segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Caetano X Sírio Possenti

"Sifu", de novo

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Parafraseando um narrador machadiano, aconselho ao leitor pudico que não leia a coluna de hoje. Vá a algum livro de pensamentos edificantes, que aqui ele vai encontrar palavras da pesada. O projeto é nobre (nobilíssimo, diria uma personagem também machadiana, que andou recentemente pela TV): trata-se da relação entre sons e letras, mas os dados não são do gosto de muitos.

Aviso dado, vamos aos fatos.

Estão discutindo a grafia de "sifu". Uma leitora me contou que Caetano e Sacconi disseram que não se deveria escrever "sifu", nem "sífu". Respondi-lhe, apressadamente, sem pensar muito, que, se ambos discordam dessa grafia, então ela deve estar correta. Reafirmo: de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada.

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Dei uma espiada na "Obra em progresso" (blog do Caetano) e está lá sua tese de que se deve escrever "sifo" e não "sifu". Seu argumento é que a segunda sílaba dessa palavra é a primeira do verbo "foder", cuja vogal, embora seja pronunciada "u" /fuder/, se escreve "o". Dá outros exemplos para sustentar sua tese. Critica as grafias "culhão", "buceta", "viado", que, acha, devem ser mesmo "colhão", "boceta", "veado" (se o leitor chegou até aqui, pode prosseguir).

Tudo bem, Caetano, mas leve seu raciocínio e sua análise até o fim. Pergunte-se de onde vem a primeira sílaba de "sifu". Verá que vem de "se fodeu". Ou seja, "se" pronuncia-se "si" (na maior parte do país), mas se escreve mesmo "se". Conclusão: argumento que vale para combater "fu" deveria valer para combater "si". Se Caetano levasse a "análise" (concedamos que seja uma) até o fim, se considerasse todos os fatos envolvidos e mantivesse o mesmo princípio (a origem da palavra), deveria propor que a grafia fosse "sefo". E não "sifo".

Sacconi propõe a mesma grafia, "sifo". Repito: por que "fo" em vez de "fu", e não "se" em vez de "si"? Discordam sobre a sílaba tônica: Sacconi acha que "sifo" é paroxítona. Aliás, um dos argumentos dele em defesa de "sifo" é que não há em português nenhuma palavra paroxítona terminada em "u". Já Caetano acha que é paroxítona. Diz que "sifu" é uma indecência oxítona que a imprensa consagrou.

Se a escrita fosse baseada na origem da palavra (sefo), a pronúncia não seria nem /sífu/ nem /sifú/ . Não haveria, não poderia haver duas vogais alçadas. Se o resultado da abreviação de "se fodeu" for "sefo", essa é a "palavra" à qual se aplicam as regras "fonéticas". Pode-se discutir qual das duas sílabas será átona. Somente ela terá sua vogal alçada: ou "e" vira /i/ ou "o" vira /u/. Mas uma das duas será tônica: e a pronúncia teria que ser ou /sêfu/ ou /sifô/. A vogal da sílaba tônica permaneceria inalterada.

Não estou considerando a pronúncia que não alçasse as vogais "e" e "o", porque algo assim não ocorre. Mas, se ocorresse, a pronúncia teria que ser /sêfo/ ou /sefô/. Se sua origem fosse mesmo respeitada.

Assim, ambos estão errados. Independentemente de ser oxítona ou paroxítona, do ponto de vista gramatical (em todos os sentidos), essa nova palavra "esquece" sua origem. Exceto pelo fato de que, ao lado de "sífu" também ocorre (não saberia dizer nada sobre sua freqüência) a forma "mífu". Ao que os humoristas podem acrescentar "nosfu", escrito assim, ou escrito "nusfu"...

A "palavra" tem relações sociolingüísticas - e outras - com "se fodeu", mas sua certidão de "palavra" não precisa registrar essa ascendência, especialmente a escrita. Nasceu "sifu" (acho que no Pasquim) e será "sifu" para sempre. A única questão pendente é a variação de sílaba tônica. Em conseqüência, de sua grafia: sífu ou sifu.

Eu disse "questão". Não disse "problema". Porque variação não é problema.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.

Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br

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