segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Paráfrase

PARÁFRASE Lúcio Emílio do Espírito Santo Faculdade de Direito SE CORRER O BICHO PEGA... O cadáver de Universino Soares dos Reis, vigilante bancário, casado, filho de Indalécio Soares dos Reis e Ana Serafina de São José, jaz sobre a mesa gelada de aço inoxidável da sala de autópsias. £ quase meia-noite e a chuva não pára, como também não param de chegar camburões com outros corpos que vão sendo rotulados de acordo com a ordem de entrada. Universino trabalhava na Companhia de Segurança «FORTEX» Ltda e, na manhã de hoje, ao repelir o assalto à Agência do Banco Alvorada S/A, em Osasco, recebeu um tiro na cabeça, falecendo antes de receber socorros médicos. Mineiro de Bom Despacho, há tempos sonhava regressar à terra natal, já que não suportava mais as condições de vida na capital paulista, a miséria crescente e o dinheiro cada vez mais curto para pagar as contas. Universino já tinha até arrumado a casa em Bom Despacho e só esperava juntar algum dinheiro para fazer a mudança e ir embora de uma vez, deixar aquele inferno. Parece que estava até adivinhando. — Você quer saber por quê eu quero ir embora? — dizia ele a um amigo. Eu ganho apenas sessenta mil para criar cinco filhos. Além disso, o emprego não é garantido. Amanhã posso ser despedido e cair na rua da amargura, como milhares de outros trabalhadores por aí. Preciso dizer mais? Olha aqui, meu chapa, já estou cansado dessa vida estúpida, dar um murro danado e no fim ganhar um pontapé no trazeiro. — Mas, no interior a coisa deve estar pior, sô... — Engano seu. Quando meu pai mudou para cá com a família, achava que São Paulo era o paraíso. Ele veio achando que sua vida ia melhorar, aqui ia ter trabalho, bons salários, escola para os filhos e casa para morar. Pois bem. Um ano depois, ele morreu atropelado no Sumaré, deixando cinco filhos totalmente desamparados. Minha mãe, sem condições de susten tar a casa, entregou meus irmãos ao Juizado de Menores e eu fui para a casa de um tio, pois era o mais novo, com apenas dois anos de idade. Onde andam eles agora? Ninguém sabe. E muito triste, não é? — A vida é assim em todo lugar, companheiro. Não se iluda não... — Mas, em São Paulo é pior. Pra começar, não há empregos. Quando a gente consegue um, os salários são baixíssimos, de fome mesmo. As distâncias são enormes. A gente vive perma nentemente amedrontado, tenso, acuado, tudo nesta cidade é dor e sofrimento... Na sala de espera, a viúva Marluce não chora. Cadê lágrimas? Em seu semblante se estampa apenas o ríctus amargo de tortu rante angústia. Seu olhar oblíquo percorre os ladrilhos sujos da sala mal iluminada. Enquanto não liberam o corpo do marido, bailam em sua mente passado e futuro. Conheceu Universino num dia de chuva como este. Ele era carteiro, ela, empregada doméstica. Todo molhado, Universino resolveu pedir-lhe um guarda-chuva em prestado. 32 — Guarda-chuva não tenho. Tenho sombrinha, serve? — Se for bonita como você, serve. A partir de então tornaram-se íntimos. Alguns meses depois estavam casados. Sempre achou perigoso o trabalho de Univer sino, mas os encargos de família e esses tempos difíceis não permitiam o luxo de escolher trabalho. Era o que aparecesse. Apareceu o de vigilante, Universino não se fez de rogado. Ia guardar o dinheiro dos outros. Ia se sacrificar dia e noite pela riqueza de gente que nem conhecia. Mariuce jamais imaginara que o marido terminaria assim, apesar de conhecer os riscos do trabalho de guarda bancário. A esperança de um dia sair daquela penúria não lhe deixava entrever estes riscos. O corpo de Universino já está vestido e vai ser entregue à viúva. Na pressa, Mariuce apanhara o terno nupcial e acha que não deveria ter feito isso. Não vai restar nada, nem a melhor lembrança dele, pensava. Mas agora é tarde. Abre-se a porta da sala de necrópsias, o funcionário de plantão chama Mariuce. — Aqui está a sua sacola e isso aqui é a certidão de óbito. Se a senhora desejar, o velório poderá ser feito na capela do próprio Instituto Médico-Legal. A viúva recebe o carrinho contendo o caixão. Alguns voluntários se oferecem para conduzi-lo à capelavelório. Mariuce prorrompe em choro convulso, baqueia, mas é logo amparada por pessoas desconhecidas. Abrindo o cortejo, segue uma belíssima coroa de flores, onde se lê: «Ao Universino, com a gratidão dos clientes do Banco Alvorada S/A». II ...SE FICAR O BICHO COME. O corpo de Geraldino da Silva, vinte e cinco anos, assaltante, casado, filho de Geraldo da Silva e Maria das Dores, jaz inerte sobre o mármore frio da sala de necrópsias. 