quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Dilúvio de Gerald Thomas: Um Palco de Sombras

 

Dilúvio de Gerald Thomas: Um Palco de Sombras

                                                                       Lúcio Emílio do E. S. Júnior

Introdução

 

A peça teatral Dilúvio (2018), de autoria de Gerald Thomas e encenada por ele mesmo, é mais um momento em seu teatro de imagens. O contexto que angustiava o encenador era a vitória de Trump contra Obama, bem como a emergência das notícias falsas lá e aqui. Num momento histórico que ameaça complicar-se mais e mais, diante da conjugação da crise econômica mundial iniciada em 2008 e outras crises.

Esse cenário prossegue. A crise tem que ser batizada, por isso sugiro um nome: Crack de 2009. Nesse contexto, ascendem ao poder, nos USA, Brasil, Hungria e Itália, governos simpáticos ao fascismo. Gerald Thomas, que paradoxalmente apoiava Obama no USA e combatia Lula aqui, escamoteando as semelhanças entre ambos, depara-se com Bolsonaro e Trump, em muitos aspectos, contrários ao gosto e às inclinações do autor. A sensação de fim do mundo ganha força nesse contexto.

A canção inicial evoca os movimentos repetitivos dos quais o encenador gosta e se alimenta, bem como o cenário apresenta uma paisagem desolada, em que estilemas que aparecem na obra desse autor teatral surgem aqui e ali: cortinas de fumaça, ambiente escuro, à meia luz, em geral ambiente noturno, um teatro “germânico”, evocando muitas vezes um conto de Kafka ou um pesadelo propriamente dito. Muitas das imagens evocam também o universo melancólico e sombrio de Samuel Beckett. Marcado pelo lançamento recente de um livro de obras de artes plásticas, Thomas parece também querer refazer a obra do acaso total, trazendo também para o palco suas obras de artes plásticas. E nessa peça ele praticamente encenou sua pintura com o guarda-chuva, com o tubarão ferido, etc, tornando-se personagens.

Paradoxalmente autor de um teatro não-dramatúrgico e um dos poucos dramaturgos brasileiros a conseguir elaborar uma obra, Gerald Thomas prossegue produzindo aqui e ali fiapos de narrativas que orquestram-se esteticamente. A fala é tomada em si mesma, como musicalidade, fala-se em inglês, português, alemão. A música é um motivo-guia importante. Nessa peça temos Tina Turner (é citada What´s Love Got to do With It), Out of Control dos  Rolling Stones e Hurt, dos Nine Inch Nails, dentre outras, sendo que os Stones são um motivo-guia importante. É também muito bela a cena da dança ao som de These Stones Will Shout, dos Raconteurs, bem ao estilo Led Zeppelin apreciado pelo diretor.

 

1.    Símbolos e Sintomas: Sombras de Reis Barbudos

 

Thomas, como não apega-se ao texto, cria símbolos para poder solucionar as questões que surgem num teatro não-dramatúrgico: num teatro onde os personagens não são nomeados, onde não há narrativa propriamente, como criar conflito?

Gerald resolve essa questão criando símbolos e imagens conflitivas em si mesmas: uma mulher presa a algo invisível grita e tenta libertar-se. Essa situação, como nas peças de Beckett em que alguém aparece só com a cabeça e enterrado em algo, já cria, em si, o conflito.

Dilúvio passa-se em um cenário sombrio, esfumaçado, cheio de objetos inúteis, tais como guardas-chuvas contorcidos e quebrados. O encenador transmite um pensamento através de metáforas e símbolos: o guarda-chuva, de protetor contra a tempestade, torna-se seu contrário, como explicou Jardel Cavalcanti:

 

O cenário inicial (e final) da peça Dilúvio, de Gerald Thomas, apresenta uma paisagem solitária, com um amontoado de guarda-chuvas quebrados e contorcidos num ambiente esfumaçado. Antes que qualquer ator entre em cena, já estamos diante da imagem trágica do resultado de um dilúvio: aqueles guarda-chuvas que figuram em nossa mente como símbolo da proteção contra a tempestade, agora são apenas desolação e destruição (CAVALCANTI, 2018).

 

E não só o símbolo do guarda-chuva que transcende a obra plástica de Gerald Thomas para poder tornar-se um personagem de uma de suas peças, há também outros quadros que aparecem em momentos-chave.

