Prefácio
Prefácio 03.10.09
Houve um tempo em que a atividade política era movida à paixão. Uma parte dessa geração foi destruída, uns tantos sobreviveram e outros tantos se consideram vitoriosos, porque conseguiram abocanhar um pedacinho do poder. Esse livro é o registro de um dos capítulos mais significativos dessa época. Ele conta a história dos derrotados.
Houve um tempo em que a atividade política era movida à paixão. Uma parte dessa geração foi destruída, uns tantos sobreviveram e outros tantos se consideram vitoriosos, porque conseguiram abocanhar um pedacinho do poder. Esse livro é o registro de um dos capítulos mais significativos dessa época. Ele conta a história dos derrotados.
O xadrez foi uma das minhas primeiras paixões de adolescente. Para quem não é aficionado, é difícil entender a emoção envolvida em uma simples partida. Para os jogadores, é uma luta sangrenta entre duas vontades, entre dois projetos estratégicos. A expressão “o xadrez político”, para mim, sempre teve um colorido especial. Mais tarde, eu iria unir essas duas paixões.
A política, assim como o xadrez, é uma arte. Encontrar o fio condutor, a linha correta, no meio de uma série de fatores que se entrelaçam e se influenciam mutuamente é o desafio comum às duas atividades. Outro ponto em comum é que a liberdade criadora está limitada por uma série fatores objetivos. No caso do xadrez: o tabuleiro, as peças, as regras que determinam seus movimentos e a própria história anterior, que levou a cada posição em particular. Esse é o lado científico do jogo.
Quando eu freqüentava o Clube de Xadrez de Belo Horizonte, costumava assistir as análises post-mortem, que eram feitas assim que uma partida terminava. Os dois jogadores, com a ajuda de um bando de sapos, analisavam jogada por jogada, procurando estabelecer um veredicto final: a vitória foi justa ou não? Quais eram as alternativas do perdedor?
O que se pretende com esse livro é uma análise post-mortem da Guerrilha do Araguaia. A luta contra os guerrilheiros, episódio obscuro de nossa história recente, durou três anos e envolveu dezenas de milhares de soldados. Para apoiar essas operações, quartéis e estradas foram construídos no meio da selva amazônica. Tudo isso sem que a imensa maioria do povo brasileiro soubesse que, numa região conhecida como o Bico do Papagaio, 70 militantes do Partido Comunista do Brasil, o PC do B, pretendiam criar um novo Vietnã.
Esse livro foi escrito em co-autoria com o meu antigo companheiro de cela no Dops de Belo Horizonte, Elio Ramirez Garcia. A par do rigor científico, da preocupação com a verdade factual, pretendemos enriquecer essa análise expondo os desejos, as expectativas e os pensamentos de um dos lados envolvidos no conflito. Militando no PC do B à época da guerrilha, tivemos a oportunidade de conhecer em primeira mão a história desse partido, de conviver de perto com militantes e dirigentes que estiveram no Araguaia e de vivenciar a cultura dessa organização, se é que podemos usar esse termo.
Inicialmente, pretendemos mostrar que o Araguaia foi a conseqüência lógica da trajetória anterior do PC do B, o coroamento de uma visão estratégica. Entre o final da década de 60 e meados da década de 70, época que abrange a preparação e o desencadeamento da guerrilha, parecia que a revolução poderia derrotar o imperialismo. É a época da libertação das colônias africanas e da derrota americana no Vietnã. No horizonte da crise do petróleo e da estagflação da década de 70, se vislumbrava um colapso do sistema capitalista. Poucos poderiam prever a guinada da China e nada indicava o desmoronamento total do regime soviético e das democracias populares, tal como se deu.
No plano nacional, o PC do B previa que o recrudescimento do fascismo acabaria por isolar o governo, revigorando o movimento de massas. Apostava que o fracasso das políticas de conciliação e a justeza de sua linha ajudariam a transformá-lo num partido forte e numeroso.
No Araguaia, o regime se viu obrigado a mobilizar grandes contingentes militares e a manter completamente isolada uma vasta região. Ele procedeu como se estivesse em território inimigo - conduziu as operações militares sem se preocupar em ganhar corações e mentes, sem poupar nem mesmo a própria Igreja da região. O fim da guerrilha coincide com o fim da ilusão de ganhar a simpatia da classe média e dos formadores de opinião. A retirada estratégica de Golbery entra na ordem do dia.
Ambos seguiam uma lógica interna, respondiam, cada qual a sua maneira, às exigências da situação política nacional e internacional. Embora o resultado seja conhecido, não seria prudente dizer que ele era inevitável, ou mesmo que o seu desfecho era completamente previsível, sem um exame mais detalhado do conflito.
Em nossa análise, respeitaremos as mesmas limitações que um jogador de xadrez observa: não faremos jogadas impossíveis. No nosso caso, não dotaremos os personagens históricos de uma onisciência que eles não poderiam ter.
Uma das nossas dificuldades iniciais foi a de entender a natureza da região. Quais eram as suas características físicas, como viviam os seus habitantes, por que ela foi escolhida pelo partido? Abusando de nossa analogia, queríamos saber como era o tabuleiro. Outra dificuldade, por incrível que possa parecer, já que éramos militantes nesse período, foi a de avaliar a força do PC do B. Quais eram as peças? Segundo os seus dirigentes, era um partido ainda pequeno. Ficamos surpresos ao constatar o que era exatamente um partido pequeno, face à grandeza das tarefas as quais ele se propôs.
Finalmente, procuramos reconstituir lance por lance a partida, a verdade factual. Ao exército, não convém expor os métodos que usou para derrotar a guerrilha. Ao partido, por sua vez, razões internas e de propaganda impedem uma avaliação mais serena. Uma simples reconstrução dos três destacamentos, com todos os seus componentes, exigiu a consulta a várias fontes, muitas vezes divergentes. O relatório Arroyo, nossa fonte primária mais importante, é impreciso em relação a vários fatos e datas. Foi uma tarefa similar à de reconstituir uma partida mal anotada, recorrendo, muito tempo depois, às lembranças dos espectadores.
É preciso considerar que o Araguaia é muito pouco conhecido. Em 1972, fazia mais de 35 anos que a Insurreição de 1935 ocorrera. Hoje, estamos a essa mesma distância do Araguaia. Entretanto, a bibliografia disponível sobre a guerrilha e o próprio espaço que ela ocupa na cabeça dos cidadãos comuns são menores do que os relativos à insurreição.
A análise feita até agora pelo principal protagonista, o PC do B, é precária. A discussão interna foi abortada e o que se tem como posição oficial são documentos de 1976. Os participantes do drama, guerrilheiros sobreviventes e militantes do PC do B da época, se dispersaram pelas mais variadas posições políticas. Nós diríamos até que o PC do B de hoje é muito distinto do partido que fez a guerrilha.
Por último, gostaríamos de ressaltar que a guerrilha do Araguaia, foi, antes de tudo, um confronto militar. E os confrontos militares são decididos pelas armas. O nosso veredicto final deve ser algo do tipo: a guerrilha poderia ter sobrevivido? A posição oficial do PC do B é que sim, se não houvessem acontecido erros militares graves. Nós pretendemos fazer uma análise da concepção que norteou o Araguaia, dos condicionantes que levaram a essa concepção, das alternativas que se ofereciam e, finalmente, voltar à posição inicial, àquele dia 12 de abril de 1972, e responder: o que poderia ter sido feito para levar a um outro desfecho?
Fonte: blog El Senor Gato
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