Xica
da Silva e a Patrulha Ideológica Número 1
Lúcio
Jr
A escravidão em Minas Gerais
criou uma figura até hoje misteriosa e emblemática: Xica da Silva. Amante de um
comendador português, essa mulher negra foi uma personagem influente em
Diamantina em seu tempo. Tornou-se tema de um filme de Cacá Diegues e de uma
canção de Jorge Ben que marcaram época. E gerou, via Cacá, uma expressão até
hoje corrente: a patrulha ideológica. Foi o termo que Cacá Diegues criou para
revidar a crítica recebida no jornal Movimento.
A
escravidão nessa província foi atípica em relação a outras regiões do país e
mesmo em relação à própria região durante o século XVIII. Então, na capitania
foram registrados cerca de cento e oitenta quilombos. No século seguinte, tal
agitação diminuiu e, embora sendo a província com maior número de escravos,
Minas não foi a maior em movimentos conhecidos. Teve apenas um levante um pouco
maior em 1833. Passou, então, de foco de rebeldia negra para um estado
conformado. Como compreender essa metamorfose?
A
crítica entrou em choque com a concepção de Cacá Diegues através de artigos publicados
na imprensa, em especial um artigo de Wolfgang Leo Maar no jornal O Movimento.
O artigo é uma crítica ao filme chamada Novo Samba Enredo de Chica da Silva,
mas que vai além:
Muitas vezes retomamos a velha prática
inquisitorial de desenterrar os mortos para voltar a matá-los na fogueira .Nos
referimos a Cacá Diegues, que não perdoou Xica da Silva. Tirou-a dos enterros
faustosos dos desfiles de escolas de samba para arquibancadas de turistas
estrangeiros, e voltou a matá-la numa rica superprodução, igualando a Xica às
damas parvenues das cortes européias, e vendo ainda a nossa história colonial
com os olhos liberais do século XIX.
A Xica da Silva de Cacá Diegues é uma
escrava que conseguiu pela astúcia escapar à sua condição, participando do
mando e da riqueza dos homens livres. Branqueia-se na medida em que não
contesta a escravidão, apenas mostra-se condescendente para com alguns
escravos, mas mantém-se tão insensível quanto qualquer outro branco diante do
açoite de negros. E, com a volta de João Fernandes para Portugal, refugia-se
num reduto de futuros libertadores. Xica da Silva pôde seguir esse roteiro,
utilizando-se justamente daquilo que era negado aos negros pela escravidão: a
astúcia, o sexo, o gosto pela vida. A violência da escravidão não estava na
exceção, ou seja, quando ocorriam os castigos ou pelo azar do escravo em cair
nas mãos de um mau senhor, mas no próprio cotidiano, no dia-a-dia, a cada
minuto em que se vivia a condição de um escravo. Pelos seus próprios mecanismos
ela era embrutecedora, tolhia as iniciativas e a criatividade, vigiava a cada
passo o escravo, deixando a ele apenas a ladinagem. Entretanto, esta não era
tolerada, pois significava a fuga ao trabalho, às tarefas, à rotina, implicando
em perdas para o senhor.
Desse
modo a astúcia demonstrada por Xica em manobrar seu antigo senhor, João
Fernandes e, depois, o próprio conde, de modo a praticamente inverter as
relações entre senhor e escravo, parece não pertencer ao quadro geral da
escravidão. Se ocorresse algo parecido com o filme, quer dizer, uma ex-escrava
que se movia facilmente tanto entre seus antigos senhores, por exemplo, quando
obriga uma outra escrava a limpar os seus vestidos, como entre os escravos,
mostrando-se como uma benfeitora deles, veríamos a possibilidade de ter havido
uma escravidão mais branda, cabendo uma maior dose de humanidade na
instituição, traduzindo-se em termos de uma sociedade mais móvel e flexível.
Esse mesmo culto da inteligência fora
do lugar aparece também quando Diegues opõe à atitude puramente repressiva do
intendente, a solução dada por João Fernandes no combate aos contrabandistas,
deixando-os participarem da exploração dos diamantes, já que estavam melhor
preparados para achá-los. Se assim fosse, quer dizer, se o sistema de
colonização não tivesse implicado numa sociedade rigidamente estratificada,
ambos teriam se perpetuado, para glória dos senhores e do colonizador. Desse
modo, a visão política de Cacá Diegues é bastante parecida com a de José
Bonifácio (o velho patriarca): procurar fazer o colonizador compreender as
pequenas razões e exigências do colonizado, pois este compreende o poder e os
direitos dos senhores.
Também a sexualidade atribuída a Xica
é apresentada de uma perspectiva essencialmente colonialista. Até o conservador
Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”, procurou mostrar como era falsa a
visão que tinham os brancos da sexualidade do negro. Enquanto estes dependiam
de uma série de práticas rituais introdutórias, como a dança, para a realização
do ato sexual, eram os brancos que estavam sempre disponíveis ou que induziam,
ou melhor, obrigavam, as escravas a disporem-se a qualquer momento e sob qualquer
forma já que as viam como objeto e não como pessoa. Se o sexo entre negros
tinha uma maior naturalidade, não era desprovido de regras comportamentais como
ideologicamente quis se mostrar. Mas o que ficou oculto é de como aos brancos o
contato com as escravas revestia-se de um gosto sádico, uma vez que se viam
libertos dos freios do cristianismo e dos pruridos a que eram obrigados com
suas mulheres, claro que quando não existia o consenso.
Descobre-se aqui o centro da
idealização pretensamente tropicalista de Diegues: de que se os negros
ocupassem a fortuna e a liberdade dos brancos a vida teria tido muito mais
colorido e intensidade, já que não haveria os preconceitos nem a resistência à
incorporação da rica cultura negra africana à vida cotidiana. Entretanto,
sabemos muito bem que não bastava inverter-se simplesmente os homens no poder
para tornar o gosto pela vida mais intenso. Basta vermos a experiência do
império negro criado no Haiti, admiravelmente retratado no livro “Reino deste
Mundo”, de Carpentier. Aqui a opressão não é de cor, de cultura ou
nacionalidade, mas de sistemas. A reconstrução histórica do filme é informada
por uma visão do liberalismo brasileiro do século XIX, quando se pretendia
formar uma nacionalidade sobre o repúdio ao colonialismo português, e, sem pôr
fim ao trabalho escravo, reformar a escravidão. Desse modo, a tensão da
sociedade colonial é unilateralmente apresentada, apoiando-se no conflito de
interesses entre portugueses e colonos sem que se deixe perceber a tensão entre
senhores e escravos
(MAAR, apud: VANOYE, 1998, p. 116).
Bibliografia:
VANOYE,
Francis. Usos da Linguagem. Problemas e técnicas na produção oral e escrita.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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