Alice
[Graças ao meu editor Fernando Gonzaga, descobri que esse conto meu dialoga com o conto Temporal Semáforo, da escritora hoje radicada no Canadá Rita Espechit.]
“Era capaz de arrancar da mente toda esperança humana/ Contra toda alegria, para sufocá-la, construí a primavera esquálida de uma besta selvagem”.
Arthur Rimbaud
Alice chega do trabalho cansada. Fecha a porta do apartamento de três quartos e um banheiro. O gato persa vem roçar-lhe os pés.
Ele se chama Roni e tem grandes olhos negros. Seu corpo é recoberto de pelos longos, de cor cinza carregado.
Alice está só, senta-se no sofá com Roni nos braços magros. Começa a acariciá-lo, frenética. De súbito se ergue, deixando o gato estirado no sofá. Ela vai até a janela.
O casal do apartamento vizinho faz amor. Alice sempre gosta de chegar do serviço e assistir.
Quando acabam, os dois amantes apagam a luz do quarto. Alice volta ao sofá e aos carinhos de Roni. Nesta hora Alice costuma recordar-se de seu amor fracassado, Seleiman Abdallah, um sírio-libanês naturalizado brasileiro. Alice lembra-se das noites em que Seleiman apalpava seus seios brancos e macios com fúria animal. Agora resta a dor da solidão absoluta. Seleiman tinha apenas vinte e dois anos, Alice já passara dos trinta...Ele acabou por abandoná-la subitamente, sem remorsos ou explicações, desaparecendo sem deixar vestígios. (Exceto algumas lembranças na mente de Alice, claro.)
A moça liga a tevê, assiste várias novelas, telejornais, programas de auditório...nada a deixa satisfeita, parece impossível. Ela corre ao quarto, apanha uma caixinha branca e vermelha. Retira de seu interior dois comprimidos róseos. Vai à cozinha e observa o branco dos azulejos, bebe um copo d’água para empurrar os sedativos goela abaixo. Agora vai ficar satisfeita, enquanto durar o efeito do anti-depressivo. Dez da noite desliga a tevê, vai tentar dormir na grande cama que enche um dos quartos. Enrolada em lençóis, olhando para a brancura da parede, Alice está inquieta. Olha o relógio: onze e quinze, onze e vinte, onze e meia, onze e quarenta; Alice não dorme.
Então corre até o banheiro e enche a boca de cápsulas brancas. Engole tudo olhando para o rosto pálido e ossudo no espelho. Agora sabe que dormirá.
Brota-lhe um sonho. Ela odeia sonhos, acredita que surgem por efeito das drogas. Naquela noite surge um mar de àguas sombrias. Parece um oceano de chumbo líquido. Acima um amarelo céu, das nuvens descem raios azulados e outros verdes. Paisagem suave, mas inquietante talvez devido ao sol, enorme esfera avermelhada que desliza entre nuvens como chumaços de algodão e derrama nelas o seu rubor. O sonho desaparece subitamente.
Na manhã seguinte, Alice acorda com os olhos embaçados e forte dor de cabeça. Sai correndo, ela tem que chegar rápido ao banco. Quando eufórica devido a um bom remedinho, compra mais para tomar depois pois a depressão não tardará. Roni observa tudo, deitado sobre uma almofada de veludo, com saudade, quem sabe, da Pérsia de onde vieram seus ancestrais ou do Egito, onde os gatos eram animais sagrados: se alguém matasse um a pena era a morte...
“Como está ela, doutor?”
“Em coma profundo.”
“E o prognóstico?”
“Coma profundo. Por tempo indeterminado. Não temos expectativas...Abusou dos remédios e não foi possível fazer a lavagem estomacal a tempo...A vizinha ouviu seu grito, mas demorou a entrar no apartamento. Lamento, lamento muito.”
Eu via Alice morrer aos poucos. Ela murchava como uma flor exposta ao sol do meio-dia. Seu olhar ausente, mente exilada, mãos magras e pele viscosa formavam um quadro deveras desagradável. Soube então que eu era a única pessoa que a visitara no hospital:
“Você é namorado dela?”
“Não...”
“Você conhece alguém da família dela, ou os colegas de trabalho?”
“Infelizmente não sei dizer nada.”
“E de onde você a conhecia?”
“Não me lembro, me desculpe.”
Somente com muito esforço me lembrei: eu a conhecia da farmácia onde eu trabalhava como uma criança gerenciando uma fábrica de chocolate. Comprávamos juntos amplos estoques e injetávamos aquela estranha química em nossos corpos. Um dia saímos e, enquanto comíamos batatas fritas, Alice me contou sua primeira tentativa de suicídio, com um revólver, na adolescência. “Agora sei que basta um tiro no céu da boca...”
Ela dizia isso com um ar displicente. Eu contei que já estivera internado numa clínica psiquiátrica devido a uns comprimidinhos. Ela me olhou como se eu fosse uma reencarnação de Buda. Pareceu-lhe uma iluminação, um caminho a ser seguido. Deu-me uma cópia da chave de seu apartamento. Almocei lá num domingo, degustando frango xadrez e rolinhos à primavera enquanto ouvia revelações: “Não tenho ninguém por mim neste mundo.” Então tive de sorrir: “Eu tenho e queria que todos morressem”. Continuamos comendo em silêncio.
Quando eu soube que o fim chegara para Alice, semanas depois, com um telefonema do hospital, fui direto ao apartamento onde ela vivera -- logo depois do expediente na farmácia. Roni aproximou-se, miando. Enquanto observava os espinhos e as flores vermelho-hemoglobina do jardim do apartamento que agora ficara aos meus cuidados, eu ia recordando meu poema em homenagem à Alice, que se chamava Um Abismo Cinzento:
Ela viu sol onde sombra havia
Onde havia o mar, viu desertos
Está agora vagando...Caindo num poço sem fundo...
Afogando-se em dor coagulada,
Ela que viu fogo onde gelo havia.
Ela viu o mar de chumbo líquido
Eu sei que existe, também já vi
& em suas ondas azul-metálicas
Viu a espuma-renda suave a bordar de branco
Uma face de um abismo cinzento.
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