33 Já passa da meia-noite. Lá fora a chuva fina e persistente não pára de cair. O barulho dos camburões que chegam a cada momento se mistura com o tilintar dos instrumentos de autópsia, manipulados com certo descaso pelo legista e seus auxiliares. Geraldino, desempregado há quase dois anos, recebeu um balaço no peito e outro na testa, ao trocar tiros com o vigia do Banco Alvorada, em frustrada tentativa de assalto à agência do banco em Osasco. Cearense de Quixadá, nunca escondera os propósitos de retornar à terra natal. Pensava em pegar um pau-de-arara, ele mais a mulher e os seis filhos, e se abalar para a terra de nascença. Ainda ontem esteve com o dono de um caminhão de transportes de carga e sondou preço de passagem para a família. — Tu tá querendo voltar pro Ceará, bicho? — Pois já vai pra dois anos que estou parado, companheiro, pegando biscates daqui e dali, ganhando patavina, a Maria doente dos rins, menino chorando com fome. Não, não agüento mais essa vida, não. Não nasci pra pedir esmola, não, bicho. E muito menos pra engolir esta vida pai-d'égua... — Olha, num vai fazer besteira, viu? No sertão a seca tá braba... — Lá me arranjo sem me humilhar. Aqui num tem saída: ou tu vê os filho morrer de fome ou você parte pro crime... — Num diz besteira, cabra da peste. Tu vai te arruina de vez... Na sala de espera a viúva Aparecida não tem pressa em rever o marido. Em seu semblante se desenha o ríctus amargo de torturante vergonha. Não ousa erguer o rosto, encarar as pessoas. £ viúva de um ladrão. Os filhos são filhos de um bandido. Na ocorrência policial está registrado: profissão: assal tante. Ora Geraldino é pedreiro e bom pedreiro. Posso mostrar as construções em que trabalhou. Era azulejista, um verdadeiro 34 artista. Porém, o que ganhava não lhe permitia dar de comer aos filhos. Ele era bom marido, mas as dívidas crescendo sempre, o dinheiro cada vez mais curto, começamos a descer uma perambeira sem fim, em que o próprio humor se azedava e despontavam acusações mútuas. Aparecida estranhava seu homem, agora carrancudo e rude, enturmado com cheia de má-bisca, encafuado nos botequins, procurando quem lhe pagasse uma pinga. Acreditava que a salvação era voltar para Quixadá, ir embora de uma vez, deixar aquele inferno. O corpo de Geraldino está vestido e vai ser entregue à viúva. A mulher se adianta, postando-se nas proximidades da sala de necrópsias, que permanece fechada. Aparecida está ansio sa, não sabe o que vai sentir quando deparar com Geraldino morto, a única pessoa no mundo em que confiava, com quem se sentia plenamente segura e em quem encontrava forças para levar essa vida cada vez mais atribulada e difícil. Pensa nos filhos. Acha que deve trazê-los para despedirem-se do pai. Afinal somos uma família. Não posso roubar-lhes o direito de ver pela última vez aquele que lhes deu a vida. Só porque era assaltante? Quantos pais de família estão virando assaltantes? Abre-se a porta da sala de autópsias, o funcionário de plantão chama Aparecida. — Aqui estão os pertences do morto. Isso é a certidão de óbito. O velório será feito na Capela do Instituto Médico-Legal. Os funcionários do Instituto conduzem o carrinho de metal, contendo a urna. Visto o marido, Aparecida vai se refazendo de sua angústia e de sua vergonha. No seu íntimo, ama Geraldino, aprova sua atitude e sibila entre os lábios, comovida, «estou contigo, amor, estou contigo»

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