quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A Patrulha Ideológica Número 1

Xica da Silva e a Patrulha Ideológica Número 1
Lúcio Jr

           
                A escravidão em Minas Gerais criou uma figura até hoje misteriosa e emblemática: Xica da Silva. Amante de um comendador português, essa mulher negra foi uma personagem influente em Diamantina em seu tempo. Tornou-se tema de um filme de Cacá Diegues e de uma canção de Jorge Ben que marcaram época. E gerou, via Cacá, uma expressão até hoje corrente: a patrulha ideológica. Foi o termo que Cacá Diegues criou para revidar a crítica recebida no jornal Movimento.
A escravidão nessa província foi atípica em relação a outras regiões do país e mesmo em relação à própria região durante o século XVIII. Então, na capitania foram registrados cerca de cento e oitenta quilombos. No século seguinte, tal agitação diminuiu e, embora sendo a província com maior número de escravos, Minas não foi a maior em movimentos conhecidos. Teve apenas um levante um pouco maior em 1833. Passou, então, de foco de rebeldia negra para um estado conformado. Como compreender essa metamorfose?
            A crítica entrou em choque com a concepção de Cacá Diegues através de artigos publicados na imprensa, em especial um artigo de Wolfgang Leo Maar no jornal O Movimento. O artigo é uma crítica ao filme chamada Novo Samba Enredo de Chica da Silva, mas que vai além:

Muitas vezes retomamos a velha prática inquisitorial de desenterrar os mortos para voltar a matá-los na fogueira .Nos referimos a Cacá Diegues, que não perdoou Xica da Silva. Tirou-a dos enterros faustosos dos desfiles de escolas de samba para arquibancadas de turistas estrangeiros, e voltou a matá-la numa rica superprodução, igualando a Xica às damas parvenues das cortes européias, e vendo ainda a nossa história colonial com os olhos liberais do século XIX.
A Xica da Silva de Cacá Diegues é uma escrava que conseguiu pela astúcia escapar à sua condição, participando do mando e da riqueza dos homens livres. Branqueia-se na medida em que não contesta a escravidão, apenas mostra-se condescendente para com alguns escravos, mas mantém-se tão insensível quanto qualquer outro branco diante do açoite de negros. E, com a volta de João Fernandes para Portugal, refugia-se num reduto de futuros libertadores. Xica da Silva pôde seguir esse roteiro, utilizando-se justamente daquilo que era negado aos negros pela escravidão: a astúcia, o sexo, o gosto pela vida. A violência da escravidão não estava na exceção, ou seja, quando ocorriam os castigos ou pelo azar do escravo em cair nas mãos de um mau senhor, mas no próprio cotidiano, no dia-a-dia, a cada minuto em que se vivia a condição de um escravo. Pelos seus próprios mecanismos ela era embrutecedora, tolhia as iniciativas e a criatividade, vigiava a cada passo o escravo, deixando a ele apenas a ladinagem. Entretanto, esta não era tolerada, pois significava a fuga ao trabalho, às tarefas, à rotina, implicando em perdas para o senhor.
            Desse modo a astúcia demonstrada por Xica em manobrar seu antigo senhor, João Fernandes e, depois, o próprio conde, de modo a praticamente inverter as relações entre senhor e escravo, parece não pertencer ao quadro geral da escravidão. Se ocorresse algo parecido com o filme, quer dizer, uma ex-escrava que se movia facilmente tanto entre seus antigos senhores, por exemplo, quando obriga uma outra escrava a limpar os seus vestidos, como entre os escravos, mostrando-se como uma benfeitora deles, veríamos a possibilidade de ter havido uma escravidão mais branda, cabendo uma maior dose de humanidade na instituição, traduzindo-se em termos de uma sociedade mais móvel e flexível.
Esse mesmo culto da inteligência fora do lugar aparece também quando Diegues opõe à atitude puramente repressiva do intendente, a solução dada por João Fernandes no combate aos contrabandistas, deixando-os participarem da exploração dos diamantes, já que estavam melhor preparados para achá-los. Se assim fosse, quer dizer, se o sistema de colonização não tivesse implicado numa sociedade rigidamente estratificada, ambos teriam se perpetuado, para glória dos senhores e do colonizador. Desse modo, a visão política de Cacá Diegues é bastante parecida com a de José Bonifácio (o velho patriarca): procurar fazer o colonizador compreender as pequenas razões e exigências do colonizado, pois este compreende o poder e os direitos dos senhores.
Também a sexualidade atribuída a Xica é apresentada de uma perspectiva essencialmente colonialista. Até o conservador Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”, procurou mostrar como era falsa a visão que tinham os brancos da sexualidade do negro. Enquanto estes dependiam de uma série de práticas rituais introdutórias, como a dança, para a realização do ato sexual, eram os brancos que estavam sempre disponíveis ou que induziam, ou melhor, obrigavam, as escravas a disporem-se a qualquer momento e sob qualquer forma já que as viam como objeto e não como pessoa. Se o sexo entre negros tinha uma maior naturalidade, não era desprovido de regras comportamentais como ideologicamente quis se mostrar. Mas o que ficou oculto é de como aos brancos o contato com as escravas revestia-se de um gosto sádico, uma vez que se viam libertos dos freios do cristianismo e dos pruridos a que eram obrigados com suas mulheres, claro que quando não existia o consenso.
Descobre-se aqui o centro da idealização pretensamente tropicalista de Diegues: de que se os negros ocupassem a fortuna e a liberdade dos brancos a vida teria tido muito mais colorido e intensidade, já que não haveria os preconceitos nem a resistência à incorporação da rica cultura negra africana à vida cotidiana. Entretanto, sabemos muito bem que não bastava inverter-se simplesmente os homens no poder para tornar o gosto pela vida mais intenso. Basta vermos a experiência do império negro criado no Haiti, admiravelmente retratado no livro “Reino deste Mundo”, de Carpentier. Aqui a opressão não é de cor, de cultura ou nacionalidade, mas de sistemas. A reconstrução histórica do filme é informada por uma visão do liberalismo brasileiro do século XIX, quando se pretendia formar uma nacionalidade sobre o repúdio ao colonialismo português, e, sem pôr fim ao trabalho escravo, reformar a escravidão. Desse modo, a tensão da sociedade colonial é unilateralmente apresentada, apoiando-se no conflito de interesses entre portugueses e colonos sem que se deixe perceber a tensão entre senhores e escravos (MAAR, apud: VANOYE, 1998, p. 116).

Bibliografia:

VANOYE, Francis. Usos da Linguagem. Problemas e técnicas na produção oral e escrita. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


Nenhum comentário: