sábado, 15 de agosto de 2015

Socialismo e Democracia em Cuba III

Socialismo e democracia em Cuba III

 Pátria o muerte!

No filme A chinesa, de Godard, há uma citação de Mao: “A revolução não é um banquete, não é uma obra, de arte. Ela não pode ser feita com elegância, tranqüilidade, delicadeza, amabilidade, cortesia, discrição e generosidade. A revolução é uma insurreição violenta na qual uma classe derruba a outra.”
Frases como esta costumam ser usadas para justificar os excessos cometidos em nome da revolução.  Mesmo assim, ela é verdadeira, se aplicada ao seu período inicial. É o que Marx chamava de solução plebéia. A guilhotina e o “paredón” são inevitáveis, até mesmo necessários.
Uma das peculiaridades da revolução cubana é que ela foi relativamente incruenta. Não houve uma guerra civil, não houve destruição de fábricas ou lavouras, as baixas em batalha foram poucas e praticamente toda a população apoiou os rebeldes. Quando o regime de Batista se desmantelou, o seu exército se rendia aos rebeldes mais rapidamente do que eles podiam avançar. Entretanto, houve uma repressão muito forte nas cidades, onde a resistência clandestina teve inúmeros mortos e a tortura e o assassinato eram práticas corriqueiras. Este quadro justifica o paredón, embora não explique porque o novo poder demorou quase 18 anos para dar uma nova Constituição ao país.
Fidel era a liderança incontestável da revolução, graças à visibilidade que havia adquirido com o assalto ao Quartel de Moncada e às transmissões da Rádio Rebelde. Cuba era um país relativamente próspero, com grandes desigualdades sociais e uma tradição de governantes corruptos.  No início, houve uma dualidade de poderes. Os revolucionários haviam assumido o compromisso de conservarem a Constituição de 1940 e de colocarem Urrutia, um juiz com mentalidade legalista,  à frente de um governo provisório que realizaria eleições gerais tão logo fosse possível.
O afastamento de Urrutia foi inevitável, já que o aprofundamento da revolução exigia uma série de medidas antiimperialistas e de combate às desigualdades sociais que não cabiam dentro da legalidade vigente. Inaugurou-se então o poder revolucionário.             
Os primeiros anos da revolução são anos de um voluntarismo e de um romantismo revolucionários exacerbados. Estes acabaram levando a revolução a uma radicalização desnecessária e a um estreitamento de sua base social.
Como mostramos em outro local, dentro do próprio campo das forças revolucionárias, havia uma luta pelo poder, que terminou com o predomínio dos “barbudos” e a entrega da máquina do estado ao PCC, em torno do qual se unificaram os rebeldes. Sindicatos e associações estudantis, que haviam jogado um grande peso na luta contra Batista, foram submetidos ao novo poder, que passou por cima destas instâncias.
Em 1961, logo após o episódio da Baía dos Porcos, Fidel declarou que o conteúdo da Revolução era socialista.  Segundo ele: “a revolução não tem tempo para eleições” e “não há governo mais democrático na América Latina que o governo revolucionário”.
Em relação a alguns segmentos sociais que haviam apoiado a revolução, houve um confronto desnecessário. Dos 3.000 médicos que havia em Cuba, apenas uns 1.000 permaneceram. O ensino privado e religioso foi abolido e a educação passou totalmente ao estado. No final da década de 60, as pequenas fábricas e prestadores de serviço foram nacionalizados.
O novo poder se lançou numa cruzada destinada a criação do homem novo cubano. Isto resultou numa política sectária em relação aos intelectuais, além da repressão sistemática aos homossexuais, hippies, crentes, prostitutas e toda uma série de elementos rotulados de parasitas, contra-revolucionários e anti-sociais.
A reforma agrária cubana merece um capítulo a parte. Com a existência da monocultura totalmente voltada para o mercado externo, predominava no campo o trabalho assalariado e temporário. Houve uma nacionalização das grandes propriedades, muitas das quais em mãos de americanos, com a formação de grandes cooperativas, onde os camponeses passaram a ser empregados do Estado. A pequena propriedade continuou existindo, embora toda a sua produção fosse destinada ao governo.
Logo no início dos anos sessenta, o aumento da renda e do consumo, além da ineficiência administrativa dos novos dirigentes, causaram a falta de alimentos e de vários produtos básicos, o que levou ao racionamento. Cuba optou pela adoção da libreta e a proibição do mercado livre dos gêneros racionados.
O próprio Fidel, em 1970, numa autocrítica, reconheceu que o fator subjetivo, a consciência de classe, estava muito atrasada em Cuba quando da derrubada de Batista. Isto não impediu que os revolucionários se lançassem a uma batalha completamente acima de suas forças. O novo poder tinha que ser, ao mesmo tempo, o executivo e o legislativo. A máquina de estado anterior era inútil para dirigir a nova economia. Os revolucionários precisavam administrar as fábricas nacionalizadas, mesmo sem a formação necessária.  Ao mesmo tempo, deviam enfrentar o inimigo externo, que promovia invasões e sabotagens. Internamente, num episódio pouco conhecido, teve que derrotar os rebelados da província de Escambray, que empreenderam uma guerra de guerrilhas de 60 a 66.
Franqui atribui o levante em Escambray a uma série de tropelias cometidas por Félix Torres, um membro do PCC que assumiu o governo da província. Ele prendeu e fuzilou arbitrariamente, tomou terras dos camponeses, ressuscitou o sistema de pagamento por trabalho, odiado pelos trabalhadores rurais, e, por fim, formou um harém de garotas camponesas.
Com tantos problemas, não é de se estranhar que a revolução não tivesse tempo para eleições. Isto não quer dizer que o poder não procurasse se legitimar de alguma maneira. Fidel é uma liderança carismática e, ao contrário de outros dirigentes socialistas, mantinha um contato permanente com as massas. As principais medidas do governo eram submetidas à aclamação, em grandes comícios na Praça da Revolução.
Paralelamente, havia duas instituições, as milícias e os Comitês de Defesa da Revolução, em que a população tinha voz ativa nas deliberações. Os CDR, criados em 1960 para enfrentar os inimigos internos e externos hoje abrangem 80% da população acima de 14 anos. Entretanto, a iniciativa não estava com as massas. Cabia a elas um papel passivo, de defesa das conquistas, cabendo ao governo propor os avanços a serem efetuados.
Na maioria da população, não havia uma reivindicação pela volta das eleições e de outras instituições representativas do antigo regime. A explicação está nos avanços sociais da revolução, que no primeiro momento realizou a palavra de ordem de Fidel: uma revolução dos pobres para os pobres. O poder revolucionário tinha legitimidade. Por outro lado, ainda era viva a lembrança dos vícios dos governos anteriores e de seus políticos tradicionais.
 Marta Harnecker traz este depoimento de um cubano sobre as primeiras eleições em Cuba, após a tomada do poder:

“Na época da República não era a vontade do povo que primava. Havia toda uma série de subterfúgios para fazer triunfar a vontade da minoria. Agora tudo se modificou radicalmente.
No passado, o cidadão via-se obrigado a votar por um homem que tinha convertido a função política numa profissão e que utilizava agências e aparelhos organizados por ele próprio para figurarem sempre nos boletins eleitorais.
E você sabe por que razão o voto era obrigatório? Porque sabiam que se não o faziam obrigatório ninguém votava. Não acha absurdo que quando uma pessoa tem um direito seja obrigada a exercê-lo?
E agora nas eleições do Poder Popular, sem propaganda, sem encher de pasquins os estabelecimentos, a porcentagem de votantes foi muito elevada, o que diz muito da consciência dos cidadãos.”
Antes da institucionalização do poder, com a adoção de uma Constituição e de eleições para a Assembléia Nacional, a adesão da população era mantida à base do apelo ideológico. Eram os tempos do “Patria o muerte!” A máquina estatal não estava azeitava e adotou-se uma planificação econômica arbitrária. Nas fábricas, o ganho material foi rejeitado como fator de incentivo à produção. Os dirigentes do PCC acumulavam as tarefas políticas com a administração. Os trabalhadores de vanguarda eram o modelo a ser seguido e sobre eles recaía a tarefa de conseguir as metas propostas. O descrédito com a adoção de metas irrealistas e a ineficiência dos gerentes, acabou por inibir a iniciativa dos trabalhadores e por aumentar o absenteísmo.
Marta Harnecker dá o exemplo de uma fábrica onde havia 640 trabalhadores, sendo 19 militantes e 140 trabalhadores de vanguarda. Estes recebiam como prêmio um diploma mensal (para os três mais destacados em cada oficina), além de planos de férias especiais, entradas para o teatro, além de prioridade para compraram os produtos racionados.
O apelo ideológico se traduzia em um vocabulário próprio. Quando um discurso pedindo o cumprimento de uma meta terminava com o slogan “Patria o muerte!”, isto significava que a tarefa era essencial à revolução e quem não a cumprisse seria considerado contra-revolucionário. Os contra-revolucionários eram “afetados” por todo tipo de influência nociva e o resultado da crítica e autocrítica públicas era a necessidade do criticado se “superar”.
A sovietização do cotidiano cubano foi muito além da importação dos udarniki (os trabalhadores de vanguarda). Foram criados os pioneiros, a juventude comunista, à maneira do komsomol, e a UNEAC, o equivalente cubano da União dos Escritores Soviéticos. Os CDR acabaram reproduzindo o modelo soviético de habitação coletiva, onde todos controlavam a vida de todos.   O fato de serem organizados por quarteirão facilitava este controle fino. Eu recomendo o romance Os filhos da Rua Arbat e o filme Morango e Chocolate, para ajudar a clarear o que seria este processo
Esta sovietização consolidou o caminho para um estado policial, nos moldes dos países socialistas. Uma pequena cronologia ajudará a traçar esta evolução:         
1959 – tomada do poder.
1961 – invasão da baía dos porcos e decretação do caráter socialistas da revolução. Fundação do Ministério do Interior, que abriga os órgãos de segurança do Estado.
1962 – crise dos mísseis. Fidel se ressente do papel de Krushev e Cuba se afasta ideologicamente dos soviéticos
1965 – É criado o CC do PCC.
1966 – É criada a OLAS, Organização Latino Americana de Solidariedade, que lança a palavra de ordem “criar um, dois, três Vietnãs”.
1967 – Morte do Che na Bolivia
1968 – Cuba apóia a Invasão da Tchecoeslováquia pelas tropas do pacto de Varsóvia.
1970 – Fracasso da safra de 10 milhões de toneladas de açúcar. Autocrítica de Fidel.
1971 – Prisão de Padilha e afastamento de vários intelectuais da revolução cubana.
1974 – Eleições experimentais em Matanzas
1975 – Primeiro Congresso do recriado PCC.
1976 – Aprovada a Constituição Cubana. Eleição da primeira Assembléia.
Para quem quiser conhecer em detalhes os mecanismos formais do  poder popular, recomendo este site:http://www.josemarti.com.br/man/Artigo_eleicoes_em_Cuba.pdf
O modelo cubano traz características interessantes: os candidatos não necessitam estar filiados ao PCC (não existe formalmente outro partido em Cuba). São indicados pelos próprios eleitores e podem ter o seu mandato revogado a qualquer momento. Em tese, seriam formas avançadas de democracia direta. Na prática, os candidatos não precisam nem morar na província pela qual serão eleitos e são indicados pelo PCC. As decisões de fato são tomadas por um pequeno círculo que as apresenta ao Bureau Político e depois ao CC do PCC para serem referendadas e adotadas pela Assembléia Nacional.
Resumindo: a Revolução Cubana despertou um enorme potencial revolucionário que foi malbaratado. Primeiro com a exclusão de organizações que haviam desempenhado um papel importante na revolução e com a criação artificial de um partido único, de cima para baixo. Depois com um processo voluntarista de radicalização, que tratou como inimigos importantes setores de classe e indivíduos. Mais tarde, com métodos de direção ineficientes e burocráticos, movidos a apelos ideológicos vazios. Quando finalmente se institucionalizou um poder popular, 18 anos após a queda de Batista, as massas já haviam perdido o seu ímpeto revolucionário.
As formas de democracia direta, que existem no modelo atual, não têm o menor conteúdo revolucionário. E, contraditoriamente, propostas mais avançadas de reforma do regime incluiriam a volta de antigas formas de democracia burguesa, como a liberdade partidária. Embora o regime esteja em plena marcha ré na economia, o apego de um pequeno círculo ao poder continua freando a reforma política. O que pode levar à perda definitiva da coesão social, já que a nova classe média que surge é muito permeável a influência das democracias ocidentais e as classes mais desfavorecidas correm o risco de perderem as conquistas sociais da revolução.

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