DIA DOS MORTOS
Dia de luto.
Dia das memórias secas.
Um rosto, rosas brancas, seguro nas mãos frias.
Lágrimas de outrora caem no chão.
Os que se foram ainda estão aí.
Diante deles me detenho.
Acho que me olham.
Acho que me esperam.
O que é essa mania de estar com os mortos?
Cai a madrugada, mansa e vagarosa.
Uma névoa fria.
Tenta me consolar.
Do alto da montanha o coiote entoa seu canto.
Uma terra de mercúrio desliza até meus pés.
E escorre até aos mortos queridos.
Olho, estão expostos.
Cata-os um a um.
Foi noticiado de todos os berçários até todas sepulturas:
derramei meus mortos na varanda da velha casa.
Lá estão eles; lá eles conversam.
Não quero machucá-los.
Tomo-os pelas mãos.
Não há pranto.
O pranto é uma aurora de violinos.
Brincam.
Olho-os com alegria.
Bonitos como um dia estiveram.
Preciso dizer a eles que a vida é bela?
Dizer que tudo é sonho?
Despertos,
Não sabem aonde ir.
Levo-os de volta à sua morada.
Não querem entrar.
Resistem entrar na casa fria.
Voltam.
Ficam comigo.
Quem se move:
eles ou meu delírio?
Não há peixes a oferecer.
Nem ramos de oliveira.
Não há coisa alguma.
Não há jardim para enterrá-los.
A moça ao meu lado,
veste transparente,
olhos vazados,
beija meus lábios.
Gosto de terra antiga.
A revoada de pássaros de asas longas.
Ela quer uma mão,
mesma fria,
mesma ferida.
Ela quer um afago,
mesmo pequeno;
mesmo apenas um instante.
O que é esta mania esquisita de estar com os mortos?
A cidade não dorme. Está desperta.
Jovens de crânios enferrujados,
portando estandartes ocos e lamparinas ressentidas,
espancam as casas santificadas.
Ordenam a morte de todas memórias dos que se foram.
Um rosto intruso, escondido,
entortado, olha a cena.
Exala suor roxo escuro
Fede loucura.
Joga pedras nos meus mortos.
Tenta rasgar sua vestes desgastadas.
Acelera sua moto, passa por cima deles.
Chego a tempo.
É preciso deter os que não prestam.
Venho com a estrela da anunciação.
Na primeira mão trago fogo devastador.
Noutra, sementes que principiam.
Com olhos de subsolo,
lembranças dependuradas nas costas,
boca cheirando mato nascente,
trago a lâmina pujante,
numa esplendorosa ira retalho sem compaixão as faces do não sentido.
Com fúria despedaço de alto a baixo o rito da morte amarga.
Os meus mortos, agora, carinhosamente me beijam.
E aquele rosto tão antigo,
inscrito como lembrança viva,
vem e me abraça.
Pede uma palavra,
qualquer que seja.
Pede uma oração que diga amém.
Traz um sorriso; pede companhia.
Juntos, novamente, cada um a seu modo,
subimos a escadaria dos costumeiros dias.
Quando pouso a mão nos seus ombros,
não há mais ele.
Estranho é ainda esta presença dentro de mim.
Os meus morto adormeceram.
A cidade está iluminada.
Choro.
A cidade não venera o vazio.
Adormeço.
Outro dia me espera.
Dia com olho de hoje.
A rotina me aguarda.
Olho a rua, carros, pessoas passando.
Assusto-me: é um assombro tudo isso.
Tarde distante vem.
Noite chegando.
Um café quente está na mesa.
Tomo.
Daqui a pouco durmo.
Penso mais uma vez nos que se foram.
Todos.
Qualquer um.
Que mania estranha, essa de estar com os morto
Nenhum comentário:
Postar um comentário