A imagem seguinte é a de duas atrizes nuas, todas banhadas de sangue. A idéia é refigurar a humanidade depois da catástrofe. Novamente a imagem do guarda-chuva volta nas mãos da atriz, lutando contra uma tempestade terrível, mas essa luta será inglória. Thomas trata, aqui, do mundo depois da catástrofe. A metáfora escolhida é o Dilúvio. E as cenas mostram o que sobrou depois do desastre. Como explicou Flora Sussekind:

 

Não é difícil relacioná-lo também – enquanto corpo  largado, extinto, mas em posição vertical - às séries de carcaças animais penduradas, como num açougue, que se repetem em sua obra gráfica. E cujo diálogo com a pintura de  Jean-Baptiste-Siméon Chardin e de Francis Bacon parece ser intencionalmente evidente. As carcaças penduradas estão presentes, por exemplo, no cartaz de MattoGrosso (ópera composta em parceria com Philip Glass). E seriam evocadas na reencenação por Gerald de Quartett (de Heiner Müller), em 1996, com Ney Latorraca e Edi Botelho, espetáculo que era ambientado numa espécie de abatedouro, com os atores em trajes ensanguentados como os de açougueiros. A série de restos corporais pendurados se veria refigurada cenicamente, ainda, tanto nos corpos femininos que pendulam, suspensos, sobre o palco, em Dilúvio, quanto no corpo banhado de vermelho, e sob tortura interminável, de Marcelo Olinto em Bait Man (SUSSEKIND, 2008).

 

O rock, o samba e a música erudita ao estilo de Phillip Glass, repetitiva e tensa, são, juntamente com os corpos tornados obra de arte plástica moldáveis pelo diretor, os principais motivos-guia dessa peça, juntamente com as performances dos atores. É um teatro que tem muito de musical e de circo, de pantomima.

            Diante das atrações que sucedem-se no palco de sombras, é muito interessante o momento em que o diretor interfere diretamente em voz off, condenando as fake news. Gerald explicou a chegada da catástrofe, que não é só uma grande catástrofe natural e sim provocada pela mão humana: “Ele pegou o Ifone e tuitou: sad, bad, fire! E nesse fire, leia-se fake news e tudo explodiu e nessa explosão, tudo era fake e o cavalo de Turim não era mais uma ilusão, o cavalo de Turim não era falso e assim começou a terceira guerra mundial, assim como essa frase, the likes of which you never seen before, temos mais três anos”. Nesse trecho acima, Thomas está criticando a atuação de Donald Trump na rede social twitter.

A atuação desse presidente era tão leviana que dava a impressão de que essa situação absurda acima poderia acontecer. A hipótese é que governantes como Trump e Jair Bolsonaro não governam, vivem numa eterna campanha eleitoral, enquanto outros fazem a política por eles (THOMAS, 2020).

 

Mas há dinâmicas complexas nessas agonias. Daí, em seu comentário sobre M.O.R.T.E, Haroldo de Campos contrapor não apenas a sigla-título, mas também o réquiem elegíaco a Tadeusz Kantor (que é realizado no espetáculo), à força da evocação de Hélio Oiticica e ao ritmo de uma bateria de escola de samba “que irrompe, estrepitosa, no palco”. Insinuando, Yves Alain Bois, assim, “um princípio esperança” (E. Bloch), um princípio formal contrastivo, em meio à intensa e irreverente pulsão de morte que conduz essa retomada geraldiana de Hamlet (SUSSEKIND, 2008).

 

Sendo assim, pode-se dizer que, em Dilúvio, igualmente, a escola de samba aparece tendo essa função, em meio à desolação e ao caos do mundo depois da III Guerra Mundial.

 

A dublagem atorial (prevista na peça) funciona, com relação à voz em off do diretor, como uma forma de obstrução da potência ex-machina dessas intervenções, que se tornam deslocadas, estranhas, quando apropriadas por esse corpo outro. Um espelhamento propositadamente falho que sublinha, desse modo, uma teatralização da voz autoral, cuja continuada autoexposição configura camada discursiva peculiar no interior de textos diversos. Esse desdobramento enunciativo complexifica a textualidade já meio em abismo dessas peças –em meio a suas camadas diversas de referências, a uma sucessão de jogos sonoros, construções e contrastes figurais. E sobretudo em meio a esse “escrever encenando-se” a que se referia Haroldo de Campos. Processo evidenciado, como já se observou, nas indicações cênicas extremamente minuciosas ou na distribuição das falas usando-se o nome dos atores. Mas não só aí. E seria sobretudo via exposição/dublagem autoral que se criaria, regular regularmente, nesses exercícios dramatúrgicos, um território verbal, uma  dobra discursiva na qual a escrita mesma se teatralizaria em voz. Não que assim se produza propriamente um outro espaço, como assinala Gerald Thomas, descrevendo o seu método dramatúrgico em Diário de uma peça (1973) - para voltarmos a esse texto de juventude. Não é de um outro espaço que se trata, mas sim de “outro território de falas e de escritas”. Ou, procedimento-chave em sua experiência artística, a produção de um espaço que se vê enfatizado, tensionado, de um espaço com potencial “para a obstrução de outro”. No limiar da negação, portanto (SUSSEKIND, 2008).

