam freneticamente. JOVEM HOMEM Porque depois do curto-circuito o curso das águas deixa de ser espontâneo. Eu não perguntava "o que fazer?", mas "por que fazer?". As chuvas, as ondas do mar, trovões e raios sempre novos, a cada vez causando espanto. Tudo como se fosse pela primeira vez. E, de repente, o gosto amargo, afinal, tudo se repetia. E, enfim, o consolo, tudo se repetia. Quer dizer, no planeta dos macacos, tudo se repete. Na verdade, eu sou macaco, zumbi, crocodilo, depende do momento e do lugar. Não hã um "por detrás" nem um "pela frente". O que se vê é tudo. E nada que é visto merece ser levado a sério. Professora ajeita os óculos. Ela está parada. PROFESSORA O que será feito deles? Meus meninos, meus meninos. Para onde irão? Meus meninos, meus meninos. Velho homem leva as mãos ao rosto novamente. Ele está parado. VELHO HOMEM É um milagre! Lázaro! Eu vi! É ele! Milagre! Lázaro! Eu vi! Eu vi! É ele! Jovem mulher andando rapidamente, se detém, arqueia o corpo, lança a cabeça totalmente para trás. O peito está lançado para frente e os joelhos semi-dobrados. Homem bêbado sorri sorrateiramente. Ele anda pelo palco. HOMEM BÊBADO Hum! Hum! Mais um cigarrinho. Quero outro! Hum! Hum! Mais um. Hum! Hum! Jovem homem está imóvel, parado. JOVEM HOMEM O problema não é mais valer a pena ou não. O problema é que, depois do primeiro susto na vida, a pedra não é mais uma coisa morta. E mesmo assim, só restarão ruínas e esquecimento. Talvez, um álbum de retratos. Talvez, nem que seja por um instante, eu seja pássaro, ponte, 184 galho ou um rio lá embaixo. Só assim poderei dizer que tudo foi um sonho, que os crocodilos, os zumbis e os macacos foram tudo o que eu poderia ser. Professora tem a voz embargada, lacrimosa. PROFESSORA Meu menino poderia ser alguém. Meu menino. Meu menino se foi. Ele poderia ser. Homem bêbado dá uma risada sarcástica. HOMEM BÊBADO Agora quero um golezinho. Hum! Hum! Um golezinho! Hum! Hum! E um cigarrinho! Hum! Hum! Jovem mulher cai de novo no chão. Jovem homem fica no ponta dos pés, enche o peito. JOVEM HOMEM Melhor não fazer nada. Dá muita dor de cabeça. Gosto muito de paisagens. De onde venho, assistimos a tudo, de preferência, de maneira bem confortável. É isso, uma sala de estar, um casamento e uma janela. Não posso fundar uma cidade nem defender um castelo. Quem sabe fingir um papel? Nem isso! (Faz um grunhido) Só me resta a bravata! Digo, a bravura! Ou seria, a bravata? Bem... Vou conclamar a paz universal entre os macacos de boa vontade. Que todos possam reconhecer no outro o crocodilo que mora em si mesmo. Que o brilho do olhar se manifeste em cada um dos zumbis. Velho homem se ajoelha no chão, coloca as mãos para o alto. VELHO HOMEM Lázaro! Ele voltou! A tumba! Lázaro! Eu vi! Lázaro! A tumba! Professora ajeita os óculos, agora, chorando. PROFESSORA O meu menino. Eu tive que comê-lo. Meu menino. Meu menino. Não pude evitar. Eu tive que comê-lo. Meu menino. Meu menino. Jovem mulher tenta se levantar e cai. HOMEM BÊBADO Hum! Hum! (Dá uma grande gargalhada) Hum! Hum! As luzes se apagam.




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