 

                A passagem com Maria de Lima em que a voz da atriz torna-se a voz de  um outro, do diretor, ou seja, uma mulher fala com voz de homem, uma atriz fala com voz de diretor, é um efeito no sentido proposto acima por Flora Sussekind.

Se não é o fim do mundo, com certeza é o fim de um determinado mundo, o mundo burguês que Gerald Thomas vivenciou entre Europa e Estados Unidos. Na peça, esse mundo burguês guarda apenas a aparência de uma existência humana. E a citação das notícias falsas indica, mais do que nunca, um asco da imprensa:

 

É impossível percorrer uma qualquer gazeta, seja de que dia for, ou de que mês, ou de que ano, sem aí encontrar, em cada linha, os sinais da perversidade humana mais espantosa, ao mesmo tempo que as presunções mais surpreendentes de probidade, de bondade, de caridade, a as afirmações mais descaradas, relativas ao progresso e à civilização. Qualquer jornal, da primeira linha à última, não passa de um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, impudicícias, torturas, crimes dos príncipes, crimes das nações, crimes dos particulares, uma embriaguez de atrocidade universal. E é com este repugnante aperitivo que o homem civilizado acompanha a sua refeição de todas as manhãs. Tudo, neste mundo, transpira o crime: o jornal, a muralha e o rosto do homem. Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de asco (BAUDELAIRE, 2020).

 

O mundo de Dilúvio é um mundo feminino onde as duas atrizes num momento confrontam-se, o motivo da briga é o desejo de uma de divertir-se. Elas lutam voando pelo palco e, logo em seguida, a que deseja diversão é atendida e passa a ser beijada e abraçada. Julia Wirkins cita Tina Turner: “Oh, o quê o amor tem a ver com isso? O quê é o amor, exceto uma emoção de segunda mão?” Esse verso, tomado assim, sem dúvida parece-nos ser representativo do pensamento do diretor. Não há amor nessa peça, apenas envolvimento de corpos, que ora sangram pendurados, ora se enlaçam, etc. Mas amor não há. Assume-se que amor é efeito, artifício, algo que chega de fora, de segunda mão.

Uma terceira figura, clownesca, vestida de plumas e paetês, observa e comenta que “agora virou orgia”, logo após ter delirado em inglês e alemão. Na cena em que as mulheres assumem o vocabulário chulo de dois homens, a iluminação é inspirada na roda de bicicleta de Duchamp, um verdadeiro objeto-fetiche de Gerald Thomas.

Os homens estão quase ausentes na peça, exceto por uma curiosa figura que fica observando o tempo todo comendo pipocas e que parece ser um alter ego do diretor:

 

Dessas imagens o sempre enigmático tubarão ferido e uma referência ao São Sebastião flechado – signos da violência transformada em espetáculo. A peça se encerra com uma fala em tom comovente da atriz Maria de Lima, que está num cenário de desolação, dizendo algo como “eu até poderia achar algo positivo nisso tudo”, que ressoa a frase dita anteriormente invocando Beckett, um dos mestres da consciência artística de Gerald Thomas – “Você conhece o mundo maravilhoso e, claro, sombrio e, ainda, melancólico e, porque não dizer, um tanto cinzento, de Samuel Beckett?”Sobre sua condição de criador, dentro desse universo aterrador, diz Gerald Thomas: “Eu me vejo, como autor, numa terra perdida, sozinho, depois de uma guerra nuclear, com um balde de pipoca na mão. É o sinal da minha sobrevivência” (CAVALCANTI, 2020).

 

Nessa terra perdida, o personagem semelhante a Quasímodo está num mundo pré-social, não existindo nada que dê coesão ou solidariedade social. No mundo pós-catástrofe, o Cavalo de Turim, personagem imaginário do filme de Bela Tarr, torna-se verdadeiro.

 

2.    A Autópsia de um Drama

 

O teatro encenado por Thomas é pós-dramático, ou seja, o texto não apresenta preocupações, ou apenas remotamente, de cumprir as exigências do que era cobrado anteriormente de um drama. O drama é secundário, o importante é a encenação, tanto que Thomas muda elementos de uma encenação para outra. A contraposição dos personagens através do diálogo acontece vez por outra, como quando as duas mulheres brigam nuas.

 O texto é apenas mais um elemento junto da cenografia, música, performance, etc. Cada imagem em Dilúvio é expressiva por si e não depende do todo. A peça não apresenta destinos em movimento que a ação irá corporificar. São como atrações circenses ou quadros colocados um ao lado do outro (ANDRADE, 2020).

Gerald Thomas recusa-se a deixar de mostrar como a obra é composta, ou seja, ele não “tira os andaimes”, desvia sempre o foco do material narrativo para o trabalho de composição. Não há como abstrair o trabalho do diretor, pois ele entra em cena tocando baixo, sua voz entra em off na boca de uma personagem bufona, etc. Ele não apaga os rastros de sua presença, pelo contrário. O encenador sai dos bastidores e torna-se, pela voz em off principalmente, um comentador dos acontecimentos e um personagem. Não há mais diferença entre comentário e ação.

Thomas apresenta a revolta contra as autoridades como a revolta contra os discursos, bem como da arte como aparência. A composição da peça teatral torna-se central na própria peça. Não há mais diferença entre o mundo empírico e a arte fechada em si mesma. Como explicou Adorno a propósito de Beckett:

 

Qual é a razão de ser das formas quando desaparece sua tensão com aquilo que não lhes é homogêneo sem que por isso o progresso do domínio estético do material possa ser freado? Fim de partida escapa dessa dificuldade ao transformá-la em coisa sua, tornando-a seu tema. […] Os constituintes do drama aparecem após sua morte. Exposição, complicação (Knoten), ação, peripécia e catástrofe retornam como elementos decompostos de uma autópsia da forma dramática. […] Aqueles elementos constituintes naufragam juntamente com o sentido que outrora fazia parte do drama; Fim de partida estuda, como num tubo de ensaio, o drama da época atual, a qual não tolera mais o que constitui o drama. (Adorno, GS 11, p. 303)

 

Parece-nos que Gerald Thomas desejou, em Dilúvio, fazer a autópsia de um drama. O diálogo sobre um conflito com a mãe sinaliza para isso, para diálogos com a mãe morta, tal como em Rainha Mentira (Queen Liar, peça anterior de Thomas). Não só há elementos decompostos de um drama expostos para mostrar a mentira da exposição, como os personagens parecem ser sobreviventes da Terceira Guerra Mundial.

 

3.Conclusão

 

            Em Dilúvio, o encenador Gerald Thomas voltou a um tema beckettiano que é um de seus favoritos: a humanidade depois da catástrofe. Trata-se de um teatro não-dramatúrgico, movimentado a partir das imagens simbólicas e da música. Mais do que um drama, Dilúvio é uma autópsia de um drama. A ação, por vezes, acontece graças à passagem de uma música para outra e os personagens, sempre sem nome, criam cenas que dialogam com a obra plástica do próprio encenador. O encenador retoma sua própria obra para criar essa, reproduzindo seus conhecidos estilemas, tais como o palco esfumaçado, os temas sombrios e kafkianos, a onipresente influência de Beckett em seus personagens (que, como os dele, sempre estão presos ou pendurados) Sua autobiografia, sua relação com a mãe e outras peças tais como Circo de Rins e Fígados e Rainha Mentira apresentam personagens e diálogos semelhantes aos de Dilúvio.

 

 

Referências:

 

BAUDELAIRE, Charles. O Asco da Imprensa.<<https://www.citador.pt/textos/o-asco-da-imprensa-charles-baudelaire>>

 

CAVALCANTI, Jardel. Dilúvio, de Gerald Thomas.<<http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=4452&titulo=Diluvio%2C_de_Gerald_Thomas>>

 

DAIE, Fábio Salem. Beckett entre o Realismo de Lukács e a estética adorniana <<file:///C:/Users/Usuario/Downloads/98308-Texto%20do%20artigo-193640-1-10-20151214.pdf>>. <<Acesso em 26/11/2020>>>.

 

IACONELLI, Vera. Enxurrada Político-Onírica. Folha de S. Paulo, 5 de dezembro, 2017.

 

GATTI, L. Constelações: crítica e verdade em Benjamin e Adorno. São Paulo: Loyola, 2009.

 

________. Exercícios do pensamento. Dialética negativa de Theodor W. Adorno, Novos Estudos Cebrap, Nr. 85, 2009.

 

SUSSEKIND, Flora. No Limiar da Negação. <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/No_limiar_da_negacao_Nota_sobre_o_metodo.pdf>>.

